Valentin


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: Uma graça, uma beleza, uma maravilha de filme argentino sobre a vida o amor a morte, sobre infância, vida em família, as besteiras que os pais são capazes de fazer com os filhos. Um brilho.

Confesso que tenho um pouquinho de preguiça com filmes sobre infância, o mundo visto através dos olhos de criança. Já tinha visto o DVD na estante de filmes latino-americanos da 2001 e não tinha me animado a pegar; aí Mary foi à locadora e trouxe; comecei a ver com um certo pé atrás.

A má vontade desapareceu na primeira seqüência.

A câmara passeia pelo quarto do garoto Valentin, aquela bagunça de quarto de criança; passa por ele – o espectador vê o garoto rapidamente, de perfil -, continua focalizando objetos, enquanto a voz dele, em off, diz o seguinte:

 – “Olá. Eu me chamo Valentin. Tenho oito anos. Além de ir à escola, construo, em minha casa, coisas de astronáutica. Faço foguetes; estou trabalhando num traje espacial. Coisas desse tipo, entendem? Por outro lado, minha família é humilde e não tem dinheiro suficiente para me mandar para a Nasa. A única coisa que me preocupa é um detalhe físico.”

 Nesse exato momento, a câmara pega Valentin se olhando no espelho – um garotinho pequenino, com óculos gigantescos.

 – “Minha visão é cem por cento, não é disso que me queixo. O problema é o ângulo.”

 Valentin tira os óculos e vemos que ele é bem vesgo.

 “Mas dizem que não é tão necessário para os astronautas olhar direito.”

 A vida de Valentin não é um mar de rosas – muito ao contrário. A mãe o abandonou quando ele era bem pequeno; a avó paterna, com quem ele vive (Carmen Maura, a espanhola almodovariana, ótima como sempre), diz que ela traía o pai. O pai não vive com eles; mora na mesma cidade, Buenos Aires, mas é o segundo pior tipo de pai que pode haver, o ausente (pior que pai ausente, só pai molestador sexual, penso eu). Visita a mãe e o filho apenas raramente. (O pai, que aparece pouco, é interpretado pelo próprio diretor e roteirista do filme, Alejandro Agresti). Valentin tem uma tia que também nunca vê – ela saiu de casa para se casar com um taxista – e um tio que ele adora, o Tio Chice (Jean Pierre Noher), mas que mora longe, em Ushuaia, e só muito de vez em quando aparece.

 A avó perdeu o marido faz um ano, e anda pela casa falando sozinha, segundo Valentin nos conta (na verdade, ela fala com o falecido marido, segundo ela explica ao garoto). É uma mulher triste, solitária, que reclama de tudo e de todos.

 Assim, Valentin é um garoto muito, muito sozinho.

 Mas o filme, em vez de ser deprê como os nórdicos, é alegre, gostoso, engraçado, bem-humorado, leve – como bem demonstra a primeira seqüência, que tentei descrever acima.

O garoto Valentin é uma figuraça interessantíssima, riquíssima. Ele mistura, de forma fascinante, uma visão bem infantil com uma incrível – literalmente falando, coisa na qual não dá para acreditar – maturidade, capacidade de análise. O texto – Valentin vai narrando as coisas, analisando tudo o que acontece, durante todo o filme – é inteligente, divertido, irônico, gostoso.

Ele encontrará antídoto para sua solidão em um vizinho, um tipo meio bêbado, músico amador, muito simpático,  e depois, inesperadamente, em uma namorada do pai, Leticia (Julieta Cardinali, bonita e boa atriz).

Lá pelas tantas, o diretor Alejandro Agresti se permite uma digressãozinha, uma ode à figura de Che Guevara (o filme se passa no final dos anos 60). Redime-se dessa sujeição infantil ao esquerdismo bobo, no entanto, ao fazer uma veemente condenação do racismo.

Vejo no iMDB que o filme foi a escolha da Argentina para representar o país na corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Não sei quem foram os competidores dele naquele ano de 2002, e certamente ele teve bons competidores, porque o novo cinema argentino é um brilho, mas acho que ele merece a escolha. Mereceria uma indicação da Academia. Não teve, mas colecionou 13 prêmios e teve outras oito indicações.

O iMDB também informa que a produção – que teve dinheiro europeu, como tantos outros filmes argentinos recentes – testou 300 garotos para chegar a Rodrigo Noya, o garoto afinal escolhido para interpretar Valentin. O menino é um escândalo de bom.

É de babar – e de ter inveja de los hermanos, tão mais competentes do que nós hoje em dia para fazer filmes inteligentes, sensíveis, sobre a vida de pessoas comuns, gente como a gente.

Valentin

De Alejandro Agresti, Argentina-Holanda-França-Itália-Espanha, 2002

Com Rodrigo Noya, Carmen Maura, Julieta Cardinali, Jean Pierre Noher, Alejandro Agresti, Mex Urtizberea, Marina Glezer

Argumento e roteiro Alejandro Agresti

Música Paul M. van Bruggen

Produção First Floor Features, Castelao Producciones. Distribuição Miramax. Estreou em São Paulo 14/5/2004.

Cor, 86 min.

****             

9 Comentários para “Valentin”

  1. Fiquei fissurada pra ver esse filme, conhecer as alegrias, bagunças e o dia a dia de Valentim.
    Pois é, precisamos nos mirar nos argentinos e fazermos no Brasil filmes suaves, delicados, capazes de nos dar encantamento.
    Ultimamente, o que temos visto por aqui, são só tiros, polícia, vida em favela. Concorda comigo?

  2. Eu adorei Valentín, o filme e o personagem. Não lembro onde tinha visto recomendado (acabei de lembrar, hehe) mas era coisa de uma frase apenas, e mesmo assim eu fiquei super a fim de ver. Ao contrário de vc, eu gosto de filmes sobre infância e com crianças, um dos motivos que me despertou a vontade de assistir.
    Morri de pena do menino em vários momentos (e claro que derramei algumas lágrimas, rs), perdido naquela solidão, convivendo só com adultos solitários e estranhos, cada qual com suas neuroses. Sem falar no pai super ausente… Mas ele é mesmo encantador, uma figurinha adorável e o maestro do filme.
    É de ter inveja mesmo dos hermanos, e de seus ótimos filmes.

  3. O filme é mesmo maravilhoso, tocando fundo o coração de quem o assiste. Magistral a atuação do menino que, às vezes nos comove com seu drama familiar e às vezes nos faz rir de suas idéias. Cada frase, cada sequência o diretor dá uma lição a quem o assiste, com encanto e simplicidade. O diretor foi muito feliz contando uma história que me parece bastante real e verdadeira de muitos lares. A sequência final, no encontro do homem e o menino no bar… as notícias da mãe… sua reação, é de tirar o chapéu…

  4. Sergio, Sergio! Mas você acertou de novo. Fui ver o filme por indicação sua. Que primor, que sensibilidade!
    A narrativa tem uma fluidez invejável. Coisa de gente que sabe contar história, não? Realmente, temos muito o que aprender com nossos hermanos.
    Os personagens são ótimos. Ao mesmo tempo surpreendentes e comuns, na medida certa.
    A direção de arte também merece todos os elogios. A fotografia e a ambientação são perfeitas, nostálgicas. E que vontade que dá de viver naquele bairrozinho argentino, tão charmoso e bucólico! Essa beleza do lugar compõe muito bem com o drama da história. Acho que ajuda a evitar que a história resvale no sombrio, na depressão. É uma sutil afirmação da vida, apesar das perdas e frustrações.
    É surpreendente a atuação de Rodrigo Noya. Que carisma e competência em um menino tão novo! Sustenta a emoção nas cenas mais profundas, olho-no-olho, com uma maestria linda de ver. Sua voz doce e inocente na narrativa faz toda a diferença na composição da obra.
    Por fim, quero dizer que não acho que seja um filme especificamente sobre a infância, mas sobre a solidão humana. Todos ali buscam o amor, o acolhimento e a afeição tanto quanto Valentin. Também sentem-se perdidos e abandonados. E, no entanto, tudo isso pode ser sentido com um pouco de leveza e humor pela própria história e pelas coisas na vida que parecem nunca dar certo.

  5. Acabei de assistir ‘valentin’ e saí a procura de alguma resenha sensível como o filme. q bom q encontrei! 🙂

  6. Valentin,filme que ví em 2017,continua sendo o mais belo filme que ví.
    O brasileiro,Assalto ao trem pagador,também.

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