Tully

Nota: ★★★☆

A primeira coisa que vemos de Marlo, a protagonista de Tully, é sua barriga de grávida, imensa, de nove meses. Marlo está no quarto de seu filho Jonah, e começa um longo processo de escovar toda a pele do garoto com uma escova de cabelo.

Tully, o sétimo longa-metragem de Jason Reitman, esse jovem diretor de fantástico talento, o terceiro dele com roteiro de Diablo Cody, é um filme sobre maternidade, sobre mulheres mães, sobre como mães convivem com a maternidade.

Como é uma história original de Diablo Cody, uma artista que surgiu como um talento rebelde, absolutamente nada convencional, muitíssimo ao contrário, já seria de se esperar que não é um filme para tecer loas à maternidade, para demonstrar as maravilhas que é ser mãe.

Tully é um filme para mostrar que a maternidade é dureza. É pauleira. É difícil pra cacete. Há momentos em que a maternidade é simplesmente o mais puro horror.

O bebê que está no barrigão imenso de Marlo – uma interpretação absolutamente maravilhosa de Charlize Theron – é o seu terceiro. Antes de Jonah (Asher Miles Fallica), o garoto que todos os dia escova cuidadosamente, ela já havia tido Sarah (Lia Frankland).

Sarah dá a imensa quantidade de trabalho normal que as crianças dão, mas Jonah excede. É uma criança muito, mas muito problemática: tem frequentes ataques de pânico, se qualquer coisa sai fora do roteiro que ele espera que seja seguido. O fato de Marlo não encontrar uma vaga no estacionamento da escola em que os dois estudam, por exemplo, desencadeia nele uma onda de pânico, e ele grita e chora e bate pés sem parar no banco da frente, o da mãe.

Marlo e o marido, Drew (Ron Livingston), jamais obtiveram dos médicos um diagnóstico preciso, uma definição exata de qual é, afinal, a doença de Jonah. Mas em algum lugar Marlo leu que escovar toda a pele de crianças que têm esse tipo de comportamento acalma a pessoa, baixa o nível de ansiedade – e então, mesmo sem certeza de nada, sem saber se isso funciona, Marlo a cada noite passa pela rotina de escovar Jonah pacientemente, o corpo todinho.

O terceiro filho não foi planejado

Por que uma mulher bem educada, culta, classe média razoavelmente bem de vida que já teve dois filhos, um deles bastante problemático, resolve ter um terceiro… Bem, esse é um mistério deste mundo de mistérios. Por uma frase de Craig (Mark Duplass), o irmão de Marlo, ficaremos sabendo que o terceiro filho não foi planejado. Portanto seguramente Marlo e Drew não tomaram os cuidados direito, e quando Marlo se viu grávida decidiram, por algum motivo que o filme não se preocupa em explicar, ter a criança.

Diablo Cody tem três filhos. Exatamente como Marlo, a personagem maravilhosamente interpretada por Charlize Theron. Charlize é de 1975, estava com 42 quando o filme foi lançado, em 2017. Diablo Cody, na certidão de nascimento Brook Michele Busey, é da mesma geração, nasceu em 1978, e estava portanto com 39 no ano de Tully.

Assim como Marlo, Diablo Cody teve os três filhos com o mesmo marido, seu segundo, Daniel Maurio, com quem se casou em 2009.

O espectador não tem a obrigação de saber disso quando se senta para ver Tully, mas muito provavelmente, quase certamente, muito do que se passa com Marlo deve ter se passado com Diablo Cody na vida real. Assim como Marlo, Diablo Cody sempre foi uma mulher bem educada, culta, classe média bastante razoavelmente bem de vida. O fato de ela ter trabalhado como stripper durante um bom tempo não se deve de forma alguma à falta de dinheiro ou de diploma universitário; dá perfeitamente inferir que a opção foi uma aventura, uma diversão, coisa de quem quer ser diferente, quer épater les bourgeois.

Diablo Canyon formou-se em estudo dos meios de comunicação pela Universidade de Iowa; Marlo fez Língua e Literatura Inglesa na universidade – um campo bem distante do seu trabalho como chefe de RH numa empresa da qual ela está de licença nos meses em que se passa a ação do filme.

Drew, o marido, trabalha com alguma coisa complexa relacionada a treinamento de pessoal. Trabalha muito, demasiadas horas por dia, e, na época em que nasce o terceiro filho – uma garotinha, a quem dão o nome de Mia –, está envolvido de corpo e alma no lançamento de um programa importantíssimo para a empresa.

O irmão promete pagar uma babá noturna

Marlo e Drew – o espectador vai vendo – se amam, parecem ter um bom relacionamento. Drew dá atenção aos filhos como pode – o problema é o pouquíssimo tempo que tem livre.

Moram numa casa em subúrbio de classe média para média alta, muito provavelmente em Connecticut, logo ao Norte de Nova York. Apesar de os dois terem diploma universidade, e os dois trabalharem, não são ricos, de forma alguma. Não têm dinheiro sobrando.

Já Craig, o irmão de Marlo, é muito rico. O filme considera que nem vem ao caso explicar o que ele faz, mas enfatiza bastante que ele tem muito dinheiro. Fica claro, por exemplo, que Sarah e Jonah estudam naquela ótima escola particular porque Craig faz generosas doações para ela.

Nem Drew nem Marlo gostam de Craig – em grande parte porque acham que ele dá importância demais a dinheiro e adora ostentar que tem muito dinheiro. Mas mantêm um relacionamento social com ele: afinal, é irmão de Marlo.

E então, bem no início dos 95 minutos de filme, o casal vai visitar Craig e sua mulher Elyse (Elaine Tan). Depois do jantar, num cômodo de sua imensa casa que transformou em bar com uma decoração pavorosa que segundo ele lembra o Taiti, Craig diz à irmã grávida de 9 meses que tem um presente para ela: assim que a criança nascer, ele pagará por uma babá noturna para Marlo. Conhece uma, muitíssimo bem indicada – basta Marlo ligar, ela já está esperando o telefonema.

A babá noturna – Craig propagandeia – faz absolutamente tudo. Passa a noite inteira na casa do recém-nascido, cuida de tudo relacionado a ele. Só incomoda a mãe na hora exata da amamentação – mas logo em seguida cuida para que o bebê arrote e depois volte a dormir. A mãe pode dormir tranquila, absolutamente tranquila.

Marlo acha aquilo um absurdo. Seria terceirizar a maternidade, ela diz. Um absurdo. Imagine, uma estranha dentro da sua casa, cuidando do seu bebê! Um absurdo!

Depois que Mia nasce, o filme de Jason Reitner com base no roteiro original de Diablo Cody apresenta uma sequência que dura menos de 5 minutos, talvez nem chegue a 4, mas é uma coisa antológica, incrível, fantástica. São tomadas bem rápidas, com montagem acelerada, ágil, dos momentos mais torturantes do dia-a-dia de uma mãe de recém-nascido. O choro, o pegar a criança, o trocar a fralda, o dar de mamar em luta contra o sono, o segurar a criança para o arroto, o embalar para que ela pare de chorar, o embalar para que ela pegue no sono, o dar uma geral no quarto, jogar a fralda suja no lixo, o tentar dormir de novo, o choro de novo no meio da madrugada, e recomeça tudo, e as tomadas vão ficando menores e o ritmo da montagem vai se acelerando.

São uns 4 minutos de grande cinema, algo de fato antológico.

É mais aterrorizante que pelo menos 95% dos filmes de terror.

Deveria ser mostrado para adolescentes na escola, como incentivo para o controle de natalidade.

Tully, a babá noturna, é perfeita – é como um anjo

Depois de três semanas daquela rotina, mais a rotina de cuidar da casa e dos dois filhos mais velhos, a diretora da escola (o papel de Gameela Wright) dos dois a chama pela segunda vez para dizer que Jonah deveria ir para uma outra instituição, que tivesse um professor exclusivo para ele, para atender às suas necessidades especiais.

No estacionamento da escola, Marlo dá berros de dor e fúria. Dentro do carro, depois de chorar por algum tempo, remexe na bolsa, encontra o papelzinho que Craig havia entregue com o número de telefone da babá noturna bem recomendadíssima.

O filme está exatamente com 31 minutos – um terço de sua duração total de 95 – quando toca a campainha, Marlo abre a porta e lá está a babá noturna. É interpretada pela atriz canadense Mackenzie Davis (na foto abaixo), jovem e bela mulher, e seu nome é Tully.

Tully é simplesmente a perfeição. É tudo o que uma mãe de bebê poderia sonhar em pedir a Deus.

Tully é tão absolutamente perfeita, mas tão absolutamente perfeita, que uns 20 minutos depois que ela entra em cena, comentei com Mary que estava me lembrando do personagem interpretado por Terence Stamp naquele filme do Pasolini, como era mesmo o nome? … E demorei um minuto para me lembrar do título de Teorema (1968).

Tem um pouquinho a ver, sim.

Charlize Theron engordou 22 quilos para o papel

Tully, o filme, vai fundo na questão do amadurecimento-envelhecimento da mulher. Nos diálogos entre Marlo e Tully, fala-se muito das diferenças da mulher de 26 anos, a idade de Tully (a atriz Mackenzie Davis estava com 30 quando o filme foi lançado), e a mulher de 40 e tantos, a idade de Marlo. Os quilos a mais. As estrias.

Consta que Charlize Theron engordou 50 pounds, libras, cerca de 22 quilos, para fazer o papel de Marlo. Dedicou-se a um regime de junk food, hambúrgueres, frituras, massas. queijos e milkshakes. Engordou tanto que sua filha mais nova perguntou se ela estava grávida. (Tem dois filhos, um garoto e uma garota, ambos adotados.)

Não que isso fosse inédito na carreira dessa atriz extraordinária: já havia engordado 30 pounds, uns 14 quilos, e adicionalmente se submetido a um longo e doloroso processo de uso de peças protéticas para ficar terrivelmente feia interpretar o papel central em Monster: Desejo Assassino (2003).

Não ficou feia para interpretar Marlo – mas ficou de fato gorda, com o rosto gordo, e uma aparência de mais velha do que é, de uma mulher de pele ruim, de aparência toda maltratada.

Transformar seu corpo foi parte de seu trabalho, de como ela compôs a personagem. A interpretação de Charlize Theron como Marlo é admirável, belíssima, sensacional.

Um filme com o olhar feminino

Tully tem sido rotulado como comédia e drama. O IMDb, o admirável site enciclopédico, o classifica como “comédia, drama, mistério”. Cada cabeça, uma sentença. Mary e eu não conseguimos enxergar um único momento de comédia em Tully.

É um drama, um drama adulto sobre sobre maternidade, sobre como mães convivem com a maternidade. Como fala de uma jovem mulher de 40 e poucos anos, é também um drama sobre a chegada à meia-idade, sobre o envelhecimento, portanto – e, assim, sobre a perda dos sonhos e das ilusões que restavam da juventude, da época dos 20 e tantos anos.

Quando a narrativa ainda está no início, Marlo tem um encontro inesperado, numa lanchonete, com Violet (Tattiawna Jones), que foi sua colega nos tempos da faculdade; as duas haviam morado juntas num loft em Nova York. A lembrança de seus tempos de juventude passa a ficar sempre presente em sua cabeça – e a juventude de Tully faz crescer a contraposição entre o que ela havia sido quase duas décadas atrás e o que ela se sente hoje, mãe de três filhos.

Imagino que este seja um filme que tocará especialmente o coração das mulheres de 40 e tantos anos e as que já passaram daí. Porque é um filme com o olhar feminino. A sensação que dá é que é um filme muito mais de Diablo Cody do que de Jason Reitman. Que Jason Reitman simplesmente emprestou seu talento para filmar a história escrita pela moça – a terceira história dela que ele filma, e sem dúvida alguma a mais particular, pessoal.

É necessário o registro: os dois filmes anteriores dirigidos por Jason Reitman e escritos por Diablo Cody são Juno (2007) e Jovens Adultos (2011). Juno também fala sobre gravidez – mas gravidez na adolescência. Quando se descobre grávida, a Juno do título, interpretada pela excelente Ellen Page, primeiro pensa em abortar, depois em entregar o bebê para adoção. E Jovens Adultos também é com Charlize Theron, que interpreta uma escritora recém-divorciada que volta à sua pequena cidade em Minnesota tentando reatar o namoro de adolescência.

Jason Reitman, garotão nascido em 1977 em Montreal, filho do diretor Ivan Reitman, de Os Caça-Fantasmas, o original (1984), Perigosamente Juntos (1986) e Dave, Presidente por um Dia (1993), é um realizador especial. Ainda não errou a mão uma única vez. São ótimos, assim como Juno e Jovens Adultos, seus quatro outros longas feitos antes deste Tully, Obrigado Por Fumar (2005), Amor Sem Escalas (2009), Refém da Paixão (2013) e Homens, Mulheres e Filhos (2014).

Sete filmes, sete acertos. Incrível.

“Lugares profundos, escuros, dentro da psiquê feminina”  

O site RogerEbert.com, em que várias pessoas prosseguem o trabalho do grande crítico, deu ao filme 3.5 estrelas. Eis um trecho do belo texto de Christy Lemire:

Tully desenterra verdades desconfortáveis de uma maneira irônica, inteligente. Apresenta o cinismo e sutil pungência hiper-verbal de Cody, mas é tingido com uma perspectiva melancólica que vem de maturidade e experiência duramente adquiridas. Os personagens de Cody estão amadurecendo juntamente com ela; ela de fato escreveu Tully depois de ter seu terceiro filho, e o fato de que esta é uma história muito pessoal aparece desde o início. É ao mesmo tempo intimamente detalhado e ambicioso narrativamente. E é surpreendentemente profundo, e se aproxima sorrateiramente de você com uma emoção subestimada mas completamente merecida.

“E ter Charlize Theron no centro, mais uma vez, dá a Tully muito de seu poder. Da mesma maneira que se mostrou a rainha do colegial que não soube amadurecer em Young Adult, Theron não tem medo de ser não-gostável, de parecer bagunçada, suja. Aqui, ela visita lugares profundos, escuros, dentro da psiquê feminina tanto quanto a santidade da vida nos subúrbios, e cada momento dela na tela (o que ocupa praticamente cada minuto do filme) vibra com uma honestidade hilariante e brutal.”

Uau! É isso aí.

A interpretação fantástica de Charlize Theron deu a ela uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz – em musical ou comédia!

Mas que comédia, meu Deus do céu e também da Terra?

Atenção: aqui no final, um spoiler!

E aí encerro este texto com uma informação que aparece com o aviso de spoiler na página de Trivia do IMDb.

Ou seja: é spoiler, tá? Quem não viu o filme não deve ler o que vem abaixo.

Em entrevistas, Charlize Theron contou que Diablo Cody vendeu a idéia do filme para Jason Reitman dizendo o seguinte: – “E se você estivesse passando por um período muito difícil, danado de difícil na sua vida, e o seu eu mais jovem viesse ajudar?”

Quase o Visitante de Teorema.

Anotação em abril de 2019

Tully

De Jason Reitman, EUA, 2017

Com Charlize Theron (Marlo)

e Mackenzie Davis (Tully), Ron Livingston (Drew, o marido de Marlo), Asher Miles Fallica (Jonah, o filho), Lia Frankland (Sarah, a filha), Mark Duplass (Craig, o irmão), Elaine Tan (Elyse, a mulher de Craig), Gameela Wright (Laurie, a diretora da escola), Tattiawna Jones (Violet, a amiga da juventude), Stormy Ent (Shasta, a superbabá dos filhos de Craig), Maddie Dixon-Poirier (Emmy), Bella Star Choy (Greta), Dominic Good (Dash), Joshua Pak (Dallas), Emily Haine (Barista)

Argumento e roteiro Diablo Cody

Fotografia Eric Steelberg

Música Rob Simonsen  

Montagem Stefan Grube

Produção Bron Studios, Right of Way Films, Denver and Delilah Productions, West Egg Studios, Creative Wealth Media Finance.

Cor, 95 min (1h35)

31/3/2019, com Marynha.

***

4 Comentários para “Tully”

  1. I loved the movie and I remembered my mother a lot, because she had a couple of twins an there was no one who could help at that moment, it just goes up that was two a week before delivery, it was a struggle because my father had to work. Mine was trhirty six years old. I loved the movie.

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