Tensão / Tension

Nota: ★★★☆

Tensão, um noir de 1949 dirigido por John Berry, não chega a ser uma maravilha, na minha opinião, mas é um bom filme, com várias características muito interessantes.

Uma delas é vermos a bela Cyd Charisse em uma de suas pouquíssimas aventuras fora do seu habitat natural, os musicais. Mesmo em A Bela do Bas-Fond/Party Girl (1958), de Nicholas Ray, outro drama, outro filme noir, a personagem que Cyd Charisse interpreta é uma dançarina.

Aqui ela faz Mary, a morena gente boa, bom caráter, coração imenso, para contrastar com a femme fatale da história, Claire, interpretada pela loura Audrey Totter, que trabalhou em vários policiais dos anos 40 e 50, muitas vezes como a bad girl.

E bota má nisso. Claire é uma das femme fatales mais abertamente, escancaradamente más da História do filme noir. Já nas primeiras sequências do filme o espectador vê que aquilo ali é um poço de mau caráter.

A cada femme fatale corresponde um pato, um sucker – este é um dos mandamentos do filme noir. Mas em Tensão os dois são exagerados. Claire é uma femme fatale exageradamente má, e Warren Quimby, seu marido, é um pato exageradamente ingênuo, bobo, tadinho. É impossível o espectador não morrer de dó dele, mesmo o espectador de coração mais duro.

Warren (o papel de Richard Basehart) ama a mulher de paixão, perdidamente, loucamente. Vive em função dela, trabalha feito um louco para poder dar todo o conforto a ela – e Claire não dá a menor bola para ele. Deixa-se paquerar pelos sujeitos que demonstram ter muito dinheiro – e, na primeira chance, quando aparece na vida dela um camarada que cheira a dólar, ela faz as malas e vai viver com ele na praia de Malibu, deixando o panaca do marido absolutamente arrasado, acabado.

Warren é tão ingênuo, tão bobo, e tão absolutamente apaixonado pela loura que só pensa em grana que comete a besteira de ir atrás dela, para implorar que ela volte.

A sequência é brutal: o pato encontra a mulher na praia, ao lado do amante, um tal de Barney Deager (o papel de Lloyd Gough). O pato de terno e gravata, na areia da praia, a mulher de maiô, o amante de short. O pato implora que a mulher volte para casa.

O espectador fica com pena daquele pobre diabo. Fica com vergonha por ele, tadinho do cara.

Mas ainda não acabou a humilhação: Barney, um sujeito grandalhão, enche de porrada o pobre Warren, que é pequenino – críticos que comentam sobre um filme num especial que vem no DVD lançado pela Versátil chamam a atenção para o fato de que Richard Baseheart, rapaz boa pinta, era baixinho mesmo.

Abandonado pela mulher, humilhado, ofendido, surrado, o pobre Warren começa a pensar em assassinato.

Uma abertura completamente diferente do usual

Uma das características fascinantes deste Tension é a abertura, uma abertura absolutamente diferente do que era normal no cinema americano da época.

Naquele final dos anos 1940, os filmes sempre começavam com os créditos iniciais. Sempre. Era uma regra, uma lei. E não era usual – de forma alguma – um ator se dirigir diretamente ao espectador, olhando nos olhos do espectador. Isso bem mais tarde passaria a ser comum, mas na época era uma absoluta novidade.

Tensão abre com o ator Barry Sullivan, encostado a uma porta em que se pode ler “Homicide Division”, olhando diretamente para a câmara, e portanto diretamente para o espectdor:

– “Meu nome é Collier Bonnabel. Sou um tira. Sou tenente detetive de Homicídios. É um nome chique para assassinato. Pegamos um monte de casos duros. Resolvemos a maioria deles. Mas como?”

O tenente detetive Collier Bonnabel começa a esticar uma tira de borracha. Estica, depois volta com ela para a posição normal. Estica, volta, estica, volta:

– “Só conheço um jeito de fazer os suspeitos se abrirem – a tensão. Trabalho em cima das pessoas, dos suspeitos. Jogo com eles. Jogo com seus pontos fortes, jogo-os em cima de suas fraquezas. Bajulo, pressiono. Trato bem, pressiono. Vou forçando, esticando.”

Close-up na tira de borracha que o tenente estica ao máximo.

– “Tudo, todo mundo tem um ponto em que quebra. E quando eles estão tão esticados que não conseguem mais aguentar…”

A palavra “Tension” aparece gigantesca na tela, no momento em que uma música forte, alta, começa. Os créditos iniciais são bem rápidos, como era o costume naquela época – mas a música acrescenta tensão ao que o tenente havia dito. A trilha sonora é de André Previn, muitos anos antes de Mia Farrow entrar na vida dele – e Previn estava, ao compor a música para Tensão, num momento Bernard Herrmann.

Claire, a mulher do protagonista, é a maldade em si

Logo após os créditos iniciais, vemos uma loja aberta, de noite. A voz do tenente Collier vai continuar narrando a história, agora em off, e ele chama a loja de drugstore – e ela é de fato uma farmácia, mas não apenas uma farmácia. É algo que não temos no Brasil, uma mistura de farmácia com lanchonete com loja de conveniência que tem um pouco de tudo.

A voz em off do tenente Collier explica:

– “Esta é a esquina da St. Ann com a 13. É uma drugstore que fica aberta a noite inteira. Nunca fecha! Você sabe, numa cidade grande como esta existem uma quatro ou cinco dessas aí. Ah, aquele ali é Warren Quimby. Ele é o gerente da noite.”

A câmara agora está dentro da drugstore – um lugar muito amplo, um gigantesco salão. Vemos Warren Quimby-Richard Basehart – e veremos depois que ele não é apenas o gerente de toda a loja durante as noites, mas também o farmacêutico do lugar, formado, diplomado; muitas pessoas o chamam de doutor. O tenente agora fala sobre ele:

– “Mora num apartamento bem ao lado da drugstore. Você sabe: essas lojas têm de tudo: passas e rádios, tinturas e toca-discos, cápsulas de vitaminas e balas de revólver. Eles servem café, vendem pacotes de cigarros e selos do correio, e num instante preparam um remédio para você.”

Claire, a mulher de Warren, está, neste momento, dentro da drugstore, sentada diante do balcão de café. Basta olhar para a cara dela que o espectador já percebe que aquilo ali não presta.

Nos primeiros dez minutos do filme, vemos diversas ocasiões que demonstram que Warren baba pela mulher – e que Claire não está nem aí para ele. É tudo absolutamente explícito.

Há uma sequência especialmente impressionante, extremamente simbólica. Warren diz para Claire que tem uma surpresa para ela. Ela pergunta se é um vestido novo, um carro novo, ele diz que não, que é muito mais que isso – e a leva para uma casa que está terminando de ser construída em um novo condomínio.

Claire torce o narizinho empinado, e diz algo do tipo: – “E por que eu iria querer morar num lugar a 30 minutos de tudo?”

E exige que eles voltem para a cidade.

Essa cena deve ter chocado profundamente todos os americanos que viram o filme na época do lançamento. Uma casa num condomínio, no subúrbio, naqueles anos que vieram logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, era o suprassumo do sonho de consumo de toda as famílias americanas.

Claire, a femme fatale má feito cobra venenosa, diz bah para o sonho americano. Quer um homem podre de rico, não uma casa num subúrbio a meia hora da cidade.

Lá pela metade, uma grande reviravolta. E depois outra

Depois de ser humilhado por Claire e espancado pelo amante dela, Warren, aquele pobre diabo, começa a pensar em assassinato.

E vai desenvolvendo um plano que acredita ser perfeito: ele criaria uma nova identidade, um outro homem, bem diferente dele. E vai pondo o plano em prática. Inventa um novo nome para si mesmo, Paul Sothern; inventa uma profissão diferente para Paul Sothern, de caixeiro viajante. Em vez dos óculos, o novo homem usa lentes de contato. Como Paul Sothern, aluga um apartamento num lugar da cidade bem longe do seu trabalho e de seu pequeno apartamento ao lado da drugstore. Ali passará seus fins de semana. E um belo dia esse Paul Sothern mataria Barney Deager, o amante de Claire.

É nesse novo apartamento, com essa sua nova identidade, que ele fica conhecendo Mary Chanler, a bela morena que mora na vizinhança. Mary Chanler, com aquela beleza de Cyd Charisse dela, se apaixona toda pelo rapaz.

O bobalhão, no entanto, dá pouco bola para a morena. Só pensa na loura má que tinha em casa, e que agora está com Barney Deager na casa dele diante do mar de Malibu.

E aí a história, que já começava a ficar um pouquinho chata, com o protagonista insistindo naquela bobagem imensa de Claire e de matar o amante dela, dá uma grande reviravolta.

Uma bela reviravolta. E depois ainda dará outra, e mais outra. É mais uma característica fascinante deste filme que não deixa nenhum fã de noir insatisfeito.

Um filme “injustamente esquecido”

Tensão foi o primeiro filme do diretor John Berry que vi. Confesso que nunca tinha ouvido falar nele.

Nascido em 1917 em Nova York, John Berry começou a careira no Mercury Theater, o grupo criado pelo jovem Orson Welles no final dos anos 1930. Foi para Hollywood nos anos 40 e dirigiu seu primeiro filme em 1946, A Vida é uma Só/Miss Susie’s Slaggles, um drama com a bela Veronica Lake. Este Tensão foi seu quinto filme.

No início dos anos 50, com os tempos horripilante do macarthismo e da caça às bruxas, em que o Comitê sobre as Atividades Anti-Americanas via comunistas em absolutamente todos os lugares, John Barry foi colocado na lista negra dos profissionais que os estúdios não poderiam contratar, e acabou se exilando na França, onde conseguiu realizar alguns filmes, antes de voltar para os Estados Unidos.

Vejo no IMDb que o personagem central de Culpado por Suspeita (1991), interpretado por Robert De Niro – um diretor de cinema que é investigado por ter simpatias pelo comunismo na era macarthista – foi inspirado em John Berry. Culpado por Suspeita foi escrito e dirigido por Irwin Winkler, que, cinco anos antes, em 1986, havia produzido Por Volta da Meia-Noite/Round Midnight, um drama dirigido por Bertrand Tavernier sobre um músico de jazz que abandona os Estados Unidos e vai viver na França; naquele filme, John Berry trabalha como ator.

Em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Jean Tulard foi bastante seco no seu verbete sobre John Berry. “Filmou uma versão musical de Pépé le Moko e um notável filme noir, na melhor tradição neo-realista, Por Amor Também se Mata”. A versão musical do filme Pépé le Moko, no Brasil O Demônio da Argélia, de Julien Duvivier, se chamou Casbah, O Reduto da Perdição, e tem no elenco Yvonne de Carlo e Peter Lorre.

Gostaria de ver o filme que Tulard elogia, Por Amor Também se Mata. Foi feito dois anos depois deste Tensão, em 1951; o título original é He Ran All the Way, e os principais atores são John Garfield e Shelley Winters.

O verbete sobre o diretor no Dicionário de Tulard prossegue assim: “Sua carreira foi interrompida pelo macarthismo: denunciado por (Edward) Dmytryk como comunista, Berry foi obrigado a se exilar. Realizou na França alguns filmes com Eddie Constantine e depois algumas fitas comerciais sem grande interesse. Jamais pôde confirmar as expectativas que alimentara.”

No seu gigantesco Guide des Films, no entanto, trata muito bem este Tension: “Um hábil thriller assinado por Berry e injustamente esquecido”, ele define.

Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “O tímido Basehart metodicamente planeja assassinar o amante de sua mulher, mas tem alguém que o bate neste intrigante melodrama.”

Tensão é um dos seis filmes da caixa Filme Noir Vol. 7 da ótima Versátil Home Video. Ainda bem que a Versátil existe.

Anotação em janeiro de 2019

Tensão/Tension

De John Berry, EUA, 1949

Com Richard Basehart (Warren Quimby), Audrey Totter (Claire Quimby), Cyd Charisse (Mary Chanler), Barry Sullivan (tenente Collier Bonnabel), Lloyd Gough (Barney Deager, o amante de Claire), Tom D’Andrea (Freddie, o funcionário da farmácia), William Conrad (tenente Edgar Gonsales), Tito Renaldo (Narco, o empregado de Barney), Philip Van Zandt (tenente Schiavone), Virginia Brissac (Mrs. Andrews, a síndica)

Roteiro Allen Rivkin

Baseado em história de John Klorer

Fotografia Harry Stradling

Montagem Albert Akst

Música Andre Previn

Produção Robert Sisk, MGM. DVD Versátil.

P&B, 95 min

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3 Comentários para “Tensão / Tension”

  1. Grande Sérgio! É com satisfação que venho deixar mais um comentário em seu sensacional site.

    Assisti há dois anos “Tensão” e já se tornou um dos meus preferidos.

    Cyd Charisse era realmente muito bela! Acho muito legal quando a personagem dela procura ajuda da polícia após Paul Sothern “desaparecer” misteriosamente. É engraçado que na vida real, pessoas corretas são tidas como “caretas” e “desinteressantes”, ao contrário de pessoas de caráter duvidoso, que são tidas como pessoas “interessantes”, “atraentes”.

    Interessante em saber que o diretor acabou entrando para a lista negra, igual aquele roteirista Dalton Trumbo (que foi interpretado no cinema pelo competente Bryan Cranston).

    Suas resenhas não decepcionam!
    Grande abraço.

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