Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat

Nota: ★★★★

Lifeboat, no Brasil Um Barco e Nove Destinos, lançado em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, é um dos melhores dos 53 longa-metragens dirigidos por Alfred Hitchcock. É também – tive certeza disso ao revê-lo agora – um dos mais sérios, mais pesados, mais densos filmes de sua extraordinária obra.

E aqui me permito repetir argumentos e exemplos que usei ao escrever sobre O Homem Errado, de 1956, um dos únicos filmes do realizador que é, como este Lifeboat, um drama sério, pesado, denso.

A imensa maioria dos filmes de Hitchcock fala de crimes, assassinatos, cadáveres. Mas tem, como assim um segundo tom – logo abaixo da coisa de perseguir o suspense – o bom humor, a ironia, a gozação. Alguns são comédias escrachadas, como Um Casal do Barulho/Mr. and Mrs. Smith (1941), um filme bastante bobo, e O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry (1955), que é uma absoluta maravilha, uma delícia, uma pérola.

Em vários deles, o tom cômico aparece com imenso destaque, tanto na fase inglesa, lá atrás – A Dama Oculta/The Lady Vanishes (1938) é um exemplo perfeito – quanto nos seus últimos filmes, Frenesi/Frenzy (1972) e Trama Macabra/Family Plot (1976).

Há muito humor também, por exemplo, em Janela Indiscreta/Rear Window (1954), Ladrão de Casaca/To Catch a Thief (1955), Intriga Internacional/North by Northwest (1959).

Lifeboat, não. Isto aqui é um drama sério, pesado, denso. Não é feito para divertir, encantar – sequer para emocionar. É feito para fazer o espectador pensar.

É também o filme mais político de Hitchcock. Décadas mais tarde, já no final da carreira, ele faria dois filmes nada, mas nada, nada simpáticos ao comunismo, Cortina Rasgada (1966) e Topázio (1969) – filmes que, na época, foram chamados de os filmes reacionários de Hitchcock, Mas, a rigor, nem mesmo Cortina Rasgada e Topázio são propriamente políticos.

Lifeboat é. Lifeboat discute ideologia. Coloca em questão não apenas se os homens que lutaram pelo nazismo têm o direito de serem considerados inocentes até prova em contrário, se merecem o benefício da dúvida, como o resto da humanidade – até porque muitos deles, talvez a maioria, estivessem apenas cumprindo ordens, sendo forçados a cumprir ordens.

Não apenas. O filme vai ainda mais adiante, e questiona até mesmo se aqueles homens não mereceriam ser exterminados como ratos – da mesma forma com que eles lutaram para exterminar os judeus, os ciganos, os homossexuais, os aleijados.

É barra pesada. E põe pesada nisso.

E é absolutamente fascinante pensar que Alfred Hitchcock, o realizador que seria tachado de reacionário, está aqui filmando uma história criada por John Steinbeck, um escritor que jamais escondeu sua absoluta simpatia pelo socialismo, pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

No barco salva-vidas, uma mulher vestida para festa

O filme abre no momento em que um cargueiro inglês que viajava dos Estados Unidos para a Inglaterra está acabando de afundar, logo após ter sido atingido por torpedos de um submarino alemão.

É uma abertura chocante, impactante, fortíssima – e brilhantemente executada.

Vamos vendo objetos flutuando aqui e ali no mar. Vemos o ponto mais alto do navio a vapor, a imensa chaminé, sendo tragada pelas águas.

Num amplo, bem amplo bote salva-vidas – o lifeboat do título original –, há uma mulher perfeitamente vestida, vestida como se estivesse de saída para o teatro, ou o jantar em restaurante elegante.

A visão daquela mulher é chocante, estranhíssima, fantástica.

Como é Hitchcock – mesmo o mais sério dos filmes de Hitchcock –, a câmara focaliza de perto as pernas dela. A mulher está um tanto chateada porque, no meio daquela coisa imprevista que é um naufrágio, suas meias de nylon haviam rasgado. Não um rasgão gigantesco, mas um rasgão, afinal.

Ela havia sido, muito provavelmente, um dos primeiros passageiros a serem colocados num bote salva-vidas. Como aconteceu no naufrágio do Titanic, os primeiros botes salva-vidas desceram até o mar ainda com poucos passageiros, porque muitos demoraram tempo demais a acreditar que era mesmo necessário entrar num deles, que o navio estava de fato afundando. Isso não é dito, mas dá para o espectador inferir que é o que pode explicar o fato de um bote tão grande estar com apenas uma pessoa.

Pouco a pouco, outras vítimas do naufrágio vão chegando até aquele bote salva-vidas – nadando, ou agarradas a algum pedaço de madeira.

Bem rapidamente, haverá ali nove pessoas, nove seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, segundo a doutrina cristã. Os nove do título brasileiro, Um Barco e Nove Destinos.

Um microcosmo – um exemplo da variedade de tipos de seres humanos que povoam o planeta.

Há momentos em Lifeboat em que a gente chega àquela conclusão terrível: a humanidade parece mesmo ser uma invenção que, infelizmente, não deu certo.

Quem são os nove sobreviventes do naufrágio

Aqui vão alguns informações básicas sobre os nove personagens e, quando for o caso, sobre os atores que os interpretam, seguindo a ordem com que os nomes destes últimos aparecem nos cartazes e nos créditos iniciais do filme.

* Tallulah Bankhead, Connie Porter.

Connie Porter é a primeira pessoa que o espectador vê, a mulher que está sozinha no bote salva-vidas, vestida para festa. É uma escritora ou jornalista, não ficamos sabendo exatamente se uma coisa, se outra, se as duas. Seja jornalista, seja escritora, ou as duas coisas, Connie é famosa, e agora também rica. Veremos que teve origem humilde – mas casou-se com um homem muito rico, e depois da riqueza conquistou também a fama.

O roteiro (assinado por Jo Swerling), a interpretação de Tallulah Bankhead e a forma com que Hitchcock a apresenta ao espectador – tudo nos leva, a princípio, a achar que Connie Porter é uma deslumbrada, uma socialite fútil, chata, babaca. Depois, com o tempo, vamos vendo que não é bem assim. Ela tem um pouco dessa coisa de deslumbrada, de metida, de chiquezinha – mas é inteligente, sensível, boa observadora do comportamento humano. Ao contrário do que poderia parecer no inicinho, não é uma pessoa de mau caráter – muito ao contrário.

Há um lado fascinante na personagem: naqueles tempos de Código Hays, de autocensura férrea acordada pelos estúdios de Hollywood, Connie Porter era uma mulher livre, liberal, aberta, que gostava de namorar, que tinha experimentado vários e vários homens na vida.

A atriz Tallulah Bankhead… Ah, Tallulah Bankhead… O nome sempre me foi familiar, mas na realidade não sei coisa alguma dela. Nasceu em 1902 no interior do Alabama, morreu em 1968, ao 66 anos, portanto. Apenas 25 títulos na filmografia, em vários deles atriz principal, primeiro nome nos créditos – foi assim neste aqui e também em Czarina/A Royal Scandal (1945), de Ernst Lubitsch, em que interpreta Catarina, a Grande, da Rússia, e em Fanatismo Macabro/Fanatic (1965),

* William Bendix, Gus Smith.

Gus Smith trabalhava na sala de rádio do navio inglês atingido pelos torpedos alemães. É um sujeito grandão, forte, um tanto bronco, daquele tipo bronco boa gente. Tem paixão por esportes e por dança, e é absolutamente apaixonado pela namorada, Rose. Foi ferido na perna por um estilhaço de ferro quando o navio foi atingido pelos torpedos nazistas – e a perna vai gangrenar. Será preciso amputá-la, ali, naquele bote salva-vidas – ou então ele correrá o risco de morrer.

Como acontece com Connie Porter, também há um detalhe fascinante neste personagem: Gus, agora um perfeito americano, vem de família alemã. Seu nome na verdade é Schmidt – que ele mudou para Smith para esconder a origem alemã. Tem um profundo ódio dos nazistas, do nazismo – e tem motivos particulares, fortes, para isso. Tem vergonha e nojo do que os nazistas fizeram com a Alemanha, com os alemães.

William Bendix (1906-1964) trabalhou em 93 filmes e séries entre 1940 e 1964; com um pouco de exagero, dá para dizer que não houve filme policial ou noir dos anos 1940 que não tivesse William Bendix no papel de um sujeito grandalhão, fortão, bronco – às vezes perigoso, às vezes boa figura. Neste 50 Anos de Filmes já há cinco em que ele trabalha: A Chave de Vidro / The Glass Key (1942), A Mulher do Dia / Woman of the Year (1942), O Cais da Maldição / The Big Steal (1949), Chaga de Fogo / Detective Story (1951), O Tigre dos Mares / Submarine Command (1951).

* Walter Slezak, Willi.

Willi chega nadando ao bote salva-vidas, quando todos os oito demais já estão nele. Olha para cada um deles, cada um deles olha para ele – e, para absoluto espanto dos que estão no barco, e também do espectador, ele diz “danke schön”. É um sobrevivente do submarino alemão que torpedeou o navio em que aquelas pessoas viajavam, e que logo em seguida foi atingido por bombas aliadas.

A chegada de um alemão, um militar alemão, que estava no submarino que afundou o navio em que estavam aquelas pessoas, é um dos eventos fundamentais da trama. Falo sobre isso mais adiante.

* Mary Anderson, Alice MacKenzie.

Alice é uma jovem que, como tantas outras, se alistou nas forças armadas americanas para trabalhar como enfermeira. É uma pessoa boa, de bom caráter. Lá pelas tantas, confessará para Stanley (Stanley virá logo mais adiante) que estava com muito medo de chegar a Londres: lá, ela seguramente iria reencontrar o médico por quem estava apaixonada. O médico também se apaixonara por ela – mas era casado, tinha dois filhinhos lindos.

Alice é uma forma inteligente, sensível, de trazer um pouco da vida das pessoas comuns para dentro daquele bote salva-vidas.

Não me lembrava da atriz Mary Anderson, moça bonita demais. Mary Anderson, 1918-2014, do Alabama, como a estrela Tallulah Bankhead, teve pequenos papéis em … E o Vento Levou (1939) e o também oscarizado A Canção de Bernadette (1943). Ao todo, 66 títulos na filmografia.

* John Hodiak, John Kovac.

John Kovac é o primeiro a chegar ao bote em que já estava Connie Porter. Trabalhava na casa de máquinas; é um sujeito de origem humilde, pobre – e cheio de consciência político-social. Connie vai dizer, uma hora lá, que ele é comunista, e Kovac não nega. É aquele típico trabalhador, operário, proletário americano do final dos anos 30, início dos 40, que lutava pelo sindicalismo e simpatizava com o comunismo – como alguns personagens de John Steinbeck, como tantos e tantos roteiristas e atores de Hollywood, como músicos tipo Woody Guthrie, Pete Seeger.

Vai se estabelecer uma relação de atração e repulsão, amor e ódio, entre o proletário comunista Kovac e a escritora rica, cheia de frescura Connie Porter. Ela vai revelar que, na verdade, veio exatamente do mesmo lugar dele, a zona sul de Chicago, a região pobre da grande metrópole do Meio-Oeste.

John Hodiak (1914-1955), sujeito boa pinta, teve vida curtíssima e apenas 39 títulos na filmografia. Este aqui, parece, foi seu melhor papel.

* Henry Hull, Charles J. Rittenhouse.

Kovac era o proletário com consciência de classe. Pois bem: num microcosmo que espelha o macrocosmo da sociedade americana, era preciso ter um patrão, um capitalista – e aí temos este Rittenhouse. Figuraça, o tal de Rittenhouse, que pedia aos colegas de bote salva-vidas que o chamassem de Ritt, simplesmente Ritt. Milionário, dono de várias indústrias, Ritt é, me parece, bem o contrário dos milionários dos filmes de Frank Capra, sempre barrigudos, grandes, antipáticos, cheios de empáfia, soberba. Ritt é magrinho, simpático, gente como a gente, uma boa pessoa. Bem ao contrário do que querem nos fazer crer muitos dos filmes italianos e franceses dos anos 50 e 60, há capitalistas que são boas pessoas, sim.

Nas questões ideológicas, sérias – o que fazer com o alemão que chegou ao bote? –, ele tem, de início, a posição mais aberta, mais liberal, mais positiva entre todos os sobreviventes.

Henry Hull (1890–1977) tem 114 títulos na filmografia, incluindo Seu Último Refúgio (1941) e Vontade Indômita (1949),

* Heather Angel, Mrs. Higley.

Sobre Mrs. Higley não há muito a dizer, porque ela aparece pouco – e falar sobre ela seria spoiler. Creio que basta dizer que ela chega ao bote salva-vidas carregando seu bebê de poucos meses – sem perceber que o bebê está morto.

* Hume Cronyn, Stanley Garrett.

Stanley é um dos mais simpáticos sobreviventes do naufrágio que conseguem chegar ao bote salva-vidas. É um sujeito sensível, boa gente. Trata todo mundo muito bem, e acaba se aproximando muito da enfermeira Alice. Os dois formam um casal de fato simpático. Supreendentemente, no entanto, vai se alinhar com Kovac nas posições contra Willi, o alemão.

Hume Cronyn (1911-2003) é uma figura fascinante. Foi ator, produtor, roteirista, assistente de direção. Como ator, tem 90 títulos no currículo. Era, se não amigo, ao menos uma pessoa próxima de Hitchcock, que o contratou para fazer a adaptação dos livros em que se baseariam Festim Diabólico/Rope (1948) e Sob o Signo de Capricórnio/Under Capricorn (1949).

* Canada Lee, Joe Spencer.

O camareiro de bordo Joe Spencer é o único dos nove personagens do filme que tem a pele negra. Avaliações sobre Lifeboat hoje falariam longamente sobre essa coisa da pele negra – ah, aí está mais um exemplo de como os afrodescendentes eram tratados por Hollywood, e aquele blábláblá sacal sem fim.

Joe Spencer, descendente de escravos africanos, crê em Deus. É um cristão praticante.

É uma maravilha a sequência em que, com Mrs. Higley desmaiada, desacordada, os demais ocupantes do bote tentam organizar um funeral no meio do mar para o bebê que chegou morto. Alguém se lembra de uma oração, diz as duas primeiras frases dela – e não sabe como continuar. Joe Spencer toma a palavra, e faz a oração inteira, com aquela extraordinária beleza de voz de preto velho.

É de chorar, essa cena é de chorar – e o filme está só começando.

Bem mais adiante, quando já estamos chegando perto do fim, Joe Spencer menciona o nome da sua mulher – e quem se interessa por saber como é a sra. Spencer, e por ver a foto dela e dos dois filhos do casal, é o capitalista milionário Rittenhouse.

Claude Chabrol, o diretor dos filmes que mostram como horrendas todas as pessoas que têm algum dinheiro, vomitaria diante daquela cena. Prova de que ela é ótima.

Como você, leitor, reagiria, se estivesse naquele barco?

Você e algumas outras pessoas estão em um bote salva-vidas, depois que o navio em que você e aqueles outros viajavam foi atingido por torpedos disparados por um submarino nazista. Aí chega ao bote um sobrevivente daquele submarino nazista.

O que você pensa? O que você faz?

Aquela pessoa estava no submarino que, afinal, tentou matar você e os que estão você.

O que você pensa? O que você faz?

Mata! Mata, joga no mar! – é o que diz Kovac, o proletário comunista.

Concordam com ele Stanley, o sujeito boa gente, e também Gus, o descendente de alemães que tem ódio dos nazistas, tem vergonha do que os nazistas estão fazendo ao mundo.

É o milionário Rittenhouse que inicia a defesa de Willi, o alemão que chega ao bote. Rittenhouse se mostra um humanista – um progressista, um defensor dos direitos humanos. Algo como o Jurado Número 8 de Henry Fonda em 12 Homens e Uma Sentença/12 Angry Man (1957) – o homem mais digno do cinema americano, ao lado do Atticus Finch de Gregory Peck em O Sol é Para Todos/To Kill A Mockingbird (1962).

Se estivessem naquele lifeboat, o Jurado Número 8 e Atticus Finch com toda certeza teriam, assim como Rittenhouse, defendido Willi.

Se o matarmos agora, estaremos sendo iguais a ele, iguais à ideologia nojenta que ele defende, diz Rittenhouse.

Além do mais, quem disse que ele é um nazista? Ele pode perfeitamente estar apenas cumprindo ordens. Pode ter sido forçado a entrar para as forças armadas nazistas, obrigado a lutar, contra a sua vontade.

Connie vota com Rittenhouse. A jovem e bela enfermeira Alice também.

E você, meu caro eventual leitor? Como votaria?

Do jeito “direitista”, bolsonarista, de ver o mundo – mata, mata, mata? Mata primeiro, e depois pergunta? Ou, melhor ainda, mata e nem pergunta?

Ou do jeito correto, do jeito humano, humanista, de respeito aos direitos humanos – ninguém é culpado até ser julgado, com todos os direitos à defesa?

Eu, pessoalmente, sou, sempre fui, um radical da segunda posição, o jeito certo de se fazer as coisas. Sempre a Justiça, nunca o justiciamento. Sempre o respeito aos direitos humanos.

Mas… e se o alemão for de fato um nazista, que, astutissimamente, quer se safar, e ferrar você e os seus companheiros de desgraça?

Em um outro filme extraordinário feito exatamente na mesma época, Coronel Blimp: Vida e Morte / The Life and Death of Colonel Blimp (1943), dos ingleses Michael Powell e Emeric Pressburger, um veterano oficial alemão – mas não nazista – diz para seu grande e velho amigo, um oficial britânico: – “Alguns de vocês vão aprender mais rapidamente do que os outros, alguns não vão aprender nunca – porque vocês foram educados para serem cavalheiros e bons desportistas, na paz e na guerra. Mas esta não é uma guerra de cavalheiros. Desta vez vocês estão lutando pela própria vida contra a idéia mais diabólica já criada pelo cérebro humano – o nazismo. E se vocês perderem não haverá revanche no ano que vem… Talvez nem mesmo nos próximos 100 anos.”

Para combater o nazismo – argumenta o militar alemão na obra-prima de Powell e Pressburger –, vale tudo. Qualquer coisa. Qualquer arma. Só não vale perder, porque se eles vencerem será o absoluto negror, o horror infinito.

Creio que, no fundo, era isso que Lifeboat queria dizer ao público de seu tempo.

O que vemos é um barco no meio do mar!

Até aqui, fiquei no conteúdo. É preciso falar da forma.

Lifeboat é um filme feito de maneira brilhante, magistral. É uma das obras de Hitchcock que mais demonstram como o realizador dominava de forma magnífica, esplendorosa, a sua arte, o seu ofício.

É comum se dizer que Hitchcock era um realizador que se dava bem dentro de um estúdio – cenas externas, ao ar livre, não eram com ele. E há boa dose de verdade nisso. De fato, muitas vezes, ao filmar cenas externas, Hitchcock se mostrava desleixado – era muito fácil perceber que as casas, os cenários que mostrava de longe eram papelão puro. Mesmo em seus filmes da fase final, como Marnie, o grande filme de 1964, era visível que os atores estavam em estúdio, e o cenário por trás deles era de um outro filme, retroprojetado.

Dentro de quatro paredes, ele reinava com maestria. Disque M para Matar (1954) se passa praticamente inteiro dentro de um apartamento – e o visual é brilho puro. (O filme foi feito para ser lançado em 3D.) Festim Diabólico/Rope, de 1948, é aquele show virtuoso de plano-sequência o filme todo, diversos personagens caminhando dentro da ampla sala de um apartamento nova-iorquino.

Pois bem: Lifeboat é também um show visual.

Morro de preguiça quanto aos aspectos mais técnicos de como são feitas as coisas, e nem tento entender isso. O que importa é o efeito, o que vemos na tela.

E o que vemos na tela é um bote com nove pessoas no meio do mar. A sensação que temos é de que – mas, diabo, parece que o cara está mesmo filmando no meio do mar!

É impressionante. Absolutamente impressionante.

Dezoito anos depois, em 1962, ainda na sua Polônia natal, o jovem Roman Polanski faria outro filme que se passa inteiramente dentro de um pequeno barco num lago, o excelente A Faca na Água. São dois filmes de fato muito impressionantes nessa coisa do domínio do ofício de gravar imagens com uma câmara.

O filme foi muito criticado na época

 Escrevi isso aí acima antes de ler sobre o filme. É hora de ir aos alfarrábios – a começar por HitchcockTruffaut, o maravilhoso livro que registra as longas entrevistas que o então jovem gênio francês fez com o gênio barrigudinho inglês no início dos anos 60.

Lifeboat foi influenciado apenas pela guerra. Era um microcosmo da guerra”, diz Hitchcock a Truffaut. E prossegue: “Quisemos mostrar que naquele momento havia no mundo duas forças em presença, as democracias e o nazismo. Ora, as democracias estavam em absoluta desordem, ao passo que todos os alemães sabiam aonde queriam chegar. Portanto, tratava-se de dizer aos democratas que eles precisavam de qualquer maneira tomar a decisão de se unirem, se juntarem, esquecerem suas diferenças e divergências para se concentrarem num só inimigo, sobremodo poderoso por seu espírito de coesão e decisão.”

E mais adiante: “O filme foi muito criticado e a famosa Dorothy Thompson, na sua coluna, deu ao filme dez dias para sair da cidade.”

Ainda sobre as críticas negativas: “O que levou os críticos americanos a ser tão veementes contra esse filme foi que eu tinha mostrado um alemão superior aos outros personagens. Ora, nesse período de 1940-1, os franceses estavam derrotados e os Aliados estavam em decomposição. Por outro lado, o alemão que, no início, fingia ser um simples marinheiro, tinha sido comandante de submarino; portanto, havia todas as razões para se pensar que era mais qualificado que os outros para assumir o comando do bote, mas aparentemente os críticos imaginaram que um nazista mau não podia ser um bom marinheiro!”

Sobre a trama, o roteiro, Hitch diz: “Primeiro, encomendei esse argumento a John Steinbeck, mas o trabalho ficou incompleto. Então mandei chamar um escritor muito conhecido, Mac Kinley Kantor, que trabalhou duas semanas… Eu não gostava nada do que ele fazia. (…) Peguei outro escritor, Jo Swerling, que tinha trabalhado para Frank Capra. Com o script pronto e o filme prestes a começar, percebi que nenhuma sequência terminava com um toque apoteótico, e então me esforcei em dar uma forma dramática a cada episódio.”

Os depoimentos de Hitchcock são sempre assim: ele é quem tem as boas idéias, ele é que faz as coisas boas. Se houve problemas, a culpa é dos outros. Os acertos são por conta dele.

Interessante ele dizer que o trabalho de Steinbeck ficou incompleto. Nos créditos iniciais, o nome de Steinbeck aparece com imenso destaque: “Lifeboat by John Steinbeck”. O mesmo aparece escrito nos cartazes originais do filme.

Steinbeck obteve até uma indicação ao Oscar de melhor história original (essa categoria existia na época). O filme teve também indicações nas categorias de melhor direção e melhor fotografia em preto-e-branco. Não levou nada.

É o que sempre digo: há realizadores que são muito maiores que o Oscar.

Anotação em fevereiro de 2020

Um Barco e Nove Destinos/Lifeboat

De Alfred Hitchcock, EUA, 1944

Com Tallulah Bankhead (Connie Porter), William Bendix (Gus Smith), Walter Slezak (Willi), Mary Anderson (Alice MacKenzie), John Hodiak (John Kovac), Henry Hull (Charles J. Rittenhouse), Heather Angel (Mrs. Higley), Hume Cronyn (Stanley Garrett), Canada Lee (Joe Spencer)

e William Yetter Jr. (o jovem soldado alemão da última sequência)

Roteiro Jo Swerling

Baseado em história de John Steinbeck

Fotografia Glen MacWilliams e, não creditado, Arthur C. Miller

Direção musical Emil Newman

Música Hugo Friedhofer

Montagem Dorothy Spencer

Produção Kenneth MacGowan, 20th Century Fox. DVD Fox.

P&B, 97 min (1h37)

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