Lady Bird: A Hora de Voar / Ladybird

Nota: ★★★☆

Lady Bird (2017), que no Brasil ganhou um complemento e virou Lady Bird: A Hora de Voar – talvez porque quase no fim a personagem título entra em um avião –, tem um lado de novidade, de frescor, e de outro um jeitão tremendo de déjà-vu. É o primeiro filme dirigido pela jovem e simpaticíssima atriz e roteirista Greta Gerwig. Mas é também o décimo bilionésimo filme sobre as desventuras e atribulações de um/uma adolescente em flor.

Há muito de Greta Gerwig em Lady Bird – o filme e a personagem. E isso é muito fácil de se perceber. Basta observar que a moça nasceu (em 1983) na cidade de Sacramento, Califórnia. Estava, portanto, com uns 19 anos ali por 2002, a época em que a ação se passa – e praticamente toda a ação se passa em Sacramento. E estava bem perto da idade de Catherine McPherson, que tem 17 anos ao longo de quase todos os 94 minutos do filme – e que insiste em ser chamada de Lady Bird, o filme não se preocupa em explicar por quê.

(Lady Bird era o apelido de Claudia Alta Taylor Johnson, a senhora Lyndon Baynes Johnson, o presidente número 36 dos Estados Unidos, na Casa Branca entre 1963 e 1969. Por que raios uma garota californiana escolheria o apelido da primeira-dama texana, por volta de 2002? Sabe-se lá.)

As muitas menções a Sacramento começam antes mesmo da ação, em uma epígrafe que vemos logo após os logotipos das empresas produtoras: “Quem fala em hedonismo na Califórnia nunca passou um Natal em Sacramento”. A frase – para mim bastante imperscrutável – é de autoria de Joan Didion, que vem a ser uma jornalista, romancista e memorialista nascida lá mesmo na cidade californiana.

Exatamente como sua criatura Christine, perdão, Lady Bird McPherson, Greta Gerwig é filha de um programador de informática e uma enfermeira – que aliás se chama Christine. Exatamente como sua criatura, estudou em colégio católico, de freiras. Exatamente como sua criatura, quando adolescente sonhava em estudar em Nova York algo relacionado a artes.

Esses fatos não deixam dúvida: Lady Bird, o primeiro filme dirigido (e também escrito) por Greta Gerwig, é, sim, autobiográfico. No mínimo, no mínimo, semi-autobiográfico.

O que, sem dúvida alguma, é interessante: que maravilha que haja filmes pessoais, em que o autor se revele, se mostre. Que sejam bem-vindos os filmes pessoais. Só tem o problema de que há alguns milhões de filmes sobre adolescência que são de alguma forma ou de outra autobiográficos, pessoais.

Uma adolescente como bilhões de outros

Christine, quer dizer, Lady Bird, a adolescente que se parece bastante com sua criadora, se parece também com bilhões e bilhões de outros adolescentes – reais e/ou já mostrados na literatura e cinema.

É inteligente, intelectualmente inquieta, curiosa. Mas é também pouco organizada, pouco focada, não é uma estudante brilhante – muito longe disso.

Na verdade, como tantos bilhões de adolescentes, ela se acha mais inteligente, mais genial, mais especial do que na verdade é.

Aos 17 anos, tem a absoluta certeza de que merece fazer, numa faculdade importante, um curso ligado a artes – sejam artes cênicas, música, dança. E uma faculdade na Costa Leste, de preferência em Nova York, a maior metrópole do país – já que ela considera a Califórnia, e Sacramento em especial, um lugar inculto, sem graça, sem importância cultural.

A mãe, Marion (Laurie Metcalf, excelente), tenta ponderar: faculdade importante custa caro demais, e a família não tem dinheiro. E, para ser aceita em faculdade importante, é preciso que a moça tenha uma ficha brilhante de estudante – coisa que Christine, perdão, Lady Bird não tem.

A garota não se conforma com as ponderações da mãe. Na verdade, ela e a mãe não conseguem se entender. A mãe está sempre tentando puxar a filha para o chão, para que ponha os pés na realidade – e a filha está sempre achando que a mãe é uma castradora, uma força contra seus sonhos grandiosos.

Ela se dá melhor com o pai, Larry (Tracy Letts). O problema é que o pai enfrenta faz alguns anos uma depressão – e, naquele momento da ação, perdeu também o emprego. O que só aumenta todos os problemas – e a depressão.

Não ser rica, não morar numa casa maravilhosa (embora more em uma casa com todos, absolutamente todos os confortos básicos), é uma eterna causa de desconforto na vida da garota.

Na verdade, Lady Bird é uma danada de uma chata.

Saoirse Ronan no papel de uma garota normal

Lady Bird tem uma grande amiga na escola, Julie (Beanie Feldstein, na foto acima), que, bem ao contrário dela, é um amor de pessoa. Gordinha, não propriamente bela, num meio social em que a aparência é tudo, Julie é uma adolescente doce, suave, nada, absolutamente nada aborrescente.

Haverá um primeiro namorado, Danny (Lucas Hedges), um garoto da escola cristã de rapazes, que vai trabalhar na mesma peça de teatro para a qual são também escolhidas Lady Bird e Julie. Aí acontecerá uma gigantesca decepção – e em seguida a garota se afastará da grande amiga Julie para se aventurar com um novo namorado, Kyle, e uma nova amiga, Jenna (Odeya Rush), uma garota que é bem o contrário de Julie – bonita, gostosinha, consciente disso e absolutamente fútil, vazia.

Adiei até aqui o nome da atriz que faz a personagem-título, a personagem central – e que foi o motivo pelo qual quis ver o filme.

Christine McPherson-Lady Bird é o papel de Saoirse Ronan, uma das mais brilhantes, se não a mais brilhante de todas as atrizes muito jovens surgidas neste século.

Saoirse Ronan me deixou apatetado, admirado, queixo caído pela primeira vez por sua interpretação como a inteligente, criativa, inventiva Briony Tallis de 13 anos de idade, que mistura ficção com realidade e cria uma gigantesca tragédia na vida de toda de uma família em Atonement (2007), a extraordinária versão cinematográfica do romance mais extraordinário ainda de Ian McEwan.

De lá para cá, essa moça nascida em 1994 no Bronx, Nova York, filha de pais irlandeses (seu nome, Saoirse, significa liberdade em irlandês, e se pronuncia seer-sha) e criada na Irlanda, já interpretou uma vampira (Byzantium, 2012), uma humana que hospeda em seu cérebro um ser de outro planeta muitíssimo mais desenvolvido que o nosso (A Hospedeira/The Host, 2013), uma americana que se vê imersa em uma realidade inesperada numa Inglaterra distópica, ameaçada pelo terrorismo (Minha Nova Vida/How I Live Now, 2013), uma super-mulher, uma super-adolescente mais fodinha que as super-mulheres da Marvel Comics (Hanna, 2011), uma pequena e talentosíssima vigarista que se faz passar por mágica (Atos que Desafiam a Morte/Death Defying Acts, 2007), uma jovem totalmente abalada psicologicamente que se apaixona pelo seu sequestrador e, ao final do sequestro, não consegue estabelecer ligação com os pais biológicos (Estocolmo, Pensilvânia, 2015.)

Foram tantos, tantos, tantos os papéis tão distantes da realidade, do dia-a-dia, das pessoas gente como a gente, que é impossível não nos encantarmos com este Lady Bird.

Saoirse Ronan está absolutamente espetacular como essa adolescente chata, meio metida a besta, mas exatamente por isso normal, igual a tantas e tantas e tantas e tantas outra adolescentes.

Que maravilha podermos ver essa atriz extraordinária fazendo papel de uma adolescente aborrescente, chata, e portanto normal!

A estréia da diretora teve uma excelente recepção

Greta Gerwig e Saoirse Ronan se conheceram pessoalmente durante o Toronto Film Festival de 2015. As duas estavam apresentando no festival filmes em que atuavam: Greta, Maggie Tem Um Plano, um filme absolutamente delicioso, em que ela dá um show. E Saoirse, Brooklyn, um dos melhores filmes de sua carreira, uma história triste, amarga, sobre imigração, solidão, saudade. Saoirse já havia lido o roteiro de Greta do que viria a ser Lady Bird; as duas conversaram sobre o roteiro, a história, a garota leu alto um dos diálogos-chave do filme – e a jovem autora teve a absoluta certeza de que aquela era a atriz perfeita para fazer sua Lady Bird.

Greta Gerwig se tornou conhecida dos cinéfilos, nos Estados Unidos e também aqui, creio, por sua ligação com o diretor Noah Baumbach, um queridinho da crítica e do público que frequenta festivais. Os dois assinaram juntos argumento e roteiro de Frances Ha (2012), um tremendo sucesso nesse nicho, e ela fez o papel principal. Foram também os autores de argumento e roteiro de Mistress America, o filme dirigido por Baumbach em 2015.

Além da parceria profissional, Greta e Baumbach viraram parceiros também na vida.

Consta que ele se ofereceu para dirigir Lady Bird, depois de ler o roteiro escrito pela namorada. Mas Greta preferiu dirigir ela mesma a história escrita por ela, em muitos pontos com base em sua própria vida.

Em entrevistas, Greta disse que quis que a ação se passasse em 2002 e 2003 – exatamente a época em que ela se formou na St. Francis Catholic High School – porque queria evitar fazer um filme passado nos dias de hoje. Não se sentia confiante em contar uma história sobre adolescentes obcecados com seus celulares.

O que, vamos e venhamos, é uma delícia de decisão…

Lady Bird foi relativamente bem nas bilheterias. Claro, ficou muito longe das cifras bilionárias dos filmes de ação baseados em personagens de histórias em quadrinhos, essas coisas tipo Transformers ou Homem de Ferro ou Os Vingadores, mas rendeu US$ 48,9 milhões nos Estados Unidos e Canadá e mais US$ 29,9 no resto do mundo.

E teve muito boa recepção entre a crítica e nos festivais. Recebeu nada menos que cinco indicações ao Oscar, todas elas para mulheres: para Greta Gerwig nas categorias de direção e roteirto original; para Saoirse Ronan na categoria melhor atriz, para Laurie Metcalf na categoria melhor atriz coadjuvante e para a produtora Evelyn O’Neill na categoria melhor filme.

Ao Globo de Ouro, teve quatro indicações: melhor filme – musical ou comédia, melhor atriz para Saoirse Ronan, melhor roteiro, melhor atriz coadjuvante para Laurie Metcalf. Levou os dois primeiros, melhor filme e melhor atriz para Saoirse.

Teve ainda três indicações ao Bafta, nas categorias melhor roteiro, melhot atriz para Saoirse Ronan e melhor atriz coadjuvante para Laurie Metcalf.

E ainda foi escolhido coml um dos melhores filmes do ano pela National Board of Review, pelo American Film Institute e pela revista Time.

Nada, mas nada mal para um filme que é o décimo bilionésimo a contar as desventuras e atribulações de um/uma adolescente em flor. E que é a estréia na direção solo da jovem Greta Gerwig.

Anotação em junho de 2019

Lady Bird: A Hora de Voar/Ladybird

De Greta Gerwig, EUA, 2017

Com Saoirse Ronan (Christine McPherson, a Lady Bird)

e Laurie Metcalf (Marion McPherson, a mãe), Tracy Letts (Larry McPherson, o pai), Beanie Feldstein (Julie Steffans, a maior amiga), Lucas Hedges (Danny O’Neill, o primeiro namorado), Timothée Chalamet (Kyle Scheible, o segundo namorado), Lois Smith (irmã Sarah Joan), Stephen McKinley Henderson (padre Leviatch), Odeya Rush (Jenna Walton, a nova amiga), Jordan Rodrigues (Miguel McPherson, o irmão), Marielle Scott (Shelly Yuhan, a namorada de Miguel), John Karna (Greg Anrue), Jake McDorman (Mr. Bruno), Bayne Gibby (Casey Kelly), Laura Marano (Diana Greenway)

Argumento e roteiro Greta Gerwig

Fotografia Sam Levy

Música Jon Brion

Montagem Nick Houy

Casting Heidi Griffiths, Allison Jones, Jordan Thaler

Produção A24, Focus Features, Scott Rudin Productions.

Cor, 94 min (1h34)

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