55 Passos / 55 Steps

Nota: ★★★☆

Em 2017, o respeitável diretor dinamarquês Bille August fez 55 Passos/55 Steps, um desses muitos filmes sobre pessoas reais que viveram importantes histórias – histórias que fizeram a humanidade avançar um tanto, melhorar um tanto.

Pode não ser um grande filme – mas é feito com cuidado, esmero, talento e uma imensa simpatia pelo ser humano, esse troço que tantas e tantas vezes se demonstra uma invenção que, infelizmente, não deu certo. Tem, nos papéis principais, duas atrizes excelentes, maravilhosas, das melhores que há em atuação no cinema de língua inglesa, a americana de Nebraska Hilary Swank, 43 anos no ano de lançamento, 2 Oscars, mais 57 prêmios e outras 42 indicações, e a inglesa de Londres Helena Bonham Carter, 51 anos, 2 indicações ao Oscar e mais 85 outras, e 42 prêmios.

E conta, repito, uma história importante. Não é a chegada do homem à Lua, mas é um daqueles pequenos passos para a humanidade se distanciar das trevas, das cavernas.

Por causa de Eleanor Riese, uma doente mental de San Francisco (o papel de Helena Bonham Carter), e da advogada Colette Hughes (o papel de Hilary Swank), com a ajuda inestimável de um veterano advogado e professor de Direito da Universidade Golden Gate, Mort Cohen (Jeffrey Tambor), houve uma mudança na forma do tratamento de todas pessoas com doenças psiquiátricas no Estado da Califórnia, a partir do final dos anos 80, início dos anos 90.

Por decisão judicial, passou a ser proibida num dos Estados mais importantes, ricos e populosos dos Estados Unidos, a administração de remédios a pacientes psiquiátricos sem a anuência, a concordância, do próprio paciente.

Uma história dura, triste, pesada

É uma história americana, toda passada em San Francisco e seu entorno – e Bille August usa paisagens daquela cidade extraordinariamente bela, na minha opinião a mais bela do mundo, como uma espécie de pausa entre uma sequência e outra. Algo assim como o espaço em branco na página do livro em que terminou um capítulo.

Antes, a passagem de uma sequência-capítulo para outra era feita apenas com o fade out e fade in – o desaparecimento de uma imagem, a tela tornada negra durante alguns pedaços de segundo, maior ou menor de acordo com a intenção do diretor e de seu montador, e em seguida o surgimento da nova imagem. De alguns anos para cá, como se o fade out e o fade in já não bastassem mais, muitos filmes começaram a usar esse recurso de mostrar tomadas da cidade em que se passa a ação ao final de uma sequência-capítulo.

Esse recurso tem sido bastante comum. Não sou de ver novelas da Rede Globo, mas dá para saber que as novelas globais fazem muito isso – muito. Os realizadores da bela série O Negócio (2013-2018) mostraram paisagens belíssimas de São Paulo, em tomadas aéreas, da mesma forma com que a série croata O Jornal/Novine (2016) mostra paisagens de Rijeka, a maior cidade portuária da Croácia.

Fiquei impressionado como Bille August usou demais as imagens de San Francisco neste 55 Passos. É apenas um pequenino detalhe – mas torna o filme mais agradável de se ver. Porque a história em si de Eleanor Riese naturalmente não é nada agradável, saborosa. Muito ao contrário.

O filme já abre com um tapa na cara do espectador. Logo na abertura da narrativa, Eleanor Riese-Helena Bonhan Carter está sendo levada à força por um grupo de enfermeiros para dentro de um pequeno quarto que funciona como uma cela de solitária. Não há móvel algum – apenas um colchonete sobre o chão de material frio. Eleanor grita “não” de todas as formas, até que aplicam nela uma poderosa injeção dessas de fazer quietar um cavalo bravo, e em seguida saem todos do quarto-solitária. A câmara, em plongée total, como se colocada no teto, voltada para baixo, nos mostra aquela mulher, aquele ser humano feito à imagem de Deus Pai, tendo espasmos horríveis, até finalmente se aquietar.

No tribunal, a luta contra um hospital poderoso

O soco na cara do espectador não pára aí. Na verdade, não é um soco – é uma sequência deles. Jabs, uppercuts.  Nas tomadas seguintes, Eleonar está gritando por ajuda, dizendo que precisa ir ao banheiro. Ninguém a ouve.

Quando finalmente, depois de muitas horas, uma enfermeira abre a porta do quarto-solitária, Eleanor diz que precisa dar um telefonema. A camisola que ela veste está suja, e a enfermeira pergunta se ela não quer se lavar antes. Não, ela quer telefonar. Do corredor, faz uma ligação – e pede uma advogada.

Mais tarde, num tribunal de San Francisco, para chegar ao qual ela tem que subir os 55 degraus que dão título ao filme, o advogado do hospital argumentará que uma pessoa doente mental, que faz as necessidades na roupa, não tem condições de dizer a um médico que remédio deve tomar ou não.

O advogado do hospital acionado na Justiça por Colette Hughes e Mort Cohen em nome dessa pobre Eleanor Riese – experientíssimo, uma raposa felpuda da arte de proteger clientes milionários – me fez lembrar o personagem interpretado por James Mason na obra-prima O Veredito/The Verdict (1982), de Sidney Lumet. Naquele filme, Ed Concannon, o chefe de um dos maiores escritórios de advocacia de Massachusetts, representa não apenas o hospital católico em que uma anestesia mal dada transformou uma jovem mulher em um vegetal, mas também a entidade mantenedora do hospital, a Diocese de Boston da Igreja Católica.

Advogado experientíssimo, de escritório gigantesco, poderoso, defendendo uma instituição rica, forte, imbatível. Golias. O Ed Concannon de fato faz lembrar o advogado deste 55 Passos aqui, que, se não estou enganado, se chama James Adams, e é interpretado por Vincent Riotta.

Uma história americana – mas uma produção européia

Uma história americana, toda passada em San Francisco, ilustrada volta e meia com imagens de imensa beleza da cidade – talvez para, além de marcar o final de uma sequência-capítulo e o início de outra, dar um pouco de refresco ao espectador, no meio de uma história tão triste.

Uma história americana – e, no entanto, não é um filme americano. Não foram produtores americanos que decidiram investir num filme que conta a luta dessas duas mulheres e um advogado idealista. 55 Passos é uma co-produção Alemanha-Bélgica.

Bille August, nascido na cidade dinamarquesa de Brede em 1948, já fez filmes nos Estados Unidos, autênticas produções americanas. Depois do sucesso de crítica de Pelle, O Conquistador (1987) e As Melhores Intenções (1992), um filme com roteiro de Ingmar Bergman, Hollywood quis atrair Bille August – como costuma atrair os grandes talentos do mundo todo desde as primeiras décadas do século passado. E conseguiu, como consegue sempre. A Casa dos Espíritos (1993), com base no romance da chilena Isabel Allende, teve dinheiro americano e, no elenco, Glenn Close, Meryl Streep, Wyonona Rider.

Na Linha da Morte/Return to Sender (2004), um belo thriller sobre uma mulher no corredor da morte e um sujeito inescrupuloso que se aproxima dela, é um filme totalmente hollywoodiano. Mas, depois dele, o realizador voltou a fazer seus filmes na Europa – em geral co-produções de mais de um país. Trem Noturno para Lisboa (2013), por exemplo, é uma co-produção Alemanha-Suíça-Portugal. Já Um Homem de Sorte, que veio depois deste 55 Passos, em 2018, é uma produção apenas da sua Dinamarca natal.

Atuações extraordinárias – mas o filme não foi sucesso

Aparentemente, este 55 Passos não teve grande sucesso, nem de público nem de crítica. Um drama sério, pesado, sobre tratamento psiquiátrico não é mesmo um filme para ter sucesso de bilheteria. Mas não parece ter agradado à crítica. O belo site AllMovie, por exemplo, deu a ele apenas 2 estrelas em 5.

Na Variety, a bíblia do showbiz americano, Dennis Harvey escreveu que o filme “falha em obter trabalho memorável de qualquer um dos seus principais colaboradores”.

Opinião é assim mesmo, cada um tem a sua, e ninguém é dono da verdade. Agora, se a atuação de Hilary Swank neste filme não for excelente, e, em especial, se atuação de Helena Bonham Carter não for memorável, extraordinária, fantástica, então definitivamente eu não entendo nada de coisa alguma.

Anotação em novembro de 2019

55 Passos/55 Steps

De Bille August, Alemanha-Bélgica, 2017

Com Helena Bonham Carter (Eleanor Riese), Hilary Swank (Colette Hughes), Jeffrey Tambor (Mort Cohen)

e Johan Heldenbergh (Robert, o namorado de Colette), Cynthia Hoppenfeld (irmã Florence), Michael Culkin (juiz Farelly), Douglas Reith (juiz Raymonf), Tim Plester (Robbie), Jonathan Kerrigan (Dr. Bardy), Richard Riddell (Arno), Doreen Mantle (a mãe Eleanor), Vincent Riotta (James Adams), Tim Ahern (o entrevistador na rádio), Richard Laing (Ben Clandon), Anneika Rose (Margie), Florence Bell (Karen Winkle, a outra paciente)

Roteiro Mark Bruce Rosin

Fotografia Filip Zumbrunn

Música Annette Focks

Montagem Hansjörg Weißbrich

Produção Elsani Film, Aloe Entertainment, ChickFlicks Productions, MMC Movies, Mass Hysteria Entertainment, Potemkino Port.

Cor, 115 min (1h55)

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