Lion: Uma Jornada Para Casa / Lion

Nota: ★★★☆

Lion, co-produção Inglaterra-Austrália-EUA de 2016 que no Brasil ganhou no título o complemento de Uma Jornada Para Casa, foi premiadíssimo mundo afora. Ganhou 59 prêmios e teve outras fantásticas 104 indicações, inclusive 6 aos prêmios mais badalados do mundo, aquelas estatuetas douradas.

As indicações ao Oscar incluíram algumas das categorias mais importantes: melhor filme, melhor ator coadjuvante para Dev Patel, melhor atriz coadjuvante para Nicole Kidman, melhor roteiro adaptado para Luke Davis, melhor fotografia para Greig Fraser e melhor trilha sonora original para Dustin O’Halloran e Volker Bertelmann.

Foram quatro indicações aos Globos de Ouro, nas categorias melhor filme – drama, melhor ator coadjuvante para Dev Patel, melhor atriz coadjuvante para Nicole Kidman e melhor trilha original para Dustin O’Halloran e Volker Bertelmann.

Ao Bafta, foram cinco indicações, quase nas mesmas categorias: melhor ator coadjuvante para Dev Patel, melhor roteiro adaptado para Luke Davies, melhor atriz coadjuvante para Nicole Kidman, melhor fotografia para Greig Fraser, melhor música para Dustin O’Halloran e Volker Bertelmann.

Até as pedrinhas da calçada diante do Chinese Theater, no Hollywood Boulevard, em Los Angeles, onde estão as marcas dos pés e mãos de duas centenas de astros, estão cansadas de saber que a douta Academia de Artes e Ciências Cinematográficas erra, erra muito e erra feio, como, por exemplo, por jamais ter dado um Oscar de melhor diretor para Charlie Chaplin, Alfred Hitchcock e Orson Welles,

Mas quando a Academia indica qualidades em um filme que também são reconhecidas pelos membros da Associação dos Correspondentes Estrangeiros de Hollywood e pela Academia Britânica, aí não tem discussão. É porque o filme é bom mesmo.

Não me lembrava (ou não sabia) que o filme havia tido tão amplo reconhecimento mundo afora, quando resolvemos vê-lo.

Um garotinho que se perde da família

É um filme bem realizadíssimo – e todo feito com as melhores das melhores intenções. Baseia-se numa história real, conforme avisa de cara com o tradicional letreiro “Baseado em uma história real” e confirma ao longo dos créditos finais, mostrando cenas de filmes domésticos em que aparecem os personagens reais.

Para contar em poucas palavras, é a história real de um garotinho indiano que se perdeu da família miserável no interiorzão bravo daquele país continente, e eventualmente acabou sendo adotado por uma família australiana de classe média para média alta.

Os 53 primeiros dos 118 do filme mostram como o garotinho Saroo se perdeu do irmão mais velho, Guddu, entrou num trem e não conseguiu sair dele antes que tivesse percorrido 1.600 quilômetros, até chegar a Calcutá, em Bengala Ocidental, aquela megalópole que em 2011 tinha 4,5 milhões de habitantes.

Saroo, garotinho aí de uns 6 anos de idade, é interpretado – brilhantemente – por Sunny Pawarb. Seu irmão Guddu, de uns 14 anos, é feito por Abhishek Bharate.

(Por uma fantástica coincidência, vimos este Lion dois ou três dias depois de rever os dois primeiros filmes da Trilogia Apu, do mestre Satyajit Ray. No primeiro deles, A Canção da Estrada, de 1955, passado no interiorzão bravo de Bengala Ocidental, Apu tem aí uns 6 anos de idade, exatamente como esse Saroo do filme recente, e é interpretado também por um garotinho lindo, fascinante, esperto, sensacional.)

Aos 26 anos, o garoto decide procurar a mãe biológica

Aos 6 anos, por aí, Saroo se perde do irmão mais velho, no interiorzão bravo da Índia, e de repente está na megalópole que é Calcutá.

Como é esperto, inteligente, safo, sobrevive. É eventualmente levado para a polícia, e a polícia o entrega a uma instituição que cuida de crianças perdidas, crianças da rua. A instituição tenta todo o possível para localizar seus pais – mas Saroo não tem pai conhecido, e sua mãe, analfabeta, mora a 1.600 quilômetros de Calcutá.

Um casal australiano se inscreve para adotar o pequeno. Saroo tem a oportunidade, a chance, a sorte grande, imensa, gigantesca, amazônica, jupiteriana, de sair do inferno diretamente para o paraíso. Da mais profunda miséria para uma vida com todo tipo de conforto material – e mais o imenso conforto afetivo de um casal abnegado que o acolhe com o carinho com que acolheria um filho biológico.

O casal de australianos mora na Tasmânia. Chamam-se John e Sue Brierley, e são interpretados por David Wenham e essa atriz de beleza esplendorosa que é Nicole Kidman, aqui maquiada e cabeleireirada para parecer menos bela e mais próxima da Sue Brierley da vida real.

Quando o filme está com 53 minutos, há um corte no tempo, avança  20 anos, e Saroo, agora interpretado por Dev Patel, está deixando a casa dos pais adotivos na Tasmânia para ir para Melbourne, ali perto, fazer um curso de formação de empreendedores na área de hotelaria.

Dev Patel, é bom lembrar, tem se tornado arroz de festa. Nascido em Londres, em 1990, de pais quenianos descendentes de indianos, teve a sorte grande de estrelar Quem Quer Ser Um Milionário? (2008), de Danny Boyle, sucesso tremendo, 146 prêmios, inclusive, meu Deus do céu e também da Terra, 8 Oscars! Depois esteve nos dois O Exótico Hotel Maringold, o que também é sorte grande.

Em 2016, então, aos 26 aninhos, bonito, cabelão grande, aparece no meio deste Lion como o Saroo que ganhou a sorte grande de sair da profundeza da miséria para o conforto de uma vida boa como estudante em uma cidade bela e tranquila.

Como nasceu com o fiofó para a Lua, Saroo logo conquista a moça mais bela do curso, Lucy – interpretada por uma Rooney Mara mais bonita do que em qualquer outro filme que eu já havia visto.

Mas aí, de repente, não mais que de repente, Saroo pira. Passa a sentir uma vontade desesperada, desesperadora, de conhecer a sua mãe biológica, o seu irmão biológico. Quer porque quer abandonar a tranquilidade na vida do paraíso para ir atrás da família que vivia lá no fundo do fundo da miséria.

Boas intenções até demais

É uma história real, diacho. O filme conta – de uma maneira extremamente competente, em todos os quesitos técnicos, e com uma imensa boa intenção – uma história terrível, dramática, de uma pobre criança que se viu separada da família e que, já adulto, teve vontade de voltar às suas origens.

Tudo muito bonito. Tudo sensacional, bem intencionado, politicamente correto.

Nos créditos finais, há até mesmo uma confissão: o filme teve o suporte, o apoio, da ONG que cuida dessa tragédia que é meninos se perderem de suas famílias na Índia.

Dizem os letreiros antes dos créditos finais:

“Saroo Brierly conseguiu voltar para Ganesh Talai em 12 de fevereiro de 2012. Ele havia ficado perdido por mais de 25 anos. (…) A mãe de Saroo, Kamla, nunca havia perdido a esperança de que Saroo retornaria, e nunca havia saído dali. (…) Saroo descobriu que, durante todos aqueles anos, desde que era uma criança de 5 anos de idade, pronunciava mal seu nome. Seu nome era Sheru, que significa Leão.”

E então – como em tantos e tantos e tantos filmes que contam histórias que de fato aconteceram – começam a surgir imagens das pessoas reais da história. Confesso que ver os filmes das pessoas reais me fez sentir que estava me enfiando como um penetra numa festa que era para ser privada, só daquele povo ali.

Quando o abraço de Saroo, perdão, Sheru, com sua mãe biológica e com a mãe que o criou é mostrado em outra perspectiva, por uma câmara colocada em outra posição, senti um desconforto enorme.

Logo em seguida, surge um letreiro que traz a seguinte informação: “Mais de 80 mil crianças desaparecem na Índia por ano. Nós estamos trabalhando com extraordinárias organizações para ajudar crianças na Índia e ao redor do mundo. Vá para www.lionmovie.com e veja como este filme está ajudando a proteger crianças de rua e nos ajude a fazer a diferença.”

Há boas intenções em excesso.

Fiz uma conta.

80 mil crianças perdidas por ano. Meu Deus, minha Shiva, meu Buda, é criança demais.

Ao mesmo tempo… A Índia tem hoje cerca de 1.300.000.000 de habitantes. É tanto zero que fica difícil entender. São um bilhão e 300 milhões de pessoas. Para cada 7 habitantes do planeta, 1 é indiano.

Um continha básica mostra que, num universo de 1.300.000.000 pessoas, 80.000 que se perdem representam 0,0061 por cento.

Acho legal que haja uma ONG para ajudar os 0,0061 por cento de indianos que se perdem de suas famílias.

Mas acho que bom mesmo seria haver umas 1.000, talvez 10.000, talvez 100.000 ONGs tentando convencer os indianos a ter menos filhos.

Anotação em dezembro de 2019

Lion: Uma Jornada Para Casa/Lion

De Garth Davis, Inglaterra-Austrália-EUA, 2016

Com Dev Patel (Saroo Brierley), Sunny Pawar (Saroo Brierley garoto), Rooney Mara (Lucy, a namorada de Saroo), David Wenham (John Brierley, o pai adotivo), Nicole Kidman (Sue Brierley, a mãe adotiva), Abhishek Bharate (Guddu Khan, o irmão biológico), Divian Ladwa (Mantosh Brierley, o irmão adotivo), Keshav Jadhav (Mantosh criança), Priyanka Bose (Kamla Munshi, a mãe biológia), Deepti Naval (Saroj Sood, funador da Indian Society for Sponsorship and Adoption), Tannishtha Chatterjee (Noor)

Roteiro Luke Davis

Baseado no livro A Long Way Home, de Saroo Brierley

Fotografia Greig Fraser

Música Volker Bertelmann e Dustin O’Halloran

Montagem Alexandre de Franceschi

Casting Kirsty McGregor

Produção The Weinstein Company, Screen Australia, See-Saw Films,

Aquarius Films, Sunstar Entertainment, One Film at a Time. Distribuição Netflix.

Cor, 118 min (1h58)

1º/12/2019, com Marynha

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