Berenice Procura

Nota: ★★½☆

Uma família terrivelmente, miseravelmente despedaçada – e, próximo a ela, acontece um crime, um homicídio. O pano de fundo é um dos bairros de maior densidade de habitantes por metro quadrado, um dos mais famosos do mundo – Copacabana, com todas as suas contradições, boates, inferninhos, transgêneros, tráfico de droga, prostituição.

O universo do escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza – só que desta vez sem seu personagem símbolo, o delegado Espinosa.

Um drama familiar misturado com um caso policial: eis aí, em suma, o que é Berenice Procura, romance que Garcia-Roza lançou em 2005 e o jovem realizador paulista Allan Fiterman transportou para o cinema em 2017, com roteiro de Flávia Guimarães e José Carvalho e a colaboração do próprio diretor e Flávia Lacerda.

Bem no início, um esplendoroso plano-sequência

O filme abre com uma bela tomada do nascer do sol na Praia de Copacabana. Um garotinho de uns 3 anos está chutando bola na areia – distanciando-se do mar, em direção ao calçadão. Diante do garoto e da mãe que vem atrás dele está um corpo sem vida – como se estivesse sentado, as costas apoiadas em uma palmeira, olhos claros, abertos.

Corta, e está amanhecendo no apartamento que – veremos – é de Berenice (o papel de Cláudia Abreu). Berenice faz xixi, anda pela casa, observa o quarto do filho, leva roupa para a máquina de lavar, que fica numa área de serviço que dá para fora do prédio.

Começam os créditos iniciais pelos nomes dos atores.

Corta, cena externa. Berenice está dirigindo seu táxi JAC na Avenida Atlântica – e Allan Fiterman vai nos oferecer isso que é a cereja no bolo para qualquer cinéfilo, o plano-sequência.

É extraordinário, maravilhoso, de babar. Revi depois umas duas vezes.

A câmara focaliza o táxi de Berenice, na pista mais próxima do calçadão. Ouvimos um repórter de rádio dizer que uma criancinha inocente foi a primeira pessoa a ver um morto em plena Praia de Copacabana. Berenice vira o carro para a esquerda, entra numa das transversais da Avenida Atlântica, estaciona de qualquer jeito, desce pedindo a alguém na calçada que dê uma olhada no carro para ela, e vai caminhando para atravessar as duas pistas da avenida, cada uma com quatro faixas. Chega à faixa da ciclovia entre o asfalto e o calçadão, atravessa, pisa no calçadão no momento exato em que pessoas empurram numa carrocinha o corpo do travesti achado morto na praia para um camburão parado ali perto.

Tudo sem corte, plano-sequência.

E aí a câmara vai se erguendo (provavelmente numa grua – não dá para perceber, é muitíssimo bem feito), e passa a mostrar aquela cena do alto, num total plongée. Vemos que um lençol cobre o corpo da pessoa morta, vemos que curiosos – Berenice inclusive – tentam chegar perto para observar o rosto da vítima.

Essa introdução dura 6 minutos e pouquinho – metade deles ocupada pelo extraordinário plano-sequência. Corta, e surge o letreiro: “36 horas antes”.

Marido e mulher que não se amam

O realizador e os roteiristas preferiram não mostrar claramente, explicitamente, como e por que a família de Berenice se destruiu, se despedaçou. Em uma sequência na sala do apartamento, durante o jantar, Berenice cobra de Domingos (o papel de Eduardo Moscovis) que ele saia de casa, já que o casamento acabou, já que não tem qualquer sentido eles continuarem vivendo sob o mesmo teto se não se gostam mais. Bem mais tarde, numa conversa com Russo (Emílio Dantas) – o irmão de Isabelle, a transgênero assassinada –, Berenice conta que o casamento já havia terminado dois anos antes, mas não explicita o motivo.

Na conversa com Berenice durante o jantar, Domingos reage dizendo que quer salvar a família, quer que a família continue junta.

Domingos é repórter de uma emissora de TV – uma emissora pequena, que tem aqueles programas sensacionalistas sobre casos policiais. Não é dito claramente, mas o espectador poderá inferir que com o salário de Domingos daria para viver. Berenice, no entanto, quis assegurar sua independência, inclusive financeira, e por isso algum tempo antes havia passado a trabalhar como taxista.

O fato é que, quando a ação acontece, o casal está junto apenas porque nenhum dos dois teve coragem de ir procurar outro lugar para viver. Mal se falam, não se comunicam, são dois estranhos vivendo num inferno particular em um apartamento de Copacabana.

E estão, os dois, a mil anos-luz de distância de Thiago (Caio Manhente), o filho único do casal, de 15 anos de idade. Pai e mãe não têm a menor noção de quem é Thiago, o que quer, o que sonha.

Um adolescente próximo da transgênero belíssima

Sem que os pais tivessem a menor idéia disso, Thiago havia passado a ser um frequentador da coxia, dos bastidores de uma boate do bairro – uma boate de shows de travestis, pertencente a uma mulher antipática, desagradável, chamada Greta (o papel da experientíssima Vera Holtz). E havia desenvolvido um laço afetivo forte com Isabelle, a transgênero de rosto belíssimo que seria encontrada morta nas areias da Praia de Copacabana.

Isabelle é interpretada por Valentina Sampaio (na foto acima), ela mesma uma transgênero. (Nos créditos iniciais há a referência a “apresentando Valentina Sampaio”, uma indicação de que é o primeiro ou um dos primeiros filmes em que ela atua.)

Há várias sequências passadas na boate de Greta, entre elas alguns números musicais, shows. O trabalho de direção de arte, cenografia, fotografia (de Azul Serra) é excelente – e os shows naquela boate marreta de Copacabana acabam adquirindo uma beleza à la Las Veja.

Cláudia Abreu está bem demais no papel central

Não conhecia o diretor Allan Fiterman. Vejo que deixou o Brasil para estudar cinema nos Estados Unidos: graduou-se em Produção de Filmes na Chapman University, passou 11 anos fora, e fez seus primeiros trabalhos lá mesmo. Depois de dois curtas, dirigiu Living the Dream (2006), com Sean Young, aquela bela atriz do Blade Runner original.

De volta ao Brasil, trabalhou na Rede Globo dirigindo episódios de novelas e diversas séries. No primeiro semestre de 2019, estava finalizando Pixinguinha, Um Homem Carinhoso, com Seu Jorge no papel do grande músico.

Fiterman e a atriz Cláudia Abreu já se conheciam de novelas: haviam trabalhado juntos em Cheias de Charme (2012) e Geração Brasil (2014). “A gente tem um entendimento muito legal, mesmo, uma relação de confiança, sabe?”, o diretor contou em entrevista ao site Papo de Cinema. “Na hora em que o filme caiu nas minhas mãos, já havia outros nomes sendo cotados para a protagonista. Mas de cara pensei: ‘tem que ser a Cacau’. Quando disse ‘vem fazer esse filme comigo’, ela me respondeu na hora: ‘quando é que é?’ Puxa, sei que a agenda dela tá sempre lotada.”

Ainda bem que o diretor escolheu Cláudia Abreu – e ainda bem que ela aceitou. Cláudia Abreu é a melhor coisa do filme, na minha opinião (juntamente com aquele plano-sequência logo na abertura). Aos 47 anos, belíssima, presença forte, a Heloísa de Anos Rebelde (1992) dá um show: sua Berenice vai deixando de lado eventuais temores, vai se assumindo cada vez mais como uma mulher poderosa, vai se soltando – e tudo nela mostra essa transformação, o gestual, as expressões do rosto.

É uma pena que haja imenso abismo entre a interpretação segura de Cláudia Abreu e as de Eduardo Moscovis e Vera Holtz. Na minha opinião, eles não estão bem.

Merece atenção esse rapaz Caio Manhente, que faz Thiago, o filho adolescente que os pais desconhecem por completo no início da narrativa. Demonstra ter talento.

O resultado final é bastante positivo. É um filme que dá prazer de se ver. E que maravilha que o cinema brasileiro tem buscado as histórias desse extraordinário Luiz Alfredo Garcia-Roza para contar. Em 2007 já havia sido lançado Achados e Perdidos, do livro de 1998, e em 2015 houve a série de TV Romance Policial: Espinosa, com oito episódios.

Ainda bem.

Anotação em junho de 2019

Berenice Procura

De Allan Fiterman, Brasil, 2017.

Com Cláudia Abreu (Berenice)

e Eduardo Moscovis (Domingos, o marido), Vera Holtz (Greta, a dona da boate), Emilio Dantas (Russo, o irmão de Isabelle), Caio Manhente (Thiago, o filho de Berenice e Domingos), Valentina Sampaio (Isabelle, a transgênero), Fabricio Assis (Dico), Alessandro Brandão (Paola), Leonardo Brício (Delegado Jair), Brigitte de Búzios (Brigitte), Ricardo Ferreira (Cardoso), Danubia Firmo (Dora Devine), Gabi Katz (Vanessa Top), Carol Marra (Jessica), Fran Burle Marx (Tati Tatuada)

Roteiro Flávia Guimarães e José Carvalho. Escrito com Allan Fiterman e Flávia Lacerda.

Baseado no romance homônimo de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Fotografia Azul Serra

Música João Paulo Mendonça

Montagem Fábio Jordão

Produção Elisa Tolomelli, EH! Filmes.

Cor, 90 min (1h30)

**1/2

Um comentário para “Berenice Procura”

  1. Confesso que Berenice Procura foi o livro do Garcia-Roza que eu menos gostei; mas, como li faz muito tempo, não sei se não estou lembrando as cenas que você comentou e os detalhes do enredo ou se a adaptação alterou muito do original. Ainda assim, se eu assistisse, é provável que dissesse o mesmo que você – que Claudia Abreu é o melhor do filme.

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