O Despertar de Motti / Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse

Nota: ★★★☆

O Despertar de Motti, produção suíça de 2018, é um filme que faz rir dos costumes dos judeus, especialmente dos judeus ortodoxos.

Há uma lei universal segundo a qual deve-se ter cuidado com piadas ou filmes que riem de estereótipos associados a grupos étnicos, religiosos, nacionalidades. Aquelas coisas tipo baiano é preguiçoso, carioca é malandro, parisiense é grosseiro, judeu é pão duro, etc, etc, etc.

Não tem a ver com o politicamente correto. Essa lei vem de muito antes de existir o politicamente correto. É um consenso, uma regra geral – baseada no bom gosto – de que filmes com base nesses estereótipos tendem a ser grosseiros, roçar a baixaria, não ter sutileza nem inteligência.

Mas há exceções, é claro. Seduzida e Abandonada (1964), de Pietro Germi, sobre os costumes da Sicília, é uma obra-prima: a Sicília dos anos 1960 que ele mostra é uma sociedade medieval, primitiva, apegada a conceitos inacreditavelmente idiotas, sem sentido, sem lugar no mundo.

A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis (2008), de Dany Boon, foi um extraordinário fenômeno de bilheteria, um sucesso avassalador. Chegou a 20,2 milhões de espectadores na França, e tornou-se o filme francês de maior número de ingressos vendidos em toda a história até então…

O filme do diretor suíço Michael Steiner não chega a ser uma obra-prima como o de Pietro Germi, nem foi um sucesso avassalador nas bilheterias como o de Dany Boon, mas dele se pode dizer perfeitamente o que eu disse sobre o filme francês passado no Nord-Pas-de-Calais, o gelado extremo nordeste do país:

É uma gozação, uma enorme brincadeira sobre os modos, os costumes, o jeito de falar, de preparar o acasalamento. Uma enorme brincadeira sobre estereótipos. E brincar com estereótipos pode ser uma canoa furada. pode ser ofensivo – mas também pode ser simplesmente uma brincadeira gostosa, divertida, hilariante.

É exatamente o caso deste O Despertar de Motti.

Um elenco extraordinariamente bom

O protagonista da história é um rapaz aí de uns 18 ou 20 anos, Mordechai Wolkenbruch, ou Motti, simplesmente – o papel de Joel Basman, numa excelente atuação. A família é de Zurique, da parte de língua alemã da Suíça. Motti é um garoto simpático, inteligente, um tanto atrapalhado, troncho, desajeitado, como todo jovem. Está na faculdade, trabalha com o pai, Moishe (Udo Samel), na pequena empresa de seguros dele. O grande problema de sua vida é a mãe, Judith (Inge Maux), aquela típica mãe judia das sátiras, das piadas, grande, volumosa, autoritária, mandona, que decide tudo e trata tanto o marido quanto os filhos como criancinhas.

A mãe não deixa Motti quieto. Liga para o celular dele a cada meia hora para saber se está tudo bem. É um absoluto porre.

E o maior problema do grande problema que é a mãe é a obsessão dela em arranjar o casamento de Motti com a filha de uma boa família judia ortodoxa como ela.

Sem qualquer sutileza, cuidado, respeito pelo filho, Frau Judith arranja encontros dele com garotas de boas famílias ortodoxas – da mesma maneira que todas as mães de garotos e garotos judeus ortodoxos do mundo, pelo que se depreende do que vemos.

Para piorar as coisas para o pobre Motti – e piorar muito, demais da conta –, há na classe dele na faculdade uma garota interessantíssima, Laura (o papel de Noémie Schmidt, uma gracinha). Diferentemente de todas as garotas judias, diferentissimamente, Laura tem cabelos longos e soltos, usa jeans – que realçam sua tuches bonitinha demais –, anda de bicicleta, adora gim tônica. É livre leve solta. Claro: é schickse.

Essa é a base da trama. Poderia virar um filme bobinho, de uma piada só: a mãe judia que tortura o pobre filho.

Dois elementos, no entanto, conspiram para que este Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse seja uma comédia gostosa, simpática, agradável. Em primeiro lugar, o elenco, uniformemente competente, bem dirigido. Inge Maux faz a mãe judia mais perfeita que pode haver – Woody Allen com toda certeza adoraria ter essa atriz para fazer uma de suas muitas mães judias. Udo Samel tem o physique du rôle perfeito – gordo, barba imensa, jeito tranquilo – para fazer o judeuzão ortodoxo boa gente, da paz, que gostaria muito que o filho aproveitasse bem a vida, como ele próprio deveria ter aproveitado, mas que não tem forças para enfrentar a mulher dominadora, tirânica. Nem forças, nem a rigor vontade…

Sunnyi Melles se demonstra uma grande atriz no papel de Frau Silberzweig, a velha milionária à beira da morte que vê a sorte do garoto Motti nas cartas de tarô. Meytal Gal Swisa é uma absoluta graça no papel de Iael, a jovem israelense de Tel Aviv, descoladíssima, libertária, hedonista.

E a dupla principal, os jovens Joel Basman como Motti e Noémie Schmidt como Laura, a schickse, são as escolhas perfeitas.

Têm exatamente a mesma idade os dois atores. Ambos são suíços mesmo, e nasceram em 1990. Estavam, portanto, já com 28 anos quando o filme foi lançado, mas parecem incrivelmente mais jovens. Parecem de fato ter uns 18, 19, 20 anos. Estão bem, absolutamente à vontade nos papéis. Apesar de novos, não são nada novatos. A filmografia dele tem mais de 50 títulos, e a dela, mais de 20.

No roteiro esperto, Motti conversa com o espectador

O segundo elemento que faz o filme ser simpático, gostoso de se ver, é o roteiro – criado diretamente para o cinema por Thomas Meyer, ele também um rapaz jovem.

A grande sacada de Thomas Meyer foi fazer com que Motti, o protagonista da história, converse diretamente com o espectador, em diversas ocasiões. Motti-Joel Basman vai nos apresentando assim uma espécie de guia básico sobre os usos e costumes dos judeus ortodoxos – e o uso de algumas palavras em iídiche é uma delícia.

Schikse, que já foi usada aí acima, é a palavra para designar moças não-judias. Eu conhecia apenas a palavra gói; ela é citada uma hora lá no filme; talvez se refira a homens. O fato é que schickse significa garota não-judia.

A palavra está no próprio título original em alemão: Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse, ou A maravilhosa jornada de Wolkenbruch nos braços de uma schickse.

Tuches é a palavra para bunda. Da primeira vez em que Motti e Laura, a schickse, passeiam de bicicleta pelas ruas de Zurique, a garota, esperta, dá um jeito de estar sempre um pouco à frente dele – e a câmara, assim como os olhos de Motti, se fixam na bundinha pequenina e bonitinha da moça. Quando se sentam no bar, ela pergunta se ele havia olhado para a bunda dela – e pergunta também como se diz bunda em iídiche.

É tuches.

E há também o oy gevald!, assim, com ponto de exclamação. O oy gevald! é uma interjeição de surpresa, espanto. Tipo caramba!, cacete!, putamerda!, putaquepariu! – mas sem qualquer conotação de palavrão, de coisa proibida. Frau Judith também exclama oy gevald! volta e meia.

Motti se apresenta para o espectador quando o filme está com 3 minutos e meio. Diz seu nome completo, Mordechai Wolkenbruch, e seu apelido, usado por todas as pessoas próximas. Ele está sentado ao lado de uma moça, uma judia ortodoxa, Bracha Freudenberg (Lea Whitcher) a quem acabou de ser apresentado pela mãe dele e pela mãe dela.

– “Isto aqui” – nos explica Motti – “é um shidduch, um encontro marcado para tentar arranjar um casamento. Querem que eu me case. Para os homens judeus, a vida já está toda planejada. Nós nascemos…”

Vemos uma sala de hospital, um parto.

– “… somos circuncidados no oitavo dia…”

Vemos um senhor barbado com um instrumento cortante, algo como um bisturi, na mão.

– “… temos o bar mitzvah aos 13 anos…”

Vemos um grande volume do Torá, a Bíblia dos judeus, que está sendo lida pelo rabino na celebração do bar mitzvah.

– “… e, depois, nos casamos com uma judia que seja tão devota quanto nós…”

Vemos uma celebração de casamento.

– “E aí é hora de ter filhos…”

Vemos o casal do jovem Motti com aquela moça que ele acabou de conhecer, Bracha, transando.

– “Um depois do outro.”

Vemos Motti com seus três filhos visitando Bracha na maternidade onde ela acaba de parir o quarto.

– “E, nesse meio tempo, nós trabalhamos e rezamos, viramos avós e bisavós , até que um dia morremos.”

Vemos cenas do enterro de Motti.

Estamos, neste momento, com apenas 4 minutos e meio de filme. A deliciosa Laura-Noémie Schmidt, a schickse, ainda nem apareceu, mas o filme já me encantou por sua simpatia.

Há poucas informações sobre o diretor e o roteirista

Um detalhinho: a ótima trilha sonora é obra de dois compositores. A trilha principal é de autoria de Adrian Frutiger. A parte que se ouve nas sequências passadas em night clubs da moçada (Laura trabalha como garçonete em um deles) é composta por Michael Schertenleib.

Há várias canções incidentais, que tocam nos lugares onde estão os protagonistas. E, numa sequência quando o filme se aproxima do fim, em que Motti está afundado na tristeza, ouvimos uma bela versão de “Hallelujah” de Leonard Cohen em uma língua que achei que era o alemão. Na verdade, é uma versão da maravilhosa letra de Cohen para o iídiche, feita por Daniel Kahn, que é também o cantor. Naturalmente, eu nunca tinha ouvido falar em Daniel Kahn; vi depois que é um cantor e compositor nascido em Detroit, nos Estados Unidos, mas radicado na Alemanha; tem uma banda chamada Daniel Kahn & The Painted Bird.

São raras e ralas as informações sobre o roteirista e o diretor deste filme. Na Wikipedia informa-se que Thomas Meyer escreveu o roteiro do filme com base no seu primeiro romance. Em janeiro de 2020, não havia na enciclopédia virtual verbete nem para ele nem para o diretor Michael Steiner. No IMDb há pouquíssimas informações sobre eles. São um tanto jovens, embora Steiner já tenha dirigido 12 títulos – entre eles uma série e dois filmes feitos para a TV.

O filme foi o escolhido para representar a Suíça na corrida para o Oscar de 2020 – mas não ficou entre os indicados.

Bom mesmo é miscigenação, misturação

Muitas comédias assim simpáticas, leves, agradáveis costumam oferecer de brinde para o espectador – caso ele esteja interessado – algum material sério, para reflexão. Acho que este O Despertar de Motti expõe para o espectador – judeu ou gói – essa coisa insistente, persistente, indelével de as colônias judaicas serem fechadas em si mesmas.

Aqui falo de um filme suíço; outros filmes já mostraram que é a mesma coisa na Argentina (O Décimo Homem/El Rey del Once, 2016), nos Estados Unidos (Menashe, 2017, Uma Estranha Entre Nós/A Stranger Among Us, 1992), no Brasil (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, 2006), não importa onde.

É tudo endo, para dentro – endogâmico, endocruzado, endógeno.

Judeu casa com judeu. Judeu convive com judeu. Judeu compra de judeu. Judeu emprega judeu. Judeu trabalha para judeu.

Claro: vá algum gói dizer que isso é errado, que não deveria ser assim, e os judeus dirão que se comportam assim porque há 6 mil anos são perseguidos, escorraçados, e tal, e tal, e tal.

Euzinho, quieto no meu cantinho, gosto de mistura, da convivência entre diferentes, da miscigenação, da misturação. Tenho pavor a segregação, segregacionistas – sejam eles de que cor, de que religião, de que origem forem.

E me parece que este filme simpático e de bem com a vida concorda comigo.

Me parece também que o autor do roteiro original Thomas Meyer e o diretor Michael Steiner fizeram questão de mostrar uma Tel Aviv moderna, avançada, liberal – e nada endógena. A Tel Aviv de hoje que o garoto Motti Wolkenbruch descobre é, além de contemporânea, up-to-date, também multicultural, misturada. O rabino Jonathan (Eli Gorenstein), que o rabino da família Wolkenbruch em Zurique indica como conselheiro do rapaz, desenvolveu uma mistura de ensinamentos judeus ortodoxos com meditação transcendental e princípios tântricos. A moça Iael, bela, cheia de vida, gosta de arak, a bebida dos árabes– e diz que o arak é “o caminho extraoficial para a paz mundial”.

O filme está dizendo para os judeus de todo o mundo que lá na Terra Santa as coisas são bem mais alegres, animadas, livres leves soltas que nas fechadas colônias judaicas em Zurique, Nova York, Buenos Aires, São Paulo.

Anotação em janeiro de 2020

O Despertar de Motti/ Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse

De Michael Steiner, Suíça, 2018

Com Joel Basman (Mordechai Wolkenbruch, o Motti)

e Noémie Schmidt (Laura, a schickse, a não-judia), Inge Maux (Judith Wolkenbruch, a mãe), Udo Samel (Moishe Wolkenbruch, o pai), Sunnyi Melles (Frau Silberzweig, a milionária), Lena Kalisch (Michal Süskind, a candidata a esposa), Aaron Arens (Yossi, o amigo), Meytal Gal Swisa (Iael, a israelense liberal), Eli Gorenstein (rabino Jonathan), Idit Teperson (Malka, a mulher do rabino),  Rachel Braunschweig (Frau Süsskind, a mãe de Michal), Lea Whitcher (Bracha Freudenberg, a moça do primeiro shidduch), Friederike Frerichs (Bubbe Wolkenbruch), Michael von Burg (Schloime Wolkenbruch), Oriana Schrage (Dana Wolkenbruch)

Argumento e roteiro Thomas Meyer

Fotografia Michael Saxer

Música Adrian Frutiger e Michael Schertenleib

Montagem Benjamin Fueter

Casting Uwe Bünker e Corinna Glaus

Produção Michael Steiger, Hans G. Syz, Anita Wasser, DCM Productions, Schweizer Fernsehen, Turnus Film. Distribuição Netflix.

Cor, 94 min (1h34)_

***

Título nos EUA: The Awakening of Motti Wolkenbruch.

3 Comentários para “O Despertar de Motti / Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse”

  1. Procuro assistir os filmes que têm boa avaliação neste blog e, normalmente, costumam me agradar, mas não foi o caso com esse. Pareceu-me excessivamente cheio de clichés e contrastes empobrecidos.

  2. Oi Serginho: Continúo com minhas lembranças. Hoje fui para 1950. Como voltei para BH em 55, já casada, os filmes que relaciono hoje foram vistos aqui na Capital. Moulin Rouge: Na época não sabia nada sobre Lautrec, ainda não me interessava pela arte da pintura. Isto só foi acontecer mais tarde. Lautrec não era o caso. Queria ver o filme e saber mais do Moullin Rouge! ksksks. Não tinha idéía do que era aquele lugar que vim conhecer (por fora), junto com Marynha, numa nossa ida a Paris. Era noite e procurávamos uma condução para voltarmos ao hotel depois de passarmos a tarde em Montmartre.

    Ratos Humanos: Nem sei porque me lembro de ter visto esse filme. Me lembro bem do título e da Ginger Rogers. Ela era muito famosa.

    Moby Dick – Jamil interessou-se por este filme. Eu não, mas fui.

    Vidas Separadas- Não deixaria de assistir um filme com Rita Hayworth e Burt Lancaster. Eram os artistas famosos da época!

    Sissi: Vi duas vezes. Com Jamil, à noite, no cine Acaiaca e voltei com minha amiga Margarida na matinê. Romy Schneider, lindíssima! Veria novamente!

    ENTARDECER DA VIDA- Mais uma vez, Ginger Rogers. Cine Tupi, com Jamil.

    UM CORPO QUE CAI – Tenho a impressão que foi o primeiro filme de Hitchcock que vi. Kim Novak maravilhosa, me deixou com ciumes de tanto que Jamil falava da sua beleza,James Stewart, formidável! Quero assisti-lo novamente. Das suas anotações de 1950, somente esses me veem à memória!!! Bjs.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *