Partida Fria / The Coldest Game

Nota: ★★★☆

A trama de The Coldest Game, no Brasil Partida Fria, me pareceu tão bem engendrada, a mistura de eventos históricos com a história dos personagens é tão bem realizada, com o uso de muitas imagens de cinejornais da época, que fiquei com a sensação de que era tudo baseado em fatos reais.

Não é, evidentemente, obviamente. Mas a história do ex-professor de Matemática americano que é levado a enfrentar um mestre russo numa série de partidas de xadrez, no exato momento em que a crise dos mísseis soviéticos em Cuba chegava a seu auge, seu ápice, em outubro de 1962, é de fato tão bem bolada que tudo parece crível, possível, real.

A trama é de autoria dos poloneses Lukasz Kosmicki e Marcel Sawicki, que também assinam o roteiro. O filme, uma co-produção EUA-Polônia de 2019, inteiramente filmada na Polônia e distribuída pela Netflix, é o primeiro longa-metragem dirigido por Lukasz Kosmicki, jovem nascido em 1983, que antes havia dirigido apenas episódios de três séries de TV.

Demonstra grande talento o rapaz.

Ele e o colega Sawicki se inspiraram, seguramemte, no grande duelo do enxadrista americano Bobby Fischer e o russo Bóris Spassky durante a Guerra Fria. Em 1972, Fischer, tido como absoluto gênio, venceu o Campeonato Mundial de Xadrez ao derrotar o soviético Boris Spassky em uma partida disputada em Reykjavík, Islândia. O jogo, como diz a Wikipedia, foi considerado “um confronto símbolo da Guerra Fria, que atraiu um interesse midiático maior que qualquer outra partida de xadrez já disputada”.

Três depois, em 1975, Fischer recusou-se a defender o título de campeão mundial contra outro russo, Anatoly Karpov, por não chegar a um acordo com a Federação Internacional de Xadrez em relação ao modelo de disputa da partida. Com a desistência, Karpov se tornou o novo campeão mundial. Quase uma década mais tarde, em 1984, Karpov teria seu título em risco diante de um conterrâneo, Garry Kasparov. As disputas Karpov x Kasparov ocupavam as primeiras páginas de jornais do mundo todo.

Não é um filme sobre xadrez – é sobre a Guerra Fria

Lembro bem de todos esses nomes, Bobby Fischer, Bóris Spassky, Anatoly Karpov, Garry Kasparov – e isso seguramente contribuiu para que eu entrasse inteiramente no clima do filme e ficasse com a impressão de que houve, de fato – como o filme mostra –, em Varsóvia, em 1962, uma série de cinco jogos entre o americano Joshua Mansky (o papel de Bill Pullman) e soviético Alexander Gavrylov (interpretado por Evgeniy Sidikhin).

Até porque… Tá certo, há dezenas e dezenas de nomes russos terminados em “ov”, mas Gavrylov não parece ter sido escolhido para fazer lembrar Karpov e Kasparov?

As partidas de xadrez entre o americano Masky e o soviético Gavrylov se realizam num gigantesco teatro, dentro do que nos é mostrado como a Casa de Arte e Cultura de Varsóvia. Os dois jogadores e seus acompanhantes ficarão hospedados dentro imenso prédio da Casa de Arte e Cultura – “um presente de Stálin para a Polônia”, diz o filme. O teatro está sempre absolutamente lotado de pessoas austeras vestindo suas melhores roupas domingueiras. Antes de cada jogo, há apresentações de grupos de cantores apresentando canções folclóricas. Tudo é transmitido pela TV polonesa. Um mestre de cerimônias (o papel de Wojciech Mecwaldowski) conduz o espetáculo.

É um gigantesco show.

Os cinco jogos são mostrados, são momentos importantes – mas não é um filme sobre xadrez. É um filme sobre a Guerra Fria, um filme de espionagem.

Começa com letreiros que tentam resumir para o espectador o contexto daquele momento – o momento em que a humanidade mais chegou perto de um possível enfrentamento nuclear entre as duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética:

“No início dos anos 60, as relações entre os EUA e os Soviéticos estavam no pior nível da Guerra Fria. Depois da Revolução Cubana, tropas soviéticas estavam a apenas 160 quilômetros da Flórida. Em outubro de 1962, o presidente Kennedy é informado sobre silos construídos em Cuba e atividade militar soviética crescente. Pareciam preparativos para guerra. Uma guerra global. Uma guerra nuclear global.”

A CIA sequestra o protagonista e o leva para Varsóvia

A trama é assim:

Uma série de enfrentamentos entre dois grandes mestres de xadrez, um americano e um soviético, está marcada para acontecer em Varsóvia, em outubro de 1962, pela Fide, a Federação Internacional de Xadrez. O russo era Alexander Gavrylov; o americano se chamava Konigsberg.

Konigsberg, no entanto, é encontrado morto, pouco antes da data marcada para sua viagem a Varsóvia.

E então acontece que Joshua Mansky – o protagonista da história, o papel, repito de Bill Pullman – é literalmente sequestrado por agentes da CIA de um bar no Brooklyn, Nova York, drogado e levado diretamente para a Embaixada americana em Varsóvia. Havia sido escolhido – sem qualquer aviso prévio – para representar os Estados Unidos, o Mundo Livre, a Democracia, nos jogos contra o homem do Paraíso Socialista.

No passado distante, Mansky havia sido um brilhantíssimo matemático de Harvard, e um absoluto gênio do xadrez. Jovem ainda, havia derrotado o próprio Konigsberg não uma, mas três vezes. O cara era tão brilhante que, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, havia sido procurado por Robert Oppenheimer para checar umas equações; Oppenheimer insistira com ele para participar um grupo ultra-secreto que estava trabalhando num projeto prioritário do governo, um tal Projeto Manhattan, mas ele havia recusado.

O espectador não é obrigado a saber que Projeto Manhattan era o nome do programa de pesquisa que levaria à criação da bomba atômica pelos Estados Unidos, nem que Robert Oppenheimer foi um dos principais físicos que participaram da operação – mas, para ajudar a fazer cair a ficha, Mansky, quando conta essa história, lá pela metade do filme, cita os nomes das duas cidades japoneses atingidas pelas bombas atômicas em agosto de 1946, Hiroshima e Nagasaki.

Em algum momento do passado, no entanto, Mansky havia pirado. (Há uma sugestão de que a própria bomba atômica poderia ter ajudado o cientista a pirar.) Abandonara a academia, enfiara-se na bebida. Vivia agora – o momento em que a história se passa, segundo semestre de 1962 – de pequenos trambiques em bares do Brooklyn, fingindo-se de bobo nas cartas para depois ganhar um bom dinheiro dos trouxas que aceitassem jogar com ele.

Uma agente da CIA bela, esperta, chamada Stone (o papel da holandesa Lotte Verbeek), sabia tudo sobre Joshua Mansky. É dela a idéia de sequestrar aquele farrapo humano para que ele enfrentasse o grande mestre de xadrez soviético.

Quando Mansky acorda, na embaixada americana em Varsóvia, se vê diante de três pessoas da CIA. Além da agente Stone, há o agente White (James Bloor, à direita, na foto abaixo) e Donald Novak (Corey Johnson, à esquerda), o chefe da operação.

Os três o informam que foi convocado pelo Tio Sam para representar os Estados Unidos, o Mundo Livre, etc e tal, no torneio de cinco partidas de xadrez com o russo Gavrylov.

Dentro da Embaixada dos EUA há um traidor

O que os agentes não contam logo para Joshua Mansky nem para o espectador – que só ficarão sabendo disso bem mais adiante, já bem passada a metade dos 102 minutos do filme – é que os jogos de xadrez são importantes, sim, mas há algo muitíssimo mais importante a ser feito ali.

É o seguinte: um alto oficial da URSS que resolveu colaborar com o Ocidente, codinome John Gift, joão presente, vai entregar ao enxadrista, em algum momento, um segredo militar soviético que dará aos Estados Unidos e aliados a vitória sobre os soviéticos na questão dos mísseis cubanos.

Só um membro da equipe americana em Varsóvia conhece John Gift, sabe como ele é, pode identificá-lo: é o jovem agente White – que, de maneira não explícita, o filme indica que já trabalhou para os soviéticos no passado.

Para tornar a situação toda mais tensa, chega a Varsóvia, com a missão de supervisionar os eventos em torno do torneio e garantir a vitória do representante do Paraíso Socialista sobre o capitalismo decrépito e decadente, o general Krutov (Aleksey Serebryakov), figura importantíssima da nomenclatura soviética. O general Krutov usará todo tipo de mecanismo para cumprir sua missão. Veremos que é um absoluto sádico, um sujeito sanguinário, o bandidão mór.

Para contrabalançar os excessos de crueldade do general Krutov, há Alfred (Robert Wieckiewicz, excelente), o polonês que foi escolhido para dirigir a Casa de Arte e Cultura de Varsóvia. Alfred – veremos logo – tem a simpatia das mais importantes figuras do Partido, e parece ser um fiel aliado da aliadíssima União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. No entanto, vai se revelar um polonês absolutamente patriota, que tem o mesmo horror pelos soviéticos que tinha pelos invasores anteriores, os nazistas. E vai se tornar um aliado de Mansky.

É um personagem fascinante.

E, para complicar definitivamente as coisas, ficaremos sabendo que, ali na embaixada americana em Varsóvia, ali entre os envolvidos na operação de levar Mansky para a Polônia e fazê-lo obter o documento secreto soviético importantíssimo, há um mouse, um rato – um traidor, a soldo do ouro de Moscou.

Bela mistura de telejornais com a história fictícia

Em diversos momentos ao longo da narrativa, vemos cenas verídicas, históricas, trechos de cinejornais ou telejornais da época. Navios soviéticos filmados perto de Cuba. Desfiles militares em Moscou. Nikita Kruschev, o então secretário-geral do PCURSS, a maior autoridade soviética, o homem que substituiu Stálin. John F. Kennedy, então presidente dos Estados Unidos.

O uso dessas imagens, a forma com que o realizador Lukasz Kosmicki e os montadores Krzysztof Arszennik, Robert Gryka   e Wolfgang Weigl misturaram as imagens históricas com o desenrolar da trama – eis aí um dos pontos altos do filme.

A trama, como já falei lá atrás, é toda muito bem engendrada.

O fato de os russos falarem em russo, os poloneses em polonês é uma maravilha. Se fosse feito como nos filmes hollywoodianos até os anos 70, em que todos falavam em inglês, perderia demais.

O elenco está todo muito bem. Com destaque especial para Bill Pullman, claro, essa bela Lotte Verbeek como a agente Stone e Robert Wieckiewicz como Alfred, o polonês patriota. São deliciosas as sequências em que ele e Mansky enchem a cara de boa vodca, ele vai ficando bêbado e Mansky permanece sóbrio como um juiz. Mas haverá uma sequência dramática, apavorante, com Alfred, quase ao final da narrativa. Bom ator, esse polonês Robert Wieckiewicz.

Outro belo trunfo deste The Coldest Game é a fotografia. É uma maravilha. Mary reparou que o filme mostra as ruas do Brooklyn de 1962 como a mais autêntica Gotham City do Batman. As sequências nas ruas de Varsóvia são esplendorosas.

Não é à toa: o diretor de fotografia é Pawel Edelman, que trabalhou com seus conterrâneos Andrzej Wajda em Katyn (2007) e Afterimage (2016) e Roman Polanski em O Pianista (2002), Oliver Twist (2005), O Escritor Fantasma (2010), Deus da Carnificina (2011). A Pele de Vênus (2013), Baseado em Fatos Reais (2017) e o recentíssimo J’Accuse (2019).

Por O Pianista, Pawel Edelman foi indicado ao Oscar de melhor fotografia e levou o César da categoria. É dos grandes.

É isso. Este The Coldest Game merece ser visto.

Anotação em março de 2020

Partida Fria/The Coldest Game

De Lukasz Kosmicki, Polônia-EUA, 2019

Com Bill Pullman (Joshua Mansky)

e Lotte Verbeek (agente Stone), James Bloor (agente White), Robert Wieckiewicz (Alfred, o diretor da PKiN, a Casa de Cultura de Varsóvia), Aleksey Serebryakov (general Krutov), Corey Johnson (Donald Novak, da CIA), Nicholas Farrell (G. Moran), Evgeniy Sidikhin (Alexander Gavrylov, o russo mestre do xadrez), Cezary Kosinski (John Gift), Aleksandr Lobanov (o assistente de Krutov), Wojciech Mecwaldowski (o mestre de cerimônia), Magdalena Boczarska (Gienia), John Benfield (Dr. Peter), Ludwik Borkowski (Makarov)

Argumento e roteiro Lukasz Kosmicki e Marcel Sawicki

Fotografia Pawel Edelman

Música Lukasz Targosz

Montagem Krzysztof Arszennik, Robert Gryka, Wolfgang Weigl

Casting Nadia Lebik, Jeremy Zimmermann

Produção Watchout Studio, TVN, Next Film, ITI Neovision, Poreczenia Kredytowe, Galeria Olsnienia Go, Polski Instytut Sztuki Filmowej, K5 Film. Distribuição Netflix.

Cor e P&B, 102 min (1h42)

***

Disponível na Netflix em março de 2020

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