O Invencível / Aparajito

Nota: ★★★★

Talento é uma coisa absolutamente extraordinária, fora de jeito. O Invencível/Aparajito, o segundo filme de Satyajit Ray, teria tudo para ser bastante diferente do primeiro, A Canção da Estrada/Pather Panchali, apesar das características que os unem.

São da mesma época: o primeiro foi lançado em 1955, o segundo em 1956. Um é a continuação do outro – O Invencível focaliza a vida da família do garoto Apu depois que ela se muda do pequeno vilarejo no interiorzão de Bengala Ocidental para a cidade grande de Benares. Os mesmos atores interpretam o pai e a mãe do garoto, e a equipe é exatamente a mesma do filme anterior.

No entanto, tudo era extremamente diferente. No início das filmagens de A Canção da Estrada, quase todos estavam começando do absoluto zero, sem qualquer experiência anterior. No primeiro dia de filmagens, Ray contaria muito depois, “havia 8 pessoas na nossa unidade, das quais apenas uma, Bansi (Bansi Chandragupta), o diretor de arte, tinha alguma experiência profissional.” Ele, o diretor, trabalhava até então nunca agência de publicidade, e nunca antes havia realizado qualquer coisa relacionada a um filme. O diretor de fotografia, Subrata Mitra, jamais havia filmado coisa alguma. E as crianças que atuariam em papéis importantes jamais haviam antes passado diante de uma câmara.

Todos eram novatos – e o dinheiro era curtíssimo. Por falta de recursos, por não encontrar investidor disposto a financiar o projeto, Satyajit Ray levou três anos para concluir seu filme de estréia. Com metade do filme rodado, o dinheiro que o jovem realizador tinha simplesmente acabou. Ray vendeu objetos pessoais, inclusive uma coleção de discos, e fez a esposa penhorar jóias para prosseguir o trabalho. Só conseguiu completar o filme com a ajuda do governo de Bengala Ocidental.

Como o filme foi um imenso sucesso, tanto na Índia quanto no exterior, conquistando o Prêmio Internacional de Documento Humano no Festival de Cannes e elogios calorosos da crítica na Europa e em diversos países, não faltou financiamento para o segundo filme, e as filmagens deste O Invencível puderam ser feitas em condições muitíssimo melhores que as de A Canção da Estrada.

O diretor e sua equipe tinham mais experiência e mais condições materiais.

Eram imensas, portanto, as chances que os filmes fossem muito diferentes entre si.

Não são. Têm basicamente o mesmo estilo, o mesmo tom: um retrato forte, realista, sem floreios, sem disfarces, de uma realidade dura, de muita pobreza, feito com um lirismo poderoso, um humanismo inesgotável.

O mesmo estilo, o mesmo tom dos grandes filmes que Satyajit Ray continuaria fazendo, até Agantuk, de 1991, seu 37º filme como realizador, o último antes de sua morte em 1992, aos 70 anos.

Talento.

Talento é uma coisa fantástica. Sobrepõe-se a tudo – às dificuldades, até mesmo às facilidades.

A ação começa em 1920, na cidade de Benares

Diferentemente do primeiro filme, em que não há um letreiro informando o quando e o onde, O Invencível dá essas informações ao espectador bem na abertura. Vemos o letreiro enquanto, atrás dele, aparece o Ganges, imenso – a câmara está num trem que atravessa uma ponte sobre o rio sagrado dos indianos. “Benares, Ano Bengali 1327 (1920 C.E.)”

(Vivendo e aprendendo: lá pelo ano 594 da era cristã, um imperador chamado Mughal Akbar introduziu o calendário bengali. O ano 1 bengali começou ali – atualmente, 2019 na maioria dos países ocidentais, os bengalis estão no ano 1426.)

1920 na C.E. Christian Era, a Era Cristã. Todo o subcontinente indiano era uma possessão britânica – a partição, a divisão em dois Estados, um, a Índia, ao Sul, e o Paquistão, dividido em dois territórios, um a noroeste e outro a nordeste, só viria com o fim do domínio britânico, em 1947.

No primeiro dos três filmes da Trilogia de Apu, passado no interiorzão de Bengala Ocidental, distante das grandes cidades, não há qualquer referência ao domínio britânico, à língua inglesa. Aqui neste segundo filme da trilogia, em cidade grande, já haverá sinais da presença britânica.

Ao final de A Canção da Estrada, a família de Apu estava deixando o vilarejo, a casa que havia sido dos ancestrais e o tempo praticamente destruíra, para tentar uma vida melhor na cidade grande. Apu era então um garotinho de uns 6, 7 anos. No início deste O Invencível, Apu está com 10 anos de idade – e é absolutamente impressionante como o garoto encontrado para interpretar o protagonista da trilogia aos 10 anos, Pinaki Sengupta, é parecido com o menino Subir Banerjee, que fez Apu com 6 ou 7 no primeiro filme.

Há um salto no tempo, e vemos Apu adolescente

Não há, de forma alguma, mar de rosas – mas é inegável que, em Benares, a grande cidade à beira do Rio Ganges (hoje conhecida como Varanasi), a vida da família é muito melhor que na área rural. O pai, Harihar Ray (Kanu Bannerjee) exerce seu ofício de sacerdote, falando para grupos às margens do rio sagrado, e recebe dos fiéis o suficiente para manter a família em um apartamento pobre, bem pobre, mas não miserável. A mãe, Sarbojaya (Karuna Bannerjee), agora dispõe do fantástico conforto de ter água encanada para cuidar da casa, preparar a comida.

O filme demora alguns minutos a nos mostrar os personagens. As primeiras sequências servem para exibir um pouco a paisagem de Benares, as margens do rio, as pessoas, às centenas, aos milhares, às dezenas de milhares, ocupando as margens e o próprio rio, seja para lavar roupas ou objetos, seja para recolher água, seja para se banhar.

Há algumas tomadas feitas com a câmara em um barco, movimentando-se suavemente, como as águas do rio – e então temos belíssimos travellings do que acontece na margem do Ganges focalizada pela câmara.

“Penso que, como ele teve um filme de fantástico sucesso, ele então imaginou: Bem, esse filme irá para fora do país, e quero mostrar para eles o contexto em que a história de se passa.” A avaliação é de Mamoun Hassan, um estudioso da obra do realizador que faz maravilhosas observações sobre os três filmes num documentário chamado The Apu Trilogy: A Closer Look With Mamoun Hassan. O documentário está entre os vários extras, de mais de 3 horas de duração, que acompanham os três filmes na caixa de DVDs A Trilogia de Apu lançada no Brasil na coleção Obras Primas da empresaa M.D.V.R.

É só depois de nos apresentar um pouco da cidade que a câmara de Ray e seu diretor de fotografia Subrata Mitra encontra, no meio dos grupos à margem o Ganges, a figura de Harihar. Ele retira do rio um pouco de água em um pequeno recipiente, sobe os muitos degraus da margem e se dirige até sua casa. (É tradição ter em casa sempre um pouco da água do Ganges.)

Se não há, na vida daquela gente, nenhum mar de rosas, também não dura muito tempo aquela situação de relativa tranquilidade, em que ao menos não faltam os confortos mais básicos, mais fundamentais, para Harihar, Sarbojaya e o garoto Apu. Logo uma nova tragédia se abaterá sobre a família, e, em seguida, Apu voltará a viver num vilarejo perdido no interiorzão de Bengala Ocidental.

Quando o filme está na metade, ali com quase 60 minutos, há um corte no tempo, avançamos uns 6 ou 7 anos, e temos Apu adolescente, já com uma penugem aparecendo sobre o lábio superior – agora interpretado por Smaran Ghosal. Nesse período entre o Apu de 10 anos e o Apu de uns 16, 17, ele começou a estudar – e mergulhou nos estudos. A única maneira que existe para sair da miséria, da pobreza. Bem, a única, no mínimo, deste lado de cá da lei, dos preceitos morais. E seguir os preceitos morais, os valores básicos, é o tema fundamental de toda a obra de Satyajit Ray.

Ray dá imensa ênfase, na segunda parte do filme, à distância que vai se estabelecendo, irreversivelmente, entre o jovem Apu e sua mãe. É absolutamente natural que o rapaz queira continuar os estudos – e continuar os estudos significava, necessariamente, ir para a cidade grande, no caso Calcutá, a imensa metrópole do Leste indiano.

Sarbojaya não tem como impedir que Apu vá atrás do desenvolvimento intelectual, da aprendizagem – mas, para ela, é mais uma perda, numa vida tão absolutamente cheia de perdas.

Ray introduziu elementos da sua vida no filme

O próprio Ray foi, mais uma vez, o autor do roteiro – e se baseou nas obras do escritor bengali Bibhutibhushan Bandyopadhyay (1894-1950). O Invencível usa eventos e situações que estão na parte final do romance

Pather Panchali, que deu origem a Canção da Estrada, e a primeira parte do romance que é a sequência daquele, Aparajito. Ray manteve os nomes dos romances, mas fez muitas modificações na história original. Eliminou centenas de personagens (não é exagero: o primeiro livro tem mais de 300 personagens), modificou passagens, alterou acontecimentos.

Ray até mesmo introduziu, na história de Apu – que tem muito de autobiográfico do escritor Bibhutibhushan Bandyopadhyay – alguns elementos da sua própria vida. Na segunda metade do filme, quando Apu vai para Calcutá prosseguir seus estudos, tem a sorte de encontrar no mesmo imóvel trabalho e lugar para viver – um quarto acima de uma pequena gráfica de um amigo do diretor da escola em que estudou mais jovem, no vilarejo rural. Quando bem jovem, Ray viveu num quarto acima da gráfica de seu avô.

A Canção da Estrada havia sido premiado em Cannes, como já foi dito; este O Invencível foi apresentado aos organizadores do Festival de Veneza, outro dos três mais importantes do mundo, ao lado do de Berlim – e o filme não apenas foi aceito como venceu o Leão de Ouro – o primeiro prêmio de Veneza para um filme indiano.

Foi indicado também ao Bafta de melhor de melhor filme, e Karuna Bannerjee teve indicação ao Bafta de melhor atriz – merecidíssimo. A interpretação dessa atriz como a sofrida, triste mãe de Apu é extraordinária.

Da mesma maneira que o primeiro filme da trilogia, este segundo continuou sendo admirado ao longo das décadas. Em 2005, foi escolhido como um dos 100 melhores de todos os tempos pela revista Time. Está na lista de Grandes Filmes de Roger Ebert e no livro 1001 Filmes Para ver Antes de Morrer.

“Uma história emocionante, belamente filmada”

No texto sobre o filme, o livro 1001 Filmes fala da importância da coisa da separação de Apu da mãe: “Aos 16 anos, ele ganha uma bolsa de estudos para estudar em Calcutá. Seduzido pela agitação da cidade fervilhante, Apu (então interpretado por Smaran Ghosal) volta para casa raramente e com relutância. Sarbojaya, solitária e desesperadamente doente, se recusa a pedir que seu filho tenha compaixão dela por medo de atrapalhar seus estudos.”

Leonard Maltin deu 3.5 estrelas 4: “O segundo da trilogia de Apu de Ray é uma história emocionante, belamente filmada, sobre vida e morte numa pobre família indiana, com o filho, Apu (Ghosal), trilhando para o colégio em Calcutá.”

Em geral chata, cricri, pentelha, Pauline Kael demonstra, ao falar de Aparajito, por que é uma crítica importante. Num país que se considera o umbigo do mundo e faz o cinema mais visto ao redor do planeta, Dame Kael sempre teve a capacidade de observar com atenção o que se passava  fora das fronteiras dos Estados Unidos:

“O filme central da grande Trilogia de Apu de Satyajit Ray é mesmo de transição na estrutura, mais do que dramática, mas é cheia de percepções e revelações. Ray leva a família partida de Pather Panchali da vida no vilarejo medieval para as ruas modernas de Benares e segue o garoto Apu em seu encontro com o sistema escolar e, mais tarde, depois de ele deixar sua mãe, com a vida intelectual na Universidade de Calcutá. (Há um momento luminoso em que Apu recita um poema na sala de aula – você compreende como a arte sobrevive no meio da pobreza.) O filme historia a emergência da Índia industrial moderna, mostrando que ela não é uma sociedade primitiva, mas uma sociedade corrupta. No entanto, o próprio Apu encarna a crença de Ray de que os indivíduos precisam não ser corrompidos.”

A questão é que não consigo compreender essas duas últimas frases de Pauline Kael. Sim, a corrupção, a negação dos valores morais básicos, a necessidade de preservar os princípios corretos, isso é sem dúvida o tema fundamental da obra de Satyajit Ray. Mas não vejo como o filme mostra que a sociedade indiana é corrupta.

Aí de fato Pauline Kael pairou acima da minha capacidade de compreensão.

Eis o que diz sobre L’Invaincu o Guide des Films de Jean Tulard: “Essa segunda parte da trilogia de Apu (La Complainte du Sentier e Le Monde d’Apu) trata, de uma maneira mais direta ainda, da complexa relação entre a mãe e seu filho e amplia o lugar ocupado por este último dentro dessa trilogia. A narrativa é mais contemporânea e se desenrola no âmbito de uma cidade, Calcutá.”

Bem… Não exatamente. Como espero já ter deixado claro, na verdade a ação do filme começa em uma grande cidade à beira do Ganges, Benares, depois se passa num vilarejo rural e finalmente tem uma parte em Calcutá. Aproveito que me intrometi no texto do Guide para pular uma frase em que ele adianta o que me parece ser um spoiler.

A mãe – prossegue o texto – vai viver intensamente as diferentes etapas da vida de Apu. Ela vai permitir que ele tenha liberdade, mas vai tentar fazer com que ele compreenda que não se pode tratar a mãe como um objeto. “Apu não se dá conta da solidão à qual ele vai condená-la. (…) Ray não se contenta em evocar as relações mãe-filho; ele introduz ali os valores profundos e sinceros e os exalta, ao lançá-los na realidade cotidiana. Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1957.”

Grande, imenso Satyajit Ray.

Anotação em novembro de 2019

O Invencível/Aparajito

De  Satyajit Ray, Índia, 1956.

Com Pinaki Sengupta (Apu criança), Smaran Ghosal (Apu adolescente), Karuna Bannerjee (Sarbojaya Ray, a mãe), Kanu Bannerjee (Harihar Ray, o pai),

e Subodh Ganguli (o diretor da escola), Hemanta Chatterjee (o professor), Kalicharan Roy (Akhil, o dono da gráfica), Kamala Adhikari (Mokshada), Lalchand Banerjee  (Lahiri), Kali Bannerjee (Kathak), Harendrakumar Chakravarti (médico), K.S. Pandey (Pandey), Meenakshi Devi (a mulher de Pandey), Charuprakash Ghosh (Nanda), Santi Gupta (Ginnima), Ajay Mitra (Anil), Bhaganu Palwan (Palwan), Ranibala (Teliginni), Sudipta Roy  (Nirupama)

Roteiro Satyajit Ray, com a colaboração de Kanailal Basu

Baseado nos romances de Bibhutibhushan Bandyopadhyay

Fotografia Subrata Mitra

Música Ravi Shankar

Montagem Dulal Dutta

Direção de arte Bansi Chandragupta

Produção Satyajit Ray, Angel Digital Private Limited, Epic Productions. DVD M.D.V.R., Obras Primas.

P&B, 110 min (1h50)

R, ****

Título na França: L’invaincu. Em inglês: Aparajito e Apu 2: The Unvanquished

3 Comentários para “O Invencível / Aparajito”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *