A Cor Púrpura / The Color Purple

3.5 out of 5.0 stars

Texto publicado na revista Afinal de 12 de agosto de 1986: O mago desta vez veio sem sua cartola. Steven Spielberg, o maior fenômeno de bilheteria de toda a história do cinema mundial, o garoto prodígio de Hollywood, responsável por quatro dos oito filmes de maior renda já feitos até hoje, o Walt Disney da era dos computadores e dos videogames, que aos 25 anos era comparado a Orson Welles, abandonou a fantasia, a imaginação, a aventura, os efeitos especiais, os heróis, os monstrinhos, as naves espaciais – toda a sua marca registrada, a sua fórmula perfeita de fazer lotar as salas escuras de cinema ao redor do mundo de multidões ávidas de sonho.

 

Em seu nono longa-metragem, A Cor Púrpura/The Color Purple, 1986, em exibição nas maiores cidades do País a partir desta quinta-feira (em agosto de 1986), em lançamento nacional, Spielberg trocou o sonho pela realidade, as famílias dos abastados subúrbios da classe média alta das grandes cidades por um punhado de pessoas pobres, infelizes, oprimidas, os super-heróis à la Indiana Jones por pessoas simples, humildes, que apanham e levam desaforo para casa. O mago, desta vez, trocou o sonho pelo pesadelo de quem é – como diz um de seus personagens – preto, pobre, feio e mulher.

Desafio

 “Foi o maior desafio da minha carreira”, disse ele. Que ninguém duvide.

acorboa “Acho que só agora eu estava preparado para filmar um drama”, avalia. “Durante anos eu joguei na certa, fazendo filmes que eu podia dominar e usando os recursos técnicos que conheço perfeitamente. O risco era pequeno. Acho que eu ainda não tinha crescido de todo antes desse filme.” Spielberg disse isso em dezembro do ano passado (1985), o mês em que completou 38 anos de idade; estava acabando de acompanhar os trabalhos da montagem final de A Cor Púrpura, que foi filmado entre julho e agosto de 1985.

 Foi Kathleen Kennedy, uma produtora que trabalha com Spielberg há anos, que recomendou a ele o livro A Cor Púrpura, da escritora negra Alice Walker, Prêmio Pulitzer e American Book Award para ficção em 1983, e grande sucesso de público (ficou um ano na lista dos livros mais vendidos do New York Times). “Todas as mulheres estão lendo”, avisou Kathleen. Spielberg leu e imediatamente comprou os direitos de filmagem para sua empresa, a Amblin Entertainment. Entregou o livro ao roteirista Menno Meyjes, um holandês radicado na Califórnia, para que ele fizesse a adaptação, mas não deixou o trabalho inteiramente a cargo de Meyjes: como sempre acontece em todos os projetos da Amblin, Spielberg coloca sua mão em todas as fases dos trabalhos. “Levamos uns oito meses para adaptar o livro honestamente, sem perder sua essência”, conta o diretor. “Foi o período mais longo que já levei trabalhando com um escritor em um roteiro.”

Verdades adultas

Foi um período “esquizofrênico”, segundo Spielberg. Ele estava, ao mesmo tempo, cuidando da produção executiva de Os Goonies e De Volta para o Futuro, e, além disso, trabalhando no roteiro de O Enigma da Pirâmide. “Eu estava dividido entre esses vários filmes para as matinês adolescentes e as verdades adultas de A Cor Púrpura“.

acorirmasAs verdades adultas começam muito cedo na vida de Celie, a personagem principal da história. Aos 14 anos, ela engravida pela segunda vez, de seu próprio padrasto, na zona rural da Georgia, no sudeste americano, no começo do século (XX). Não vê as crianças, no entanto – o padrasto as dá para um casal que não pode ter filhos. Ainda aos 14 anos, Celie (interpretada, adolescente, por Desreta Jackson, e, adulta, por Whoopi Goldberg) é entregue pelo padrasto a um fazendeiro vizinho, Albert (Danny Glover), que ela chama apenas de Mister (e os letreiros do filme, no Brasil, assim como a tradução do livro, chamam de Sinhô); ele havia ficado viúvo, e precisava de uma mulher para limpar a casa, cozinhar, fazer-lhe a barba, cuidar dos seus três filhos e, eventualmente, abrir as pernas, enquanto ele literalmente a cavalga, olhando para o retrato, ao lado da cama, da mulher que é a paixão de sua vida, Shug Avery (Margaret Avery), uma cantora de cabaré.

Como se vê, Celie é o retrato, em tons berrantes, caricaturais, do ser humano oprimido. A mulher é o negro do mundo, escreveu John Lennon. A Celie criada pela feminista Alice Walker é isso elevado à enésima potência, é a escrava mais escrava que se poderia conceber, a escrava de um homem brutal que por sua vez é oprimido pelo pai; Celie, como o próprio Albet lhe diz, é, em suma, preta, pobre, feia e mulher, em uma sociedade extremamente machista, racista, classista.

Celie tem um único amor na vida: Nettie, sua irmã mais nova, mais bonita, mais atraente, mais estudada (Celie é analfabeta; Nettie é quem a ensina a escrever). Nettie (Akosua Busia) foge do padrasto opressor e pede para morar na casa do homem que oprime sua irmã. Ele tenta seduzi-la, ela reage, ele a manda embora; Nettie vai embora gritando para a irmã que escreverá sempre para ela. Mister, o Sinhô, naturalmente, proíbe Celie de chegar perto da caixinha do correio.

Isso é 1909. A história acompanhará a trajetória desses tristes personagens ao longo dos 34 anos seguintes, até 1943. Celie e os filhos de Albert crescem, igualmente tiranizados pelo Sinhô. O mais velho dos filhos, Harpo (Willard Pugh), casa-se com Sofia (Oprah Winfrey), uma anti-Celie, uma mulher firme, corajosa, que não aceita ser escrava de pai ou de marido.

Celie começa seu movimento para fora da passividade escrava através de seu encontro com a amante de Albert, a cantora Sugh Avery – ou, nos letreiros brasileiros, Doci Avery (Shug é corruptela de sugar, açúcar). Shug Avery é o que Celie jamais pôde ser: bonita, atraente, sensual, alegre e sobretudo livre.

Humanidade

acorwhoopiSteven Spielberg diz que não quis fazer um filme sobre negros, mas sobre pessoas. “Eu decidi, desde o início do projeto, que essa não era uma história sobre uma raça ou cor ou situação social, e sim uma história sobre a humanidade. As fraquezas, as dificuldades e as alegrias dessas pessoas poderiam ter sido – e, de fato, foram – as de cada um de nós.”

Quando o roteiro de A Cor Púrpura ficou pronto, Spielberg mandou seu diretor de arte, J. Michael Riva, procurar um lugar para as filmagens, em cinco Estados – Mississipi, Georgia, Alabama, Carolina do Norte e Tennessee. Riva fotografou dezenas de lugares, e submeteu o resultado de suas pesquisas ao diretor. Spielberg escolheu uma fazenda perto da cidade de Wadesboro, na Carolina do Norte – o Estado é vizinho à Georgia, onde se passa a ação -, que foi alugada por seis meses. O diretor ficou fascinado com a beleza do lugar quando foi conhecê-lo. Sobretudo, gostou da topografia: era um lugar cheio de pequenas colinas. “É um desastre filmar em lugares planos, porque não se tem onde pôr a câmara, exceto numa grua”, ensina.

A uma pequena distância da sede da fazenda – que, nas filmagens, serviu como a casa de Albert -, a produção construiu, seguindo a orientação do diretor de arte Riva, uma segunda casa, a de Harpo, filho de Albert, e um jook joint – um cabaré rural, como os que havia nas primeiras décadas do século no Sul dos Estados Unidos. Além dessas três construções, aparece no filme também uma igreja, a igreja do pastor pai de Shug Avery, mas esta não precisou ser feita: por sorte, a produção encontrou, perto da fazenda, uma igreja construída há 60 anos, que estava à venda pela congregação; a igreja simplesmente foi transportada para o local das filmagens.

Sem efeitos

Ali, até o clima ajudou, diz Spielberg. “Quando queríamos que chovesse, chovia; quando queríamos sol, tinha sol”, lembra. Até as cenas de tempestades, com raios e relâmpagos – como a que antecede a chegada de Shug Avery à casa de Albert, com Celie vendo pela primeira vez, do umbral da porta, a amante do marido – foram filmadas lá mesmo. Em A Cor Púrpura, nem as tempestades são efeitos especiais. “Tirei férias dos efeitos especiais”, disse Spielberg.

Não que fazer um filme sobre pessoas comuns, sem tubarões, extraterrestres ou discos voadores, dispense uma infindável lista de cuidados especiais. J. Michael Riva, o diretor de arte e sua equipe, por exemplo, levaram mais de um ano pesquisando as roupas, os penteados, as mobílias, o tipo de construção, para reproduzir com fidelidade a vida no campo dos Estados Unidos entre 1909 e 1943. (A equipe que produziu os figurinos da minissérie Memórias de um Gigolô, da Rede Globo, por exemplo, teve um mês para pesquisar.)

Para as cenas de inverno, a equipe de Riva desfolhou todas as árvores do local de filmagens, e criou neve, em pleno verão da Carolina do Norte. Umas poucas cenas se passam numa pequena cidade próxima da fazenda onde Celie mora; elas foram filmadas em uma cidade vizinha à fazenda alugada pela produção; todas as casas tiveram que ser pintadas, e a equipe de Riva importou toneladas de terra vermelha, semelhante à da Geórgia, para cobrir o asfalto da rua moderna.

No início do filme – bem no começo do século, portanto – aparece em uma cena uma antiqüíssima vitrola de corda. Quase no fim, pode ser visto um jukebox, como os que existiam no início dos anos 40. “As mudanças são mostradas através do trabalho de Michael Riva”, diz Spielberg. “Mas são mostradas de uma maneira sutil; não pretendíamos soterrar o espectador com esse tipo de informação, porque ela não é fundamental para a história que estamos contando. Porque eu acho fascinante o seguinte: enquanto o mundo estava mudando inteiramente ao redor dessas pessoas, de 1909 a 1943, elas continuavam com suas próprias lutas emocionais. O mundo ao redor delas faz pouca diferença no desenvolvimento de suas histórias.”

 Há mudanças, ao longo dos 34 anos de história, também na música. No começo ouvem-se apenas os blues do início do século, o som da gaitinha de boca. No final do filme, já na década de 40, ouve-se o som das big bands. A trilha sonora, produzida pelo maestro Quincy Jones, um dos maiores nomes da música americana, serviu-se da matéria-prima mais farta que existe – a música negra é praticamente toda a música americana, do blues ao jazz, do gospel aos ritmos afros.

Rostos negros

Uma das preocupações do diretor de arte Riva foi o uso de cores escuras nas paredes, nas mobílias, e mesmo nas roupas. Isso foi combinado entre ele e o diretor de fotografia, Allen Daviau, um velho companheiro de Spielberg (Daviau trabalhou com o diretor pela primeira vez em Amblin, um curta-metragem que Spielberg filmou em 1968, no seu tempo de estudante, e que deu o nome à sua produtora, a Amblin Entertainment). “É mais fácil trabalhar com rostos negros contra um background escuro do que contra um fundo mais claro”, explica Daviau. “A iluminação dos rostos pode ser mais sutil.”

acoroprahO elenco reunido por Spielberg mistura atores veteranos, como Adolph Caesar, que faz o papel do pai de Albert, com atores de teatro com pouca ou nenhuma experiência em cinema, como Whoopi Goldberg, a Celie, ou Oprah Winfrey (foto), a Sofia – e atores não-profissionais. “De alguma forma essa mistura foi magia”, constata Spielberg. Experiente em lidar com crianças – quem não se lembra dos maravilhosos Elliot (Henry Thomas) e Gertie (Drew Barrymore), de E.T.? -, o diretor diz: “Trabalhar com crianças ou com principiantes é mais ou menos a mesma coisa”.

O próprio Spielberg admite que, quando filmou E.T., ele berrou muito com os atores. Desta vez ele foi mais suave: “O lugar das filmagens estava muito carregado emocionalmente. A história tem muitos momentos pesados, de dramas intensos. Eu e Allen (Daviau) fomos conselheiros, psicólogos e, às vezes, quando as emoções ficavam quentes e pesadas, até padioleiros dos atores”.

Spielberg diz que gostaria de ter filmado tudo em continuidade, ou seja, seguindo a ordem cronológica, para facilitar o trabalho dos atores, especialmente dos menos experientes. Afinal, são 34 anos de história. “Era muito difícil explicar a eles o que já havia acontecido na história antes de filmar determinada cena, ou então que iria acontecer ainda no futuro alguma coisa que já tínhamos filmado três dias antes”, exemplifica. O trabalho de maquilagem também era complicado – os atores tinham que envelhecer algumas décadas, com a maquilagem dirigida por Ken Chase (o mesmo que fez envelhecer 30 anos os atores de De Volta Para o Futuro). “Às vezes”, diz Spielberg, “ele tinha que envelhecer os atores num dia para rejuvenescê-los no dia seguinte. Era confuso demais.”

No orçamento

Filmar em continuidade, de qualquer forma, encareceria muito a produção. E Spielberg – que, para filmar Tubarão, em 1975, por exemplo, estourou o orçamento de US$ 4 milhões e acabou gastando US$ 8 milhões, em 155 dias, contra os 55 inicialmente planejados – desta vez queria e conseguiu se ater aos R$ 15 milhões acertados para os gastos de produção.

Pode parecer muito, mas não é. Francis Ford Coppola gastou US$ 45 milhões – três vezes mais que Spielberg em A Cor Púrpura – para fazer seu Cotton Club. Caçadores da Arca Perdida custou US$ 20 milhões. Para fazer 1941, Spielberg gastou nada menos que US$ 28 milhões – e o filme foi um fracasso de bilheteria, o único fracasso, até agora (“Até fazer 1941, eu achava que era imune ao fracasso”, disse Spielberg) dessa carreira alucinante e meteórica.

Steven Spielberg foi o mais jovem diretor de cinema a assinar um contrato longo com um grande estúdio, em toda a história de Hollywood. Tinha 21 anos quando mostrou seu curta Amblin a Sid Sheinberg, na época presidente do setor de televisão da Universal, e foi contratado. Filho de um engenheiro de computadores e uma ex-pianista clássica, ele ganhou sua primeira filmadora, uma Kodak baratinha, aos 12 anos de idade, e passou sua juventude escrevendo roteiros de filmes. Na Universal, dirigiu 11 episódios de seriados, inclusive um de Columbo. Aos 24 anos, dirigiu seu primeiro longa para a TV, Encurralado; gastou 12 dias de filmagem e US$ 300 mil. O filme rendeu nada menos que US$ 9 milhões, tornou-se cult movie e transformou Spielberg numa instant celebrity

Encurralado é de 1971. Três anos depois Spielberg dirigiu seu primeiro filme feito para o cinema, Louca Escapada. O seu terceiro trabalho, Tubarão, de 1975, foi, durante muito tempo, o filme de maior bilheteria de toda a história do cinema. Rendeu, até 1985, só no mercado norte-americano, segundo a revista Variety, R$ 130 milhões. Tubarão é hoje (1986) a quinta maior bilheteria da história. Spielberg comparece com três outros filmes na lista dois oito maiores: E.T., de 1982, primeiro lugar, com US$ 210 milhões; Caçadores da Arca Perdida, de 1981, com US$ 115 milhões, em sétimo; e Indiana Jones e o Templo da Perdição, de 1984, em oitavo lugar. Seu Contatos Imediatos de Terceiro Grau, de 1977, é o 14º colocado da lista.

 O toque de Midas de Spielberg não se restringe aos filmes que ele próprio dirige. Como produtor executivo, argumentista, às vezes supervisor de todo o trabalho da equipe, inclusive do próprio diretor, ele imprimiu a marca “Steven Spielberg presents” a diversos filmes que atraíram multidões, como Poltergeist, De Volta para o Futuro, Os Goonies, Os Gremlins.

Hostilidade

Tão imenso e inédito sucesso teria, fatalmente, que provocar reações hostis. É o caso, por exemplo, da vetusta Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood. O Oscar nunca sorriu para Steven Spielberg (até então, 1986). E.T., Caçadores da Arca Perdida e Tubarão foram indicados para melhor filme, mas perderam.Seus filmes só ganharam prêmios menores, como melhor trilha sonora (para o trabalho de John Williams em Tubarão) ou melhores efeitos visuais (para E.T.). Em 1986, então, parece piada. A Cor Púrpura teve 11 indicações (para os prêmios de melhor filme, fotografia, roteiro adaptado, figurinos, maquilagem, canção original, direção de arte, trilha sonora original, atriz para Whoopi Goldberg, atriz coadjuvante para Margaret Avery e Oprah Winfrey), mas Spielberg não foi sequer indicado para concorrer ao prêmio de melhor diretor. Um executivo de Hollywood comentou que isso parecia com dizer que o David, de Michelangelo, é uma obra-prima da escultura embora Michelangelo seja um escultor menor. Spielberg foi ao Dorothy Chandler Pavillion, e suportou estoicamente as longas horas da festa, para ver seu filme derrotado 11 vezes.

acorfacaA crítica americana foi reticente com A Cor Púrpura. A bilheteria não foi um fracasso, mas os resultados ficaram longe do padrão costumeiro dos filmes de Spielberg. Ele mesmo, de qualquer forma, já esperava por isso, assim como toda a sua equipe. Algumas reações, no entanto, devem ter incomodado Spielberg de uma maneira especial – como as muitas críticas que recebeu da comunidade negra, de que o filme menospreza a opressão do branco sobre o negro, ao realçar apenas a opressão do macho sobre a mulher; disseram que o filme é um tratado contra o macho negro, e uma exaltação do lesbianismo.

Cada espectador que tire a sua conclusão. De fato, a trajetória de Celie da escravidão para a luz passa necessariamente por seu amor por Shug Avery; é com ela que Celie aprende o prazer do sexo, assim como aprende a ter vontade de se libertar da opressão de Albert. E, além disso, o seu único amor na vida, além de Shug Avery e dos filhos, é outra mulher, sua irmã Nettie. Mas essa é a trajetória de Celie, apenas. As trajetórias de Sofia e de Shug Avery, as duas únicas mulheres livres da história, são diferentes. Shug Avery evolui de uma relação de dominação ao inverso do padrão machista tradicional – ela dominadora, Albert o dominado – para uma relação de igualdade com o novo homem de sua vida, com quem se casa, Grady (Bennett Guillory). Sofia segue caminho semelhante; recusa-se , até na porrada, a ser dominada por Harpo; quer uma relação de igual para igual – o que acabará conseguindo.

O próprio personagem de Sofia serviria, também, para desmentir a idéia de que o filme não se preocupa com a opressão do branco sobre o negro; quando ela reage a uma agressão do branco rico, é espancada, presa, humilhada, até perder quase por inteiro a lucidez e a força de sua personalidade. Aliás, os pouquíssimos personagens brancos que aparecem no filme – o prefeito, a mulher do prefeito, o rapaz da mercearia – são tratados como o retrato do mal em si. Simplista, claro, beirando um maniqueísmo mais apropriado para as matinês dos adolescentes do que para um filme sobre verdades adultas. Isso, sim, poderia ser apontado como falha.

 Há outras. Há cenas caricaturais demais, num estilo de farsa que não se coaduna com o resto da narrativa – como as trapalhadas de Harpo, suas quedas do telhado da casa que está construindo.

 A crítica, naturalmente, não perdoa essas coisas. Mas Spielberg não está preocupado com a crítica, e sim com o público: “Minha intenção é fazer filmes que as pessoas gostem de ver, eu inclusive”. Resta saber se as pessoas estão interessadas em ir ao cinema para ver uma realidade próxima do pesadelo, ou se, simplesmente, preferem o sonho – que Spielberg sabe como ninguém alimentar.

  

A Cor Púrpura/The Color Purple

De Steven Spielberg, EUA, 1986

Com Whoopi Goldberg, Danny Glover, Margareth Avery, Oprah Winfrey,

Roteiro Menno Meyjes

Baseado na novela de Alice Walker

Música Quincy Jones

Fotografia Allen Daviau

Produção Amblin, Warner

Cor, 154 minutos