Para aqueles que não estão bem familiarizados com termos específicos da linguagem cinematográfica, aqui vão algumas definições; mais abaixo há comentários mais detalhados sobre esses termos e seus usos. Se quiser ir diretamente até um deles, lembre-se do Editar – Localizar Nesta Página (control + F).
Campo e contracampo – O campo é o espaço que é focalizado pela câmara; naturalmente, a largura e a profundidade do espaço dependem do tipo de lente usada. Já o contracampo é uma sucessão de tomadas ou planos mostrando ora um, ora o outro interlocutor de um diálogo.
Director’s Cut – expressão usada para determinar que aquele é o corte final do filme, a montagem, a versão final, de acordo com a vontade expressa e específica do seu diretor.
Fade in, fade out e fusão – recursos usados na montagem, na junção de uma cena ou uma seqüência com outra. Fade out é quando o final da seqüência vai desaparecendo e a tela fica negra por alguns segundos, ou frações de segundos. Fade in é o contrário, quando vai surgindo da tela então negra a imagem da cena ou seqüência seguinte. Fusão é quando a imagem de uma cena ou uma seqüência vai se dissolvendo enquanto a seguinte já está aparecendo; por alguns segundos, ou frações de segundos, estão na tela duas imagens diferentes. Normalmente, de uma maneira geral, a fusão indica uma passagem de tempo mais rápida entre uma seqüência e outra do que quando há o fade out e fade in.
Montagem – a arte de unir tomadas ou planos para formar uma seqüência, e depois a de unir uma seqüência do filme à seguinte e assim sucessivamente. Para muitos cineastas, é a parte essencial e mais importante da produção de uma obra. Em inglês, usa-se Edit, editing, editor.
Panorâmica – movimento circular de uma câmara; plano filmado com esse movimento.
Plano ou tomada – registro ininterrupto de um trecho de filme; pode ser curtíssimo ou extremamente longo – mas é sempre ininterrupta, sem corte. Em inglês, take.
Plano-seqüência – Um único plano, ou única tomada, sem corte, portanto, em geral usando movimentos de câmara, longo, que engloba toda uma cena ou seqüência.
Plongée e contreplongée, ou contraplongée – Essas expressões designam posições da câmara em relação ao que está sendo filmado; plongée é quando a câmara está acima da pessoa filmada; contreplongée, ao contrário, é quando a câmara filma uma pessoa ou objeto de baixo para cima. Fala-se mais dessas posições, abaixo.
Quadro – Cada um dos fotogramas captados pela câmara e que, quando projetados na tela, à velocidade de 24 por segundo, dão a impressão de movimento. Em inglês, frame.
Seqüência ou cena – conjunto de tomadas que forma um trecho contínuo da história que está sendo contada.
Tempo real – nada a ver com noticiário em tempo real, notícias online. Usa-se a expressão para designar trechos de filmes ou filmes inteiros em que não há corte no tempo, e cada minuto de ação corresponde a um minuto exato na vida real.
Travelling – Movimento da câmara, em geral sobre trilhos, carrinho móvel ou carregada por uma grua, guindaste.
Código Hays – Conjunto de regras rígidas de autocensura imposto aos estúdios americanos em 1930, e que prevaleceu até o final dos anos 1950, início dos 1960. Eis o que ele dizia, literalmente, no item Princípios Gerais:
“Nenhum filme será produzido que possa fazer abaixar os princípios morais daqueles que irão vê-lo. Desta forma, a simpatia da audiência jamais deve ser jogada para o lado do crime, do fazer errado, mal ou pecado. Princípios corretos de vida, sujeitos apenas às exigências do drama e do entretenimento, devem ser apresentados. A lei, natural ou humana, não será ridicularizada, nem simpatia pela sua violação será criada.”
Esforço de guerra – expressão criada para designar os filmes feitos para levantar ou manter alto o moral da população durante período de guerra – em especial para os filmes ingleses e americanos feitos durante a Segunda Guerra Mundial (1937-1945).
Wasp – sigla em inglês para designar branco, anglo-saxônico e protestante (white, anglo-saxon, protestant). A expressão envolve um óbvio preconceito de classe; quando se diz Wasp está se querendo dizer americano da gema, não imigrante, não pobre.
Tomada ou plano, cena ou seqüência, montagem
“A tomada ou plano é a palavra; a cena ou seqüência é a frase, a sentença, a oração; a disposição das tomadas em sua ordem correta – a montagem – é a gramática e a sintaxe.”
Essa definição pode ser de grande ajuda para a compreensão de alguns dos principais termos da linguagem cinematográfica; ela é citada pelo inglês Ivor Montagu, que fez de quase tudo no cinema e trabalhou com Alfred Hitchcock e Serguei M. Eisenstein. Há quem não goste da analogia com a linguagem, com as palavras: “Esqueça, de uma vez por todas, as comparações do cinema com a literatura. Isto é mau para o cinema – como, aliás, para a literatura”, diz o francês Franz Weyergans. “O plano é um fragmento do tempo dispendido, é um pedaço da realidade em movimento que nos é proposto”, define.
Ele tem lá sua razão – mas a velha definição citada por Montagu de fato ajuda bastante.
Como a palavra é a menor divisão de um texto, a tomada (do inglês take) ou plano é a menor divisão de um filme; é o que a câmara grava entre o grito do diretor “E ação!” e o grito de “Corta!” Não há quem não tenha visto filmes em que essas coisas aparecem – Luzes, Câmara… e Ação!, e depois o E Corta! O plano, ou tomada, é isto: é o que acontece enquanto a câmara está rolando, captando a imagem, sem corte.
(Um parênteses, um pequeno detalhe: a rigor, a rigor, a palavra não é a menor divisão de um texto, certo? A menor divisão mesmo seria a sílaba, ou o fonema, ou a letra. OK. Para prosseguir na analogia, a sílaba, ou o fonema, ou a letra, seria, no cinema, o quadro, ou frame, em inglês; no início do cinema, na era dos filmes mudos, os projetores passavam 18 quadros por segundo, para resultar no movimento; depois do advento do som, em 1927, a velocidade padrão passou a ser de 24 quadros por segundo – o que resultou na famosa frase de Jean-Luc Godard, “a fotografia é a verdade e o cinema é a verdade 24 quadros por segundo”, e também no fato de que, quando vemos hoje muitos dos filmes mudos, dá aquela impressão de que estamos vendo tudo aceleradinho. De qualquer maneira, o quadro é coisa técnica, pedaço da película, do celulóide – coisa que as câmaras e projetores da era digital já até abandonaram. Por isso, a rigor, permanece válida a definição de que um plano, não importa quantos quadros ele abranja, é a menor unidade de um filme.)
Um conjunto de planos forma uma cena, ou seqüencia. Uma seqüência que mostra um diálogo de duas pessoas, um homem e uma mulher, por exemplo, pode ser formada por várias tomadas: uma tomada da mulher falando; uma tomada do homem ouvindo; uma tomada do homem respondendo; uma tomada da mulher ouvindo; uma tomada em que aparecem os dois juntos, e assim por diante. Ou a mesma seqüência pode ser formada por apenas duas ou três tomadas mais longas. O ritmo vai depender do que o autor quiser dizer.
A arte de unir tomadas para formar uma seqüência, e depois unir todas as seqüências do filme, é a montagem, do francês montage. Nos países de língua inglesa usa-se o verbo edit, o substantivo editing, ou editor para a pessoa que faz a montagem.
Como editing é basicamente a ação de cortar e juntar – cutting and joining, como diz Montagu -, a palavra cutting, ou cut, passou a ser muito usada, mais recentemente, para substituir a expressão editing. Volta e meia são lançados DVDs com o Director’s Cut – ou seja, a montagem final feita pelo ou sob supervisão direta do próprio diretor do filme, e não pelos produtores, pelo estúdio; ou seja, o filme com o corte final, portanto a versão final, do diretor.
Os tipos de tomada ou plano pela distância entre os personagens e a câmara
Há toda uma nomenclatura para definir os tipos de tomada ou plano de acordo com o que cabe na tela, o que vai ser mostrado na tela, resultado da distância entra a câmara e o que está sendo filmado. Franz Weyergans cita os seguintes nomes de planos, partindo do mais distante para o mais aproximado no livro Tu e o Cinema, que, como já se deduz do próprio título, é uma edição portuguesa:
Plano geral – É o plano das vastas paisagens, das vastas multidões – o que na pintura seria o afresco. É o plano muito usado nas superproduções, que marca a grande diferença entre o cinema e a TV; é típíco do Cinemascope, agora chamado Widescreen. John Ford, em seus westerns, usava muito os planos gerais. Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, está cheio deles, maravilhosos, suntuosos. Spartacus, de Stanley Kubrick, tem alguns dos mais belos planos gerais da história do cinema – no campo de batalha, de um lado as coortes de Crassus, organizadíssimas, em fileiras perfeitas, uniformes; e de outro a bagunça desorganizada de escravos maltrapilhos, cada um com uma espécie de arma nas mãos.
Plano de conjunto – É o que consegue captar um grupo de pessoas, vistas inteiras, dos pés às cabeças. Imagine uma tomada em que um grupo de umas dez pessoas faz um piquenique num campo, ou está reunida numa grande sala. Luchino Visconti fez majestáticos planos de conjunto nos salões de baile em O Leopardo, que Martin Scorsese homenageou no seu A Época da Inocência. Diz Weyergans: “Os personagens existem, tanto por si mesmos como pelo grupo que formam. O espaço é vasto bastante para poderem movimentar-se. Com o olhar já podemos abranger o quadro muito concreto; e também podemos ligar os personagens um ao outro, no trajeto do nosso olhar”.
Plano americano – Basicamente, é o plano ou tomada em que vemos meio corpo das pessoas, em geral da cintura para cima. (Há quem, como Robert Bresson, prefira focalizar às vezes as pernas dos personagens.) É também chamado de meio-conjunto. “É o plano mais clássico”, diz Weyergans, “aquele a que o espectador não presta atenção, porque as suas dimensões e a sua disposição correspondem, muito exatamente, às da vida real. Os exemplos abundam. Antonioni emprega freqüentemente, e muito bem, esse plano de meio-conjunto. Godard e Truffaut utilizam muitas vezes o mesmo plano; pretendem, a todo o custo, coincidir com a vida. De resto, todos os cineastas o utilizam com freqüência. Importante, para nós que estamos a fazer um juízo, é saber como. Eis a única questão a pôr: é fiel ao nosso olhar natural?”
Plano médio, detalhe ou close-up – Aqui o espectador vê o rosto de uma pessoa ocupando toda a tela, ou um detalhe de seu corpo, os ombros, as mãos – como dificilmente alguém vê um outro no dia-a-dia das pessoas, a não ser numa luta-livre ou no sexo e suas preliminares. Os autores mais antigos, tradicionais, metem o pau no close-up, ou, no mínimo, do abuso dele. Franz Weyergens, para citá-lo mais uma vez, diz que o plano médio “nos faz entrar no domínio da ficção pura. É raro enfrentarmos um ser de muito perto, a não ser que nós mesmos sejamos atores. Logo que surge o plano médio – a cabeça ou o busto, por exemplo, ou o personagem a olhar através duma janela, ou o braço a brandir uma arma -, tornamo-nos atores.”
Ivor Montagu, no livro Film Word, vai mais longe e diz que D.W. Griffith inventou o close-up como uma maneira de economizar dinheiro da produção. E conta uma história deliciosa: “Quando os espectadores viram pela primeira vez um close-up, bateram os pés no chão e gritaram: ‘Mostrem os pés deles!'”
Mas o fato é que os planos mais aproximados das pessoas e das coisas, os closes, como todo mundo fala, foram tomando conta do cinema. Dominaram a televisão, e invadiram o cinema como uma praga de gafanhotos. Depois dos close-up vieram o que brinco chamando de ultra-super-big-close-ups, o detalhe do detalhe do detalhe do lóbulo de uma orelha, por exemplo, numa influência do cinema publicitário. Mas não só dele: o grande Sergio Leone, por exemplo, adora um ultra-super-big-close-up, e abusa deles em filmes como Três Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste, em que, na longa seqüência inicial, uma mosca atazana a vida de um dos bandidos que aguardam a chegada de alguém numa estação de trem perdida num fim de mundo.
Não posso jurar, mas acho que John Ford jamais usou um ultra-super-big-close-up em nenhum de seus mais de cem filmes.
As posições da câmara
Desde os primórdios, e sempre, e ainda hoje, diretores usam a colocação da câmara em relação a seus personagens para tentar exprimir significados. A câmara colocada na altura do chão, pegando uma pessoa acima dela, pode dar uma sensação de que aquela pessoa é forte, poderosa, imensa, gigantesca, opressiva – o nome é contreplongée. Não há outra palavra para isso, nem em inglês, nem em português; usa-se a expressão francesa. O contrário dela, quando a câmara está de cima e a pessoa filmada embaixo, é, logicamente, o plongée.
Quase todo mundo usa plongées e contreplongées, mas o grande mestre nisso foi Orson Welles. E ele conseguiu até mesmo alterar a lógica normal de que uma tomada em plongée diminui a força da pessoa filmada: em uma cena de Cidadão Kane, há um plongée dele mesmo, o ator Orson Welles interpretando o magnata da imprensa, em meio a pacotes de seus jornais espalhados no chão – ele é visto de cima, mas a imagem que se tem é de um homem monstruoso, poderoso, com o mundo a seus pés. (Aliás, Cidadão Kane em Portugal se chamou O Mundo a Seus Pés.)
Desconheço a existência de um nome, em qualquer língua que seja, para definir as tomadas em que a câmara fica torta, entortada, em que o chão fica na diagonal – uma posição que, convenhamos, não faz sentido algum, a não ser talvez para um esportista que esteja catando cavaco, desequilibrado, pouco antes de cair no chão. Filminhos de suspense ou terror, e também diretores estreantes, costumam entortar muito a câmara – para tentar assustar, no primeiro caso, ou para, no segundo, tentar dizer para os críticos “olha como eu sou criativo”. Se há nome para isso, não sei, mas acho que em 99% dos casos o nome certo seria falta de talento, excesso de criativol, besteira.
Os movimentos da câmara
Bem no começo, a câmara ficava parada, captando o movimento de alguma coisa. Como no famosíssimo filme dos irmãos Lumière, L’Arrivée d’un train à La Ciotat, de 1895: a câmara, estática, filmou a aproximação do trem; ele vinha chegando, vinha chegando, vinha chegando, chegava perto, estava mais perto ainda – conta-se que os espectadores levavam tremendo susto, com medo de que o trem fosse sair da tela e passar por cima deles, e instintivamente se abaixavam em suas cadeiras.
Cento e poucos anos depois, uma superprodução hollywoodiana como Viagem ao Centro da Terra vem em 3D com uma seqüência de um carrinho de mão sobre trilhos avançando em direção à tela, para tentar assustar dos espectadores de hoje, que já viram tudo e mais um pouco. Mas isso é uma digressão.
Praticamente desde sempre, desde os primórdios, o cinema fez a câmara se mover. Não bastava que houvesse objetos ou pessoas em movimento – a câmara também se movia, e se move até hoje. Afinal, e é preciso lembrar disso sempre, cinema vem do grego kinema, que significa pura e simplesmente movimento.
Sempre que a câmara se move, temos um travelling. Este é o nome de uma tomada em que a câmara anda – de travel, viagem, viajar. A câmara se move para frente, para trás, para os lados, em torno dela mesma – o travelling, ou depois o zoom, a aproximação ou distanciamento do objeto filmado pelo uso dos recursos das lentes da câmara, ou as duas coisas combinadas, têm a maravilhosa capacidade de, numa única tomada ou plano, passar do plano geral para o close-up, ou vice-versa.
A câmara pode se mover em carrinhos colocados sobre trilhos, como a gente vê muito nos making of dos filmes em DVD. Ou pode se mover em gruas, pequenos guindastes – crane, no inglês que vemos nos créditos finais. Ou, é claro, pode se mover carregada pelo diretor (como Claude Lelouch fazia no início da carreira), pelo diretor de fotografia ou por um de seus assistentes. Bem usada, a câmara de mão pode dar ótimo efeito – ela pode servir como a visão subjetiva do personagem, como se o que está na tela fosse o que os olhos do personagem está vendo. Mal usada, ou usada excessivamente, cansa, enche, dá preguiça.
Diretores jovens, ou que pretendem inovar, adoram uma câmara de mão. O cinema novo brasileiro dos anos 60 tinha o mote “uma câmara na mão, uma idéia na cabeça”. Gláuber Rocha usava e abusava da câmara de mão; Deus e o Diabo na Terra do Sol tem um monte de seqüências com ela. Trinta e tantos anos depois, os dinamarqueses que criaram o Dogma 95, com a intenção de “purificar” o ato de filmar e livrar os filmes dos orçamentos caros e dos efeitos especiais, defendiam o uso exclusivo da câmara de mão e proibiam o uso de iluminação especial; fizeram alguns filmes, como Festa de Família/Festen, por exemplo, que dão dor de cabeça no espectador, de tanta câmara de mão, tanto plano torto, tanta imagem mal iluminada.
Felizmente (na minha opinião, é claro) esses modismos passam, e volta-se ao bom e velho e básico conceito de que bom é contar direito uma boa história – se possível com a união perfeita entre forma e conteúdo, de tal maneira que um ajude o outro, deixe o outro fluir legal, e que um não se sobressaia ao outro.
Um travelling bem feito, o cinema no sentido literal de kinema, a vida em movimento captada por uma câmara em movimento, é uma das belas coisas da vida.
Hitchcock é o mestre do travelling. Sua câmara se move com suavidade, com sutileza – não atrapalha em nada a narrativa, não desvia a atenção do espectador. Só adiciona beleza. Um Corpo Que Cai tem travelling quase o filme inteiro – quando se vê o filme pela segunda (ou terceira, ou quarta, ou quinta), é um prazer imenso acompanhar o movimento suave, harmonioso, da câmara que segue os movimentos suaves harmoniosos, das personagens de Kim Novak.
Em Festim Diabólico/Rope, de 1948, ele se excedeu; o filme fala de coisas muito sérias, o tema é pesado, denso, mas a beleza visual, a forma com que ele filma é um estupor. Toda a ação se passa dentro de um apartamento, com três personagens andando pelos aposentos – e a câmara, em travellings quase contínuos, vai seguindo os passos dos personagens. Nesse filme, além dos travellings, ele usou outro recurso extraordinário, que só o cinema possui: o plano-seqüência. O plano-seqüência é a junção das duas coisas – o plano, ou tomada, é tão longo, sem corte algum, que é ao mesmo tempo uma seqüencia inteira. Uma frase extremamente longa, sem ponto final, seria de amargar – mas, como o cinema não é literatura, pode fazer isso de maneira maravilhosa.
Nesse filme, Hitchcock levou a experiência ao ponto mais radical – todo o filme é um único plano-seqüência. Como na época os rolos de filme tinham tamanho pequeno, de não mais que 20 minutos, Hitchcock de vez em quando faz a câmara em travelling passar por exemplo por trás de um dos personagens, e no momento exato em que está passando pelo terno escuro, ele faz o corte, termina o plano, para depois fazer a montagem com o plano seguinte, continuando o mesmo movimento, de tal forma que temos no total do filme uns seis ou sete ou oito planos, mas todos unidos de forma a que nos parece um único plano, o mais longo plano-seqüência da história. E é também um dos pouquíssimos filmes em tempo real já realizados – cada minuto dos 80 de duração do filme corresponde a um minuto da realidade que está sendo mostrada.
Brian De Palma, um dos diretores mais declaradamente hitchcockianos, sempre usou e abusou dos travellings e dos planos-seqüência. A abertura de Olhos de Serpente – um elétrico Nicolas Cage andando pra cá e pra lá no meio de uma arena gigantesca e lotada para uma luta de boxe, milhares de testemunhas de um crime e ninguém vendo nada, é um tour-de-force, uma beleza extraordinária, um dos mais esplenderosos, visualmente, de toda a história.
O plano-seqüência é uma festa para os olhos, uma espécie assim de festa de fogos de artifício, e bons diretores estão sempre querendo fazer o seu. Robert Altman é outro que adora fazer belos planos-seqüência – em O Jogador há vários, o da apresentação é um brilho. Tim Robbins abriu seu O Poder Vai Dançar com um dos mais extraordinários planos-seqüência da história, em que cabe um afresco sobre os Estados Unidos mergulhados na Grande Depressão dos anos 30.
O jovem inglês Joe Wright teve a ousadia, em Desejo e Reparação/Atonement, de 2007, de condensar cerca de cem páginas da obra-prima do escritor Ian McEwan em um único plano-seqüência deslumbrante, de passar para a história, de figurar em qualquer antologia das melhores cenas da história do cinema – em mais de oito minutos sem um só corte, mostrou toda a bestialidade de uma guerra.
Vendo belezas como estas, dá até para achar que, no final das contas, e contra tantas evidências, a humanidade não é um projeto que deu errado.
Sérgio Vaz
Julho de 2008