Mulheres da Noite / Yoru no onnatachi

Nota: ★★★½

Kenji Mizoguchi abre seu filme Mulheres da Noite com uma magistral, impressionante tomada panorâmica de um trecho de Osaka. Enquanto vão rolando os créditos iniciais, a câmara vai fazendo um suave movimento para a esquerda, e então vamos vendo, ao longo de quase 360 graus, um panorama geral de uma das duas maiores metrópoles do Japão, naquele ano de 1948, o ano de lançamento do filme – menos de 3 anos apenas após a rendição do império que selou o fim definitivo da Segunda Guerra Mundial.

O fascismo italiano havia sido derrotado ainda em setembro de 1943; a Alemanha nazista se rendeu em maio de 1945, mas o Império Japonês continuou resistindo; a rendição só veio depois que os Estados Unidos lançaram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945.

Quando Mulheres da Noite foi lançado, em maio de 1948, portanto, a guerra terminara havia apenas 2 anos e 8 meses.

Diferentemente de muitas das grandes cidades alemãs – como foi mostrado, por exemplo, em outro filme daquele mesmo ano, A Mundana/A Foreign Affair, de Billy Wilder, rodado em parte entre as ruínas de prédios na Berlim bombardeada pelos Aliados –, Osaka, Tóquio e outras das principais cidades japonesas não chegaram a ser alvo da aviação aliada. Os ataques aéreos ao Japão foram só naqueles momentos finais do conflito, sobre Hiroshima e Nagasaki.

A Osaka que Mizoguchi mostra não é uma cidade bombardeada, em ruínas – mas é uma cidade empobrecida por um esforço de guerra que durou quase 6 anos. E os personagens da história – baseada em um romance de Eijirô Hisaita – vivem no limite da miséria.

Na primeira vez em que vemos Fusako Owada (Kinuyo Tanaka), a protagonista da história, ela está caminhando numa região muito, muito pobre da cidade. Vai até uma banca de comércio na rua, e conversa com a comerciante da banca. Obviamente, as duas se conhecem bem. A comerciante – de quem não vemos o rosto, a câmara do diretor de fotografia Kôhei Sugiyama colocada quase atrás dela, mostrando-a quase inteiramente pelas costas – pergunta a Fusako se seus pais e sua irmã já voltaram da Coréia. Ela responde que talvez já tenham até voltado, mas ainda não se encontraram: – “Eles não sabem que eu tive que me mudar de casa”, conta.

E logo pergunta se a comerciante poderia comprar algumas roupas velhas que ela havia trazido.

A comerciante oferece 600 ienes pelas roupas. Mas sugere que Fusako poderia ganhar muito dinheiro, poderia parar de se preocupar com dinheiro, se aceitasse satisfazer um homem muito rico, amigo seu.

Fusako recusa, ofendida de ter tido que ouvir semelhante oferta.

O filme indica de cara que falará de prostituição

Bem no início da narrativa, o filme mostra que Fusako Owada está sem os pais e a irmã, que haviam ido para a Coréia; está sem o marido, que certamente havia lutado na guerra e ainda não havia voltado para casa. Mora de favor na casa do irmão do marido – um tipo esquisito, estranho, que trabalha no mercado negro. Passando por necessidades, é obrigada a tentar vender suas roupas em troca de alguns ienes para comprar comida para o filhinho, que tem tubereculose.

Mas a situação, já no limite do insuportável, vai piorar. O filhinho de Fusako morre, e logo ela recebe a notícia de que o marido também havia morrido.

O diretor Mizoguchi já havia, de cara, falado sobre prostituição.

O espectador não tem que saber, é claro, que em outro filme – A Rua da Vergonha, de 1953 –, o diretor Kenji Mizoguchi mostrou a vida de um grupo de prostitutas de Tóquio, e em outro – A Mulher Infame, de 1956 – retratou a dona de uma casa de gueixas em Kyoto. Ou que um de seus filmes mais famosos, de 1952, tem o título de Oharu, a Vida de uma Cortesã. Ou que ainda em 1936 ele já havia realizado As Irmãs de Gion, sobre a vida de duas irmãs gueixas em Gion, o bairro da prostituição de Osaka.

Não é necessário que o espectador tenha essas informações para imaginar que aquela pobre mulher, ao se ver inteiramente sem outra saída, recorrerá à prostituição. Assim que terminam ao mesmo tempo a impressionante panorâmica de Osaka e os créditos iniciais, a câmara focaliza uma placa na rua com estes dizeres, segundo as legendas disponíveis no DVD: “Mulheres vadiando após o anoitecer podem ser presas por prostituição. Mulheres íntegras não devem ficar na rua após o anoitecer”.

Assim, desde o título – Mulheres da Noite –, desde a placa mostrada assim que começa a ação, antes de a protagonista Fusako surgir na tela, o filme já indicava que a prostituição surgiria.

E surge, é claro. Mas não depressa, não rapidamente. Demora um tanto – demora até bastante, quase a metade dos curtíssimos 75 minutos de duração do filme.

Fusako consegue emprego com o patrão do marido

Vemos que o dono da empresa em que trabalhava o marido de Fusako, o senhor Kuriyama (Mitsuo Nagata), dá um emprego a ela, e um bom emprego, como secretária dele. Com isso, a pobre mulher passa a ter condições de viver com alguma dignidade, em um quarto do que me pareceu ser uma pensão.

(É preciso sempre ressaltar, quando escrevo sobre um filme japonês: muitas vezes não compreendo – ou compreendo erradamente – o que está sendo mostrado na tela. É uma cultura tão absolutamente diferente, os símbolos, os signos, os gestos, as expressões, tudo é tão amazonicamente, grand-canyonmente, jupiterianamente distante do que a gente conhece, que sem dúvida as coisas ficam de difícil compreensão.)

De uma maneira inteligente, esperta, o roteiro dá a entender que o senhor Kuriyama deu o emprego de secretária a Fusako por motivo nobre, para tratar bem a viúva de um funcionário. Só bem adiante, depois que, por acaso, Fusako reencontra sua irmã que havia estado na Coréia, é que o espectador saberá que não foi bem assim.

Encontram-se por puro acaso, um belo dia, na rua, Fusako e sua irmã mais jovem – e muito mais bela – Natsuko (Sanae Takasugi). Fazem, é claro, uma grande festa, abraçam-se, beijam-se, vão a um bar conversar. Fusako estava com com sua irmãzinha mais nova, Kumiko (Tomie Tsunoda, na foto abaixo), uma garota aí de uns 15 anos, creio.

É só então que Fusako fica sabendo que Natsuko voltou sozinha da Coréia para o Japão: seu pai e sua mãe haviam morrido. Tendo já perdido o marido e o filho, Fusako enfrenta então a perda de pai e mãe – mas ao mesmo tempo ganha de volta a irmã.

As duas irmãs, Fusako e Natsuko, passam a dividir o quarto.

Esta última trabalhava como dançarina no Hollywood, um clube noturno.

En passant, mostras da influência americana

Um clube noturno, na Osaka de 1948, chamado Hollywood.

O filme de Kenji Mizoguchi não dedica muito tempo a falar da influência dos Estados Unidos sobre a vida no Japão naqueles anos em que milhares de soldados americanos ocuparam o país vencido na guerra – mas ao mesmo tempo não poderia evitar de falar dela, ainda que en passant. O nome do clube noturno em que Natsuko trabalha, e o tipo de música que se ouve lá, são uma demonstração da presença americana, da chegada da ocidentalização de muitos costumes na milenar cultura japonesa.

Há uma sequência em que estão no Hollywood Fusako, a adolescente Kumiko, a jovem e bela Natsuko e também o patrão da primeira, o senhor Kuriyama. Este está dançando com a jovem e bela Natsuko.

Depois disso, não leva tempo para Fusako ficar sabendo que o patrão está tendo com um caso com sua irmã. E para o espectador ser informado, enfim, com todas as letras, que Fusako não era apenas a secretária do patrão, mas também sua amante.

E será pela desilusão amorosa, por ter descoberto que o amante a traiu com sua irmã, que Fusako passará a se prostituir.

A miséria, a falta de dinheiro até mesmo para comprar alimentos para o filhinho doente, aquilo não havia sido motivo suficiente para que Fusako optasse pela prostituição. Nem mesmo o desespero com a morte do filhinho.

A dor da traição dupla, do amante e da irmã, a leva a se prostituir.

O roteiro põe na boca da atriz Kinuyo Tanaka, que faz essa triste Fusako, uma fala apavorante: – “Quero me vingar dos homens. Quero espalhar doença entre os homens.”

Fala-se muito de sífilis em Mulheres da Noite, a partir aí da metade do filme, quando Fusako vira prostituta.

No meio de tanta dor, possibilidades de esperança

A questão por-que-a-mulher-decide-se-prostituir é uma das mais recorrentes do cinema – e, de resto, creio, das várias formas de arte, e também da vida. Talvez seja uma das questões mais complexas com que a humanidade já se deparou – quase tanto quanto aquelas básicas, quem-sou- onde-estou-para-onde-vou, sobre as quais Ingmar Bergman fez dramas geniais e Woody Allen fez comédias hilariantes.

Em Mulheres da Noite e A Rua da Vergonha, Kenji Mizoguchi mostra várias mulheres que, no Japão empobrecido no pós Segunda Guerra Mundial, se tornaram prostitutas por não terem outra opção de sobreviver, de ganhar dinheiro para se sustentar e à sua família. Especialmente em A Rua da Vergonha, mostra histórias terríveis, trágicas, emocionantes.

Mas também mostra, nos dois filmes, prostitutas que parecem se divertir, ter prazer com a coisa.

Neste Mulheres da Noite, a garota Kumiko é arrastada para a prostituição por uma série de opções erradas que faz – e pela brutalidade de um jovem e de um grande grupo de putinhas juvenis. Mas, por mais estranho que isso possa parecer, demonstra que quer aquilo, e não quer deixar aquilo.

Não pretendo, de forma alguma, entrar em discussão sobre o que é certo, o que é errado, se há algo certo ou errado nessa questão. Apenas anoto o que Mizoguchi mostra nestes dois filmes que falam de prostitutas, prostituição, no Japão pós-guerra.

E anoto que, neste Mulheres da Noite, ele mostra janelas que se abrem, possibilidades de esperança em algo melhor. Já em A Rua da Vergonha, feito oito anos mais tarde – seu último filme –, o grande realizador não mostra esperança alguma.

Falar de mulheres foi uma decisão comercial!

Kenji Mizoguchi (1898-1956), um dos maiores realizadores do cinema japonês, um dos maiores realizadores do cinema, é tido (com toda razão) como um dos grandes autores de filmes sobre mulheres, sobre o universo feminino, sobre – como diriam as moças com quem trabalhei durante dois belos anos na redação da revista Marie Claire – o Planeta Mulher.

E é fantástica a forma com que ele mesmo fala sobre isso. Diante da afirmação do entrevistador – “Muitos dos seus filmes tratam da questão feminina” –, Mizoguchi respondeu, em fevereiro de 1950:

– “ Sim, embora não tenha sido minha intenção inicial. Assim como você já deve saber, há cerca de dez anos o diretor Minoru Murata faleceu. Ele era como um irmão mais velho para mim. Quase todos os seus filmes falavam sobre os homens. Ele dirigia esse tipo de filme. O estúdio não queria que dois diretorees fizessem filmes parecidos, então eles me pediram para dirigir filmes sobre mulheres. Foi uma decisão comercial. Este foi o impulso inicial. Pode-se dizer que eu fui conduzido por esse caminho. Entretanto, com o passar do tempo, meu interesse sobre o assunto cresceu.”

Que maravilha de depoimento!

Ele está logo no início do documentário Kenji Mizoguchi: A Vida de um Diretor de Cinema (1975), realizado por Kaneto Shindô, outro dos grandes do cinema japonês. O documentário está como um extra no precioso DVD de Mulheres da Noite lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, e que foi incluído na Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema.

E Mizoguchi prossegue: – “Bons filmes não nascem a partir de uma deliberação consciente, mas sim por meio de uma paixão interior. Talvez eu tenha ganhado algum conhecimento sobre as pessoas desde que era jovem, embora me pergunte até hoje o quanto realmente eu compreendo.”

Perdão, mas não consigo deixar de repetir: que maravilha de depoimento!

Um realizador que já era importante nos anos 20

Em sua magnífica História do Cinema Mundial, o pesquisador e crítico Georges Sadoul situa Mizoguchi como um dos três grandes realizadores do cinema japonês ainda nos anos 20, no período do cinema mudo, ao lado exatamente de Minoru Murata, que Mizoguchi considerava um irmão mais velho, e Teinosuke Kinugasa. Nos anos 20, ele era um dos “jovens cineastas que reclamaram com ardor a modernização do cinema japonês” e “queriam torná-lo independente do teatro filmado”.

No final dos anos 20, deu sua contribuição ao grupo Prokino (cinema proletário), com o filme Sinfonia Urbana (1929). Nos anos 30, enquanto muitos cineastas voltaram-se para temas do Japão antigo – até mesmo para fugir dos rigores da censura do governo que a cada ano mais se militarizava –, manteve-se tratando de histórias passadas na atualidade. E fez filmes que foram considerados como de “um novo realismo japonês”, cerca de dez anos e uma guerra mundial antes do mais famoso, importante e influente novo realismo do cinema mundial, o italiano do final dos anos 40 e início dos 50.

Era um trabalhador furioso, com uma incrivel capacidade de escrever e dirigir diversos filmes a cada ano. Só para dar um exemplo, em 1925 dirigiu nada menos que 11 títulos.

Assim como Mizoguchi, a indústria cinematográfica japonesa era prolífica, prolífera: realizava de 800 a 900 filmes por ano na década de 20 e início da de 30. Com a guerra, naturalmente, esses números caíram muito: foram 497 filmes em 1940 e apenas 46 em 1944. Os estúdios foram parcialmente destruídos.

Mizoguchi participou ativamente, é claro, dos trabalhos que levaram ao renascimento do cinema japonês a partir do final da guerra, ainda sob a ocupação militar americana.

Morreria ainda jovem, aos 58 anos, em Kyoto, em 1956; A Rua da Vergonha, citado acima, sobre a vida de um grupo de cinco prostitutas em Tóquio, seu filme de número 99, foi o último.

Diz sobre ele Georges Sadoul em sua História do Cinema Mundial: “Considerada em conjunto, sua obra tem uma densidade que faltou a certos filmes tomados isoladamente. Ela foi dominada por uma crítica da condição imposta às mulheres japonesas, da alta ou da pequena burguesia, trabalhadoras ou prostitutas. Mizoguchi situou em Gion – zona do meretrício de Osaka – seu maior êxito, Les Soeurs de Gion, que em 1936 fez com que se falasse de um novo realismo japonês.”

É muito impressionante como Mulheres da Noite, feito naquele país destroçado pela guerra, mostrando tanta miséria – material e moral – pode ser, ao fim e ao cabo, um filme esperançoso. Ou, no mínimo, que lança para o espectador um fiapo que seja de esperança.

Dá uma imensa vontade de ver mais filmes desse extraordinário cineasta.

Anotação em novembro de 2020

Mulheres da Noite/ Yoru no onnatachi

De Kenji Mizoguichi, Japão, 1948.

Com Kinuyo Tanaka (Fusako Owada), Sanae Takasugi (Natsuko Kimijima), Tomie Tsunoda (Kumiko Owada), Mitsuo Nagata (Kenzô Kuriyama)

e Hiroshi Aoyama, Fusako Maki, Kikue Môri, Sadako Sawamura, Ken Tanaka, Minpei Tomimoto

Roteiro Yoshikata Yoda

Baseado no romance de Eijirô Hisaita

Fotografia Kôhei Sugiyama

Música Hisato Osawa

Montagem Tatsuko Sakane

P&B, 75 min (1h15)

Produção Shochiku. DVD Versátil.

***1/2

Título em inglês: Women of the Night. Na França: Les Femmes de la Nuit.

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