4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Não precisava, já estava muito claro, mas, com A Troca/Changeling, o primeiro dos dois filmes que fez em 2008, Clint Eastwood comprova mais uma vez, como vem fazendo sempre, no mínimo desde Os Imperdoáveis/Unforgiven, de 1992 , que é um dos melhores, mais completos, mais sensíveis cineastas da história.
É um filme duro, pesado, que conta uma história sombria, cruel, chocante, apavorante – ainda mais depois do aviso, bem no início, de que se trata de uma história real. É daquelas histórias tão impressionantes que parecem invenção de roteirista muito louco, com a cabeça cheia de ácido. É simplesmente incrível admitir que aquilo tenha acontecido de fato, numa grande cidade de um país que sempre se vendeu como a terra dos sonhos, da Justiça, do respeito aos direitos humanos.
Clint abre seu filme com o logotipo mais antigo da Universal – pelo menos o mais antigo de que eu me lembre –, usado nas primeiras décadas do século passado, naturalmente em preto-e-branco. Um primeiro lembrete de que a história que ele vai contar é daquele tempo lá atrás. A primeira tomada é uma vista geral – em preto-e-branco – de uma Los Angeles ainda não metrópole, ainda uma cidade de aparência calma, amena, muito arborizada; a câmara vai se fixar então em uma rua calma, por onde passam alguns poucos carros e um bonde. Um letreiro nos dá a data – 9 de março de 1928 –, enquanto a mesma tomada passa do P&B para a cor, e vemos uma casa nessa rua, casa ampla, simpática, sem ostentação, mas confortável. É a casa onde vivem Christine Collins (Angelina Jolie) e seu único filho, Walter (Gattlin Griffith), de nove anos.
Christine – o espectador fica sabendo nos primeiros dos 141 minutos do filme – foi abandonada pelo pai de Walter assim que ele nasceu. Ela conta para o filho que ele chegou junto com um pacote contendo uma coisa chamada Responsabilidade, e por isso – os dois não caberiam juntos na mesma casa – o pai desapareceu.
Christine conta essa história para Walter ao buscá-lo na escola, depois de mais um dia de trabalho como supervisora das operadoras da companhia telefônica; ela pergunta como foi o dia, ele conta que brigou com um colega, ela pergunta o motivo, ele diz que o colega o provocou dizendo que seu pai o havia abandonado por não gostar dele. E Christine diz então que o pai não chegou a conhecê-lo, como poderia então não gostar dele? Então Walter quer saber por que o pai foi embora, e é aí que Christine fala da coisa chamada Responsabilidade.
É também nesse mesmo diálogo, na saída de Walter da escola, que a mãe repete para ele a sua regra número 1: “Nunca comece uma briga, mas sempre termine a briga”. Uma variação de uma frase mineira que meu próprio pai costumava usar: “Dou um boi para não entrar numa briga, mas dou uma boiada para não sair dela”. Christine demonstrará, ao longo do filme, que respeita literal e fervorosamente a sua própria regra.
É uma mãe abnegada, apaixonada, absolutamente voltada para a educação do filho. Todos os momentos iniciais do filme são feitos para mostrar isso. No sábado, tinha combinado levar Walter ao cinema, mas telefonam do trabalho, fulana faltou, está confuso, é preciso que ela vá para lá. Ela vai, deixa o garoto sozinho – ele diz mais uma vez que pode tomar conta de si mesmo –, mas não vê a hora de voltar para casa. Quando volta, Walter não está.
A dor pelo desaparecimento do filho é absurda, mas a descida de Christine ao inferno está apenas começando.
Virá, a partir daí, uma história insana que mistura corrupção, autoritarismo, um regime não muito diferente dos Gulags de Stálin (embora estejamos em Los Angeles, na Terra dos Sonhos, e na própria capital mundial da indústria dos sonhos), e uma violência de que nenhum outro animal é capaz a não ser o homem.
No original, um jogo de palavras
Um pequeno parênteses sobre a palavra “changeling”, o título original do filme. Changeling é, segundo o dicionário da Longman, “um bebê secretamente trocado por outro, especialmente uma criança estúpida e feia deixada no lugar de uma bela e inteligente, supostamente por fadas”.
Clint Eastwood está cada vez melhor como diretor de atores. Todos os atores estão muito bem, indistintamente, dos coadjuvantes com poucas cenas até a estrela Angelina Jolie. Ela tem uma das melhores interpretações da carreira, num papel em que o que menos aparece é sua beleza e sua sensualidade; na maior parte do tempo, ela está maquilada para parecer menos bela, escondida sob a imensa dor da mãe separada do filho. Parece, como Mary notou, que ela vai emagrecendo à medida em que o drama de sua personagem aumenta mais e mais.
O cara é tão bom de serviço que faz até mesmo algo que parecia literalmente impossível: dirigido por Clint Eastwood, John Malkovich consegue uma boa interpretação, consegue não repetir a mesma interpretação de sempre da persona John Malkovich. Ele está domado, sob rédea curta, como o pastor que tentará ajudar Christine na sua desesperada, desesperadora via crucis.
E Clint compõe cada vez mais, e melhor. Fã absoluto de jazz, da Grande Música Americana, ele sempre teve no compositor Lennie Niehaus um fiel companheiro, como Nino Rota para Fellini, Bernard Herrmann para Hitchcock, Georges Delerue para Truffaut, John Williams para Spielberg. Aí começou a compor ele mesmo alguns temas – temas suaves, suavíssimos, doçamargos de doer, em geral solados ao piano ou ao violão –, que dava para Lennie Niehaus revestir com uma igualmente suave grande orquestra. De uns tempos para cá, passou a prescindir das composições do companheiro; neste filme aqui, como em seus últimos, todas as composições são do próprio cineasta; com Niehaus ficam apenas os arranjos e a regência da orquestra.
De volta ao mesmo tema, a relação pais e filhos
Ao mergulhar no lamaçal da corrupção na Los Angeles da primeira metade do século passado, este filme faz lembrar outros que tratam do mesmo assunto. Chinatown, de Polanski. Los Angeles Cidade Proibida/L.A. Confidential, de Curtis Hanson. Dália Negra/The Black Dahlia, de Brian de Palma. Mas a coisa forte, pegajosa, nojenta da corrupção não é o foco principal do filme, me parece – e, a rigor, o ritmo do filme até cai um pouquinho, quando se aprofunda nisso, na segunda metade.
O tema principal, me parece, é a relação entre pais e filhos.
A relação pais e filhos é uma constante na obra de Clint Eastwood. Vi outro dia numa revista que Clint é o mais regular dos diretores em atuação hoje em dia, regular no sentido de ser constante, de se manter em relevância; é bem verdade. Poderia acrescentar que ele é também o mais constante em abordar sempre, das mais diferentes maneiras, o mesmo tema, a relação pais e filhos.
Em 1997, logo depois de ver Poder Absoluto/Absolute Power, o filme de e com Clint daquele ano, comecei uma anotação que, por falta de tempo ou de inteligência, ou os dois, acabei não concluindo: “A indústria vai vender este filme como um thriller envolvendo o presidente dos Estados Unidos – e é também. Mas é principalmente a história de uma relação mal resolvida entre um pai na verdade abnegado e uma filha que nega a relação com ele.”
Em Poder Absoluto, Clint interpreta Luther Whitney, um talentoso, competente ladrão de jóias que, durante uma ação na mansão de um milionário, testemunha um crime cometido por um altíssimo figurão da política americana. Com a mesma competência com que invade mansões para roubar, Luther Whitney de vez em quando visita a casa da filha – sem o consentimento e a presença dela – para deixar presentes, olhar a geladeira, preocupar-se com a vida não saudável dela. A filha, interpretada por Laura Linney, renega o pai por causa da profissão que ele escolheu, prometeu abandonar, mas não abandona nunca.
Numa seqüência desse mesmo filme, aparece uma jovem que estuda arte e visita um museu; é interpretada por Alison Eastwood, uma das muitas filhas dele. Alison teve um papel mais importante em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, feito também em 1997. Na trilha sonora do filme, toda com músicas de Johnny Mercer, nascido na cidade de Savannah, onde se passa a ação, Alison interpreta, e muito bem, Come Rain or Come Shine.
Em Menina de Ouro/Million Dollar Baby, de 2004, o ex-lutador e hoje treinador de boxe Frankie Dunn, interpretado pelo próprio Clint, tem uma relação nunca resolvida com a filha – bem semelhante à do ladrão Luther Whitney com a dele. Quando entra na sua vida a garota Maggie (Hilary Swank), uma lutadora que promete, é um pouco como se Frankie quisesse recompensá-la com o carinho que deveria ter dado, e não deu, à sua filha.
Os personagens de Clint Eastwood estão sempre, de uma maneira ou de outra, em dívida para com os filhos; não deram a eles o amor que deveriam ter dado na infância; percebem isso muito tarde, e de alguma forma tentam recuperar depois o tempo perdido.
Mais ou menos da mesma forma com que o cineasta Clint Eastwood, depois de ter atuado em dezenas e dezenas de filmes – westerns e policiais – em que mata pessoas como se matam baratas, passou, depois de velho, a fazer filmes em que demonstra o tamanho absurdo que é tirar a vida de quem quer que seja, até mesmo de um assassino frio e cruel.
“É como se ele estivesse. a cada momento, se penitenciando por ter, de alguma forma, participado da construção do cinema como culto à violência. Se purgando dos pecados. Examinando as culpas. Tentando ver o outro lado”, conforme eu mesmo escrevi em 1996 sobre o filme dele de 1993, Um Mundo Perfeito.
Em Os Imperdoáveis, de 1992, por exemplo, depois de atirar em um sujeito que fica perdendo sangue lá ao longe, o ex-pistoleiro Bill Munny berra para que o colega da sua vítima dê um pouco de água para ele, para mitigar sua dor. Bill Munny, aliás, só aceita fazer o serviço proposto pelas prostitutas da cidade – vingar-se por elas dos vaqueiros que agrediram violentamente uma colega que riu do pauzinho pequeno de um deles – para ganhar algum dinheiro e assim cuidar melhor dos filhos que sua mulher Claudia deixou só para ele criar, ao morrer cedo demais, depois de curá-lo dos vícios da bebida e das armas.
Em Sobre Meninos e Lobos/Mystic River, de 2003, tudo, absolutamente tudo gira em torno dos filhos, do que se quer para os filhos, do que a crueldade dos outros pode fazer contra eles irremediável, indelevelmente.
Em Um Mundo Perfeito/A Perfect World, Clint pegou pesado na coisa da falta do pai, da figura paterna. Me permito citar a mim mesmo de novo: “Tudo se explica pela falta do pai, tudo faz o encontro do pequeno ladrão que vira grande bandido com o menino apavorado existir pela carência da figura paterna”.
“Como a fisgada no membro que já perdi”
Neste filme aqui, também há o pai ausente, mas na verdade isso não é o que importa. Ao contrário do que aconteceu em tantos outros filmes do diretor, a ênfase aqui é no amor da mãe – e uma belíssima mãe, abnegada, apaixonada, sempre presente.
Mas – e é triste ver isso – é como se não fosse possível existirem ao mesmo tempo os dois, juntos e ao vivo, a mãe (ou o pai) e o filho. Nos outros filmes, o pai havia sido ausente, havia faltado aos seus deveres. Aqui, a mãe é abnegada, apaixonada, está sempre presente, o tempo todo – mas falta o filho, que era a razão da vida dela.
Grande, imenso, colossal Clint Eastwood.
A Troca/Changeling
De Clint Eastwood, EUA, 2008
Com Angelina Jolie, John Malkovich, Gattlin Griffith, Michael Kelly, Frank Wood, Jason Butler Harner
Roteiro J. Michael Straczynski
Música Clint Eastwood
Arranjos e regência Lennie Niehaus
Fotografia Tom Stern
Produção Universal, Imagine, Relativity, Malpaso. Estreou em SP 9/1/2009
Cor, 141 min
***1/2
Título em Portugal: A Troca. Na França: L’Échange.
Um bom filme, principalmente por mostrar a mão opressora dos homens sobre as mulheres.
Se você não viu o filme, não leia a partir de agora
Aquelas cenas no hospício e toda aquela maldade são terríveis. Tb dá mta raiva ver a polícia corrupta e mentirosa querendo fazer uma mãe acreditar que uma criança que ela nunca viu mais gorda é o filho dela.
A tristeza da personagem da Jolie é muito tocante, principalmente pq ela fica lá, sempre sofrendo, sempre com esperança.
Gostei do filme ter abordado um lado feminista mostrando a personagem trabalhando, se sustentando, criando um filho sozinha, o que naquele tempo devia soar até como aberração, já que até hj as pessoas falam mal das mães solteiras. Ê mundinho atrasado!
Só achei o filme longo demais, pra variar, e tiraria pelo menos meia hora. Achei que o aprofundamento na história do serial killer foi desnecessária. Me deixou mal, fiquei super impressionada. Mais impressionante é saber que a história foi real e que a avó do monstro o ajudou.
Eu não gosto do John Malkovich , acho que ele é afetado em suas atuações, mas vc tem razão: o Clint soube domá-lo. Gostei mto do papel dele, da humanidade e coragem do personagem (já não se fazem pastores como antigamente). E a Angelina tá anoréxica, como 99% das atrizes hollywoodianas e globais. Ela está bem, mas não me conseguiu fazer chorar; e olha que pra chorar eu não preciso trocar de blusa, como diz minha tia, rs.
Acho que esta é uma obra menor de Clint Eastwood, é um bom filme nisso concordo mas não me parece que mereça as 4 estrelas que o Sérgio usa na sua classificação.
É curioso que nunca vi esta tabela em nenhum site ou jornal ou blogue.
O mais usual são as 5 * e às vezes ainda uma bola preta, que significa “Não Veja!” ou “A Evitar!”
Penso que este filme andou por outras mãos até aterrar na mesa do Clint, portanto não é um projecto seu de origem.
Mas posso estar enganado.
Um filme duro, brutal, incômodo, muito pesado. Novamente, Clint mergulha em histórias sombrias e profundamente dilacerantes (lembro-me também do “Menina de ouro”) com uma franqueza surpreendente.
Poucas vezes Angelina esteve tão bem. Ainda assim, acho que outra atriz aprofundaria o tom dramático. Foi uma boa atuação, mas longe de ser impecável.
Palmas para a direção maravilhosa de Clint, — que, como bem lembraram, conseguiu domar Malkovich — e para a excelente fotografia, que teve muita sensibilidade para representar as variações emocionais ao longo do filme.
Abraço!
Não sei se alguém reparou mas a Angelina com o Make-up da época exibe aquela bocarra que alguns apreciam muito e que ela deve ainda “melhorar” com tratamentos de silicone ou coisa do género.
Peço desculpa aos milhões de admiradores.