O Caminho da Tentação / Pitfall

Nota: ★★★½

John Forbes, o protagonista de O Caminho da Tentação/Pitfall, que André de Toth lançou em 1948, tem tudo que uma pessoa pode querer na vida – e milhões e milhões e milhões de seres humanos não têm. Uma mulher muito bela, boa pessoa, que o ama, um filho aí de uns 8, 10 anos legal, inteligente, esperto, que o adora. Uma casa ampla, gostosa, confortável, num bom bairro de Los Angeles, um emprego sólido.

John Forbes (o papel de Dick Powell, então com 44 anos, no auge da carreira) tinha nas mãos o sonho americano, naqueles anos logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. O próprio sonho americano. O que milhões de pessoas mundo afora gostariam de ter.

Mas estava infeliz. Estava insatisfeito, enfadado, entediado. Não via mais graça em nada daquilo – nem mesmo na mulher belíssima que o tratava a pão de ló, fazia suas vontades, entregava de bandeja para ele o bom café da manhã e ainda o levava de carro para o trabalho.

Sue Forbes, a esposa, é interpretada por Jane Wyatt, e a atriz de Horizonte Perdido (1937) e Jornada nas Estrelas IV: A Volta para Casa (1986) está especialmente esplendorosa como essa dona de casa que havia sido escolhida a garota mais bela na escola e se casara com o rapaz mais promissor.

É absolutamente impressionante como o roteirista Karl Kamb (que adaptou um romance de Jay Dratler) e o diretor André De Toth conseguiram sintetizar tão bem quem são os dois personagens – John e sua mulher Sue – nas duas primeiras sequências do filme. É um diálogo extraordinário. Quando ele termina, o filme está com 5 minutos, e o espectador já conhece bem aquelas duas pessoas.

“Não quero ser um americano médio, espinha dorsal do país.”

A primeira tomada é de uma frigideira com dois ovos sendo fritos. Sue chama o marido uma, duas vezes. Tommy, o filho do casal, já está sentado à mesa da cozinha. Quando John aparece, já pronto para sair para o trabalho, terno impecável, Sue diz a frase que a rigor não precisava mesmo dizer: – “O café está na mesa, querido.” Ele responde com uma brutalidade sem tamanho: – “Onde mais poderia estar?”

Sue não ouve, ou finge que não entendeu, pergunta o que ele disse, ele responde que não foi nada.

Durante o café da manhã, a conversa é assim:

Ele: – “Não vamos trabalhar hoje. Vamos pescar.”

Ela: – “Ótimo.”

Ele: – “Vamos pegar Tommy e cair no mundo. Agora tem uma estrada que vai até a América do Sul.”

Ela: – “Outra hora, obrigada.”

Ele: – “Acha que o mundo iria parar? Acha que a Olympic Mutual Insurance Company iria fechar se eu não entrasse lá exatamente às 9 horas todos os dias?”

Ela (sendo agora suavemente irônica: ) – “Nunca se sabe.”

Ah! Uma companhia de seguros. John Forbes trabalha numa companhia de seguros. Como Walter Neff (Fred MacMurray), de Pacto de Sangue/Double Indemnity, de 1944, quatro anos portanto antes deste O Caminho da Tentação/Pitfall.

O cinema americano tem tradição de se referir a companhias de seguro como lugares horrorosos para as pessoas trabalharem.

Ele: – “Você foi eleita a garota mais bonita da classe. E eu, o rapaz mais promissor. Alguma coisa deveria acontecer com pessoas assim.”

Ela: – “Mas aconteceu. Nós nos casamos.”

Ele: – “O que houve com aquele casal que ia construir um barco e dar a volta ao mundo?”

Ela: – “Bem, eu tive um filho. Não sei o que aconteceu com você. (Breve pausa.) Vamos lá, aventureiro. Você tem uma família para sustentar.”

Ele: – “Nada de América do Sul?”

Ela: – “Hoje não.”

Corta, e os dois estão no carro, Sue dirigindo, John no banco do carona. O carro deles, segundo informa a página de Trívia sobre o filme no IMDb, é um Ford Super Deluxe coupé conversível modelo 1947 – um modelo top de linha em 1948, quando o filme foi lançado.

Ela: – “A que horas você vai chegar em casa hoje, querido?”

Ele (como se tivesse sido ofendido: ) – “Por que você me faz uma pergunta destas? Você sabe muito bem a que horas vou chegar. Saio do escritório exatamente às 5h04. Levo 6 minutos até a esquina, e Charlie me pega às 5h15. São 32 minutos até em casa, se não houver uns dois sinais fechados. E dou um beijo no seu rosto exatamente às 17h50.

Ela: – “A rotina está deixando você deprimido?”

Ele: – “Não sei. Às vezes me sinto como uma roda girando sem parar dentro de uma roda dentro de outra roda.”

Ela: – “Você e mais 50 milhões.”

Ele: – “Não quero ser como mais 50 milhões.”

Ela: – “Você é John Forbes, americano médio, espinha dorsal do país.”

Ele: – “Não quero ser um americano médio, espinha dorsal do país. Quero que algum outro cara seja a espinha e me segure.”

Ela: – “Você andou lendo o livro de Geografia de Tommy de novo. O glamour de Bornéu, seringueiras e morenas.”

Ele: – “Parece bem melhor do que o glamour da Olympic Mutual Insurance Company.”

O carro está parado diante do prédio da Olympic Mutual Insurance Company, no centro de Los Angeles.

Ela: – “Falando nisso, chegamos.”

Ele: – “Ah… Até as 17h50.”

Ele dá um quase beijo bem de leve na face direita de Sue, e aí ela reclama: – “Espere aí. Também estou me cansando desse beijo no rosto.”

Ele dá um beijo nos lábios dela. Sue agradece, ele diz “de nada” saindo do carro. Ela pede: – “E melhore esse humor quando voltar para casa à noite.”

Quem reclama de barriga cheia Deus castiga

O sonho americano nas mãos – e John Forbes está insatisfeito, enfadado, entediado.

O romance Pitfall havia sido lançado em 1947 – os produtores e o diretor André De Toth foram rápidos em comprar os direitos do livro e lançar o filme já no ano seguinte.

O autor do livro, Jay Dratler (1910-1968), teve uma educação refinada – estudou na Sorbonne, em Paris, e na Universidade de Viena. De volta aos Estados Unidos em 1932, traduziu livros do alemão, antes de se mudar para Hollywood, onde trabalhou como roteirista e começou a carreira de novelista. Foi um dos roteiristas do clássico Laura (1944), de Otto Preminger, que teve indicação ao Oscar de melhor roteiro, e um de seus seis romances, Call Northside 777, venceu o prêmio Edgar Allan Poe da associação dos escritores de histórias de mistério.

Pitfall, o título do livro e do filme, significa armadilha, cilada.

Vinte e um anos depois de Pitfall, em 1969, o grande Elia Kazan lançou um filme baseado em romance dele mesmo em que o protagonista tem muita semelhança com esse John Forbes criado por Jay Dratler e interpretado no cinema por Dick Powell. Em The Arrangement, no Brasil Movidos pelo Ódio, o publicitário Eddie Anderson (o papel de Kirk Douglas) é extremamente bem sucedido na profissão, é rico, tem uma casa monumental e uma bela mulher (o papel de Deborah Kerr). Mas está – exatamente como o John Forbes deste Pitfall – insatisfeito, enfadado, entediado. Numa das primeiras sequências do filme, tenta se matar enfiando seu carro esporte milionário embaixo de um gigantesco caminhão.

O sonho americano nas mãos – e se danando para isso.

Mary e eu costumamos sempre brincar que, como somos pessoas de muita sorte, não podemos nunca reclamar da vida: quem reclama da vida de barriga cheia Deus castiga.

Deus arranjou um castigo duríssimo para John Forbes.

O protagonista se mete num inferno cruel

Pouco tempo depois daquele diálogo dele com a mulher, Sue, que fiz questão de transcrever, John fica conhecendo uma moça chamada Mona, Mona Stevens. Mona vem na pele e na beleza faiscante de Lizabeth Scott, essa atriz que parece ter vindo ao mundo para trabalhar em dramas com clima denso, tenso, pesado.

Mona havia namorado um sujeito chamado Bill Smiley (Byron Barr), que achava que só mereceria o amor da moça caso a enchesse de presentes caros, do anel de noivado ao casaco de pele ao pequeno barco a motor ancorado no mar de Santa Monica. Como não tinha dinheiro para comprar tudo isso, roubou – e foi preso. À empresa de seguros que pagou pelo valor roubado – a Olympic Mutual Insurance Company – cabia identificar os bens comprados por Smiley e revendê-los, para se ressarcir ao menos de parte do prejuízo.

Quem faz o primeiro trabalho de localizar quem ganhou os bens comprados por Smiley é um brutamontes chamado MacDonald (o papel de Raymond Burr). Não é funcionário da Olympic Mutual – é um dos detetives particulares que a companhia de seguros contrata para executar algumas tarefas. Um terceirizado.

Depois do trabalho inicial de MacDonald, John Forbes assume o caso.

Diante de Mona Stevens – exatamente como o Walter Neff de Fred MacMurray diante da Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue –, John Forbes faz o inevitável: sucumbe, cai de quatro. Apaixona-se perdidamente.

Sofri muito por John Forbes, enquanto via o filme. Não tem jeito: sempre fico angustiado diante de boas histórias em que um homem bem casado se apaixona por outra mulher, porque não adianta – por mais que a nova paixão valha a pena, por mais que a nova mulher seja maravilhosa, vem aí um período que é infernal. Sei muito bem disso por experiência própria.

Creio que todos os espectadores sofrem por e com John Forbes. O inferno em que ele se mete será especialmente cruel.

A questão, no entanto, não é Mona Stevens – e isso é importantíssimo. O problema não é Mona Stevens, e sim o tal MacDonald. O gigantesco brutamontes também se apaixona pela bela moça, mas com uma paixão furiosa, louca, possessiva. Bota na cabeça oca que aquela mulher agora é dele – e o que vem é infernal.

Não há femme fatale, e não há bobo

É voz corrente que O Caminho da Tentação é um film noir, esse fantástico gênero de thriller, de policial, que Hollywood criou nos anos 40, sob a influência do expressionismo alemão dos anos 20 e tendo à frente diretores europeus exilados na América. É como o IMDb o classifica: “crime, filme noir, thriller”. Idem no AllMovie: gênero drama, subgênero filme noir. Ele está na caixa de DVDs Filme Noir Vol. 6 lançado pela Versátil Home Vídeo, assim como está no livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, de A.C. Gomes de Mattos.

Então tá, é um filme noir.

Pessoalmente, não acho que seja um noir. Sim, sim, tem todo o clima denso, tenso. Tem um tom de tristeza, desesperança, que é típico do noir. É da mesma época, é de um diretor que fez filmes noir, e a especialidade da atriz Lizabeth Scott é o noir. Mas, para mim, se não há um pato, um bobo, um sucker, de um lado, e, de outro, uma femme fatale que faz dele gato e sapato, então não é noir.

E a Mona Stevens de Lizabeth Scott é linda, loura, sedutora – mas não é uma femme fatale, de forma algums. É honesta, trabalhadora – trabalha como modelo, desfila na área elegante e fina de uma grande loja de departamentos. Não é manipuladora, de forma alguma. Muitíssimo ao contrário. Recua, tenta sair de cena, tenta sair da vida de John, ao saber que ele é casado.

É uma vítima – tanto quanto o próprio John. Os dois são vítimas – de fatalidades, do destino, de uma armadilha, uma cilada, um pitfall que os astros armaram para eles.

“O sonho americano tornado amargo”

No seu livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos escreve: “Mona não é uma mulher fatal. O roubo cometido por Smiley eventualmente coloca Forbes e MacDonald em sua vida e deste crime inicial resulta uma cadeia de outros. Quando Mona percebe que seu relacionamento com Forbes não pode continuar, sacrifica-se, encaminhando-o de volta ao lar. (…) Sob esse aspecto, o filme aproxima-se do melodrama ‘para mulheres’, porém há o elemento noir da situação do pai de família, que tenta escapar das restrições de um estilo de vida burguês opressivo, vê-se envolvido em um homicídio.”

“Melodrama para mulheres.” Acho essa definição de gênero muito mais apropriada a este belo e triste filme do que o de noir. Melodrama para mulheres. Douglas Sirk, o grande mestre dos melodramas, seguramente assinaria este filme dirigido por André de Toth.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 ao filme: “Breve caso extra-conjugal de homem casado pode custar a ele seu trabalho e seu casamento. Intrigante olhar de filme noir sobre o sonho americano tornado amargo, tipificado pelo personagem de Powell, que tem uma casa, um filhinho e uma esposa perfeita – mas se sente entediado e sufocado.”

Uau! Maltin estava em sua melhor forma! Bela avaliação!

No Allmovie, Hal Erickson escreveu: “O lado mais sombrio do sonho americano é explorado no fascinante filme noir Pitfall. Dick Powell estrela como John Forbes, um homem de seguros bem sucedido como uma esposa-troféu chamada Sue (Jane Wyatt) e um filho modelo chamado Tommy (Jimmy Hunt). Apesar de tudo que ele conquistou na vida, Forbes se sente de alguma maneira não realizado. Durante uma tentativa de recolher bens comprados ilegalmente de um ladrão de bancos condenado, Forbes se apaixona pela glamourosa Mona Stevens (Lizabeth Scott). Há um caso entre eles. Forbes sofre pontadas de culpa, um fato imediatamente captado pelo sórdido detetive MacDonald (Raymond Burr), que está perturbado porque Mona o rejeitou. Se houve adultério, um assassinato estaria longe demais. Muitas sequências de Pitfall são grandes destaques, notadamente uma em que o filho de Forbes, Tommy, tem um horrível pesadelo – quase exatamente igual ao que o ator mirim Jimmy Hunt enfrentaria no filme de 1953 Invaders from Mars.”

Um detalhinho. O IMDb dá o título brasileiro sem o artigo definido: Caminho da Tentação. Acredito mais no Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho, no Dicionário de Cinema – Os Diretores de Jean Tulard e na Versátil, que incluiu o filme na caixa de DVDs Filme Noir Vol. 6; os dois livros e a caixa da Versátil grafam O Caminho da Tentação.

Um detalhão que está na página de Trivia sobre o filme no IMDb – uma história absolutamente fantástica, que só por ela já daria um filme:

O normal seria que os funcionários responsáveis pelo cumprimento das regras do Código Hayes – o código de autocensura dos estúdios de Hollywood – não permitissem um personagem bom caráter, como John, ter um caso adúltero. Assim, o diretor André De Toth arranjou um encontro com dois proeminentes funcionários que eram casados – e demonstrou que sabia que cada um deles tinha sua amante. Depois disso, a produção não teve problema algum com o Código Hays.

Lenda? Fantástico demais para ser verdade? Pode ser. Mas que é uma boa história, lá isso é. Ameaçar os moralistas com seu próprio veneno. Que delícia.

Anotação em dezembro de 2019

O Caminho da Tentação/Pitfall

De André De Toth, EUA, 1948

Com Dick Powell (John Forbes), Lizabeth Scott (Mona Stevens), Jane Wyatt (Sue Forbes)

e Raymond Burr (J.B. MacDonald), Byron Barr (Bill Smiley, o amante de Mona), Jimmy Hunt (Tommy Forbes, o filho de John e Sue), John Litel (o promotor), Ann Doran (Maggie, a secretária de John), Selmer Jackson (Ed Brawley), Margaret Wells (Terry), Dick Wessel (sargento da polícia)

Roteiro Karl Kamb

Baseado no romance de Jay Dratler

Fotografia Harry Wild

Música Louis Forbes

Montagem Walter Thompson

Produção Samuel Bischoff, Regal Films. DVD Versátil.

P&B, 86 min

***1/2

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