A Número Um / Numéro Une

Nota: ★★★☆

É impressionante como são áridos os temas tratados por A Número Um (2017), da francesa Tonie Marshall. Áridos, duros, secos, sem graça, sem charme. É um filme sobre trabalho – sobre altos executivos, e a luta de um grupo de feministas para colocar uma mulher, pela primeira vez, no cargo de presidente de uma das maiores corporações da França.

Um filme, portanto, que trata de um tema sério. E trata de uma forma séria. Numéro Une é um filme que se leva muito a sério.

Não tenta adocicar as coisas, dar um pouco de charme, de glamour. De forma alguma: Tonie Marshall – ela também autora do argumento e do roteiro, ao lado de Marion Doussot – fez um filme sério, seco, árido e sem graça assim como seu tema, o trabalho.

Que fique bem claro: não vai aí nenhuma crítica, nenhuma queixa, nenhum juízo de valor. É apenas uma descrição do tom do filme, mais nada.

Mais super-mulher que as super-mulheres dos quadrinhos

A personagem central, Emmanuelle Blachey, vem em uma belíssima interpretação de Emmanuelle Devos, a atriz de tantos bons filmes, como O Adversário / L’Adversaire (2002), Bancos de Praça / Bancs Publics (Versailles Rive Droite) (2009), Ervas Daninhas / Les Herbes Folles (2009), A Criança da Meia-Noite / La Permission de Minuit (2011). Na calma e madura beleza dos 53 anos, Emmanuelle Devos teve aqui muito certamente um dos melhores papéis de sua carreira, iniciada em 1986 e que já tem mais de 80 títulos – e soube maravilhosamente como aproveitar a oportunidade.

A Emmanuelle Blachey criada por Tonie Marshall e Marion Doussot e tornada viva por Emmanuelle Devos é uma mulher forte, determinada, trabalhadora, talentosa, dedicada. É uma das principais executivas de um conglomerado da área de energia, e chefia a empresa do grupo que explora energia eólica em parceria com uma gigante chinesa do ramo. Fala mandarim com os chineses com uma facilidade que impressiona a todos – aos chineses e a seus colegas executivos do conglomerado.

Tem um filho já criado, adulto, de um primeiro casamento, que pouco vê, e uma filhinha de uns 7 anos, do casamento atual com Gary Adams, ele também um executivo, inglês ou irlandês, que trabalha numa grande empresa em Paris. Inglês ou irlandês, não se explicita: o ator que o interpreta, John Lynch, de The Fall (2013) e Retributon (2016), nasceu na Irlanda do Norte.

Para conseguir dar conta de todas as tarefas – de superexecutiva, dona de casa, esposa, mãe –, Emmanuelle tem um rotina dura, pesadíssima; dorme apenas 4 horas por noite. Apesar disso, da carga de trabalho desumana, não é uma pessoa amarga, seca. Bem ao contrário, parece o tempo todo bem disposta, bem humorada.

Mais super-mulher que qualquer super-mulher dos quadrinhos.

Uma proposta absolutamente decente

Logo no início dos 110 minutos de narrativa, Emmanuelle é procurada por mulheres de um grupo feminista liderado por uma velha batalhadora da causa, Adrienne Postel-Devaux (Francine Bergé). Fazem parte do grupo profissionais de assessoria de imprensa e de especialistas em enfrentar crise, entre elas Véra Jacob (Suzanne Clément) e Claire Dormoy (Anne Azoulay).

Adrienne, acompanhada de Véra, Claire e outras mulheres do grupo, faz a proposta a Emmanuelle: ela aceitaria que aquela equipe trabalhasse para que ela, Emmanuelle, assumisse a presidência da grande empresa de águas e saneamento básico, a Anthéa?

O grupo não pede nada em troca. Não é uma negociação visando a lucro, a alguma manobra futura, a nada que passe perto de coisa ilegal, de corrupção. Não, nada disso: é apenas pela luta pelas mulheres. Para que haja ao menos uma das empresas do CAC 40 presidida por uma mulher. (CAC 40 são as 40 maiores empresas francesas com ações na Bolsa de Valores. CAC é a sigla de Cotation Assistée en Continu. Pertencem à CAC 40, para que se tenha uma idéia, a Airbus, o Carrefour, a Peugeot, o grupo Accor, dos hotéis, entre outros gigantes.)

E por que Emmanuelle? Por que a proposta está sendo feita a ela? Ora, porque ela já é uma das executivas mais importantes entre as grandes empresas francesas. E é da área de infra-estrutura. É a pessoa mais indicada, mais preparada.

Emmanuelle aceita a proposta.

A executiva terá que enfrentar uma dura batalha

Não será uma luta fácil.

Um dos grandes empecilhos é Jean Beaumel (o papel de Richard Berry, na foto acima), um veterano executivo da indústria francesa, respeitadíssimo entre seus pares, entre os grandes acionistas das maiores empresas e também no Palais de l’Élysée, a sede do governo. Beaumel já havia ocupado a presidência da Anthéa, e sua palavra para a escolha do novo presidente terá grande peso.

Com o tempo, Emmanuelle Blachey – assim como o espectador – ficará sabendo que Beaumel deixou um rombo gigantesco de 800 milhões de euros na Anthéa, algo que foi muito bem escondido do público.

Entre os colaboradores mais próximos de Beaumel está Marc Ronsin, um dublê de executivo e lobista de boa aparência, muito charme e absolutamente nenhum caráter. Ronsin é interpretado por Benjamin Biolay  (na foto abaixo), ele mesmo um artista dividido entre o cinema e a música – é um extraordinário compositor e cantor.

Eventualmente, Marc Ronsin deixará de gravitar em torno de Beaumel e oferecerá seus préstimos a Emmanuelle. E é claro que, ao contrário dos préstimos do grupo feminista, que são de graça, Ronsin exigirá muita coisa para apoiar a executiva.

Entre um compromisso de trabalho e outro, Emmanuelle encontra tempo para visitar o velho pai, está convalescendo de uma doença. Há duros – e fascinantes – diálogos entre pai e filha. Henri Blachey é interpretado por um ator que era fetiche nos anos 60, Sami Frey; aos 80 anos de idade, os cabelos longos como eram décadas e décadas atrás, Sami Frey ainda é um Apolo.

O filme vai muito além de mostrar a injustiça

Trabalho, trabalho, trabalho. Disputa interna no trabalho. Disputa em campo aberto com um industrial respeitadíssimo. Referências a subornos, corrupção. O casamento que já era complicado se tornando ainda mais difícil diante de mais e mais tarefas para a executiva. Os cuidados com a imagem, com o que diz a imprensa.

Sem dúvida, é impressionante como são áridos os temas tratados por Tonie Marshall em seu filme. E não há momentos mais suaves, áreas de descanso, sequências um tanto alegres, engraçadas. Nada. É tudo sério –como o trabalho.

A sensação que se tem, quando A Número Um termina, é que a realizadora quis mostrar, em primeiro lugar, a situação ainda hoje injusta no topo da carreira dos executivos, em que há muito pouco espaço para as mulheres. Já se andou muito, desde o início do século XX, quando surgiram os primeiros movimentos pelo direito de voto das mulheres nos países mais desenvolvidos do mundo. Já se andou muito, desde os anos 1960, a época em que a luta feminista se tornou mais evidente, mais presente no dia a dia de todos. Mas ainda falta muito, sem dúvida alguma. Em 2017, na França, só uma mulher chegou a presidir uma das empresas do CAC 40 – e, mesmo assim, na ficção.

Mas o filme vai muito além de expor essa injustiça.

Mostra, com cuidado, competência, rigor, o esforço hercúleo, sobre-humano, que é necessário uma mulher fazer para chegar aos postos mais altos da direção das empresas.

E mais ainda, e muito pior: é simplesmente impossível chegar lá de mãos absolutamente limpas. O sistema não permite isso. O sistema é necessariamente sujo – e, se a mulher quiser chegar lá no alto, tem que se sujeitar a enfiar a mão na merda.

Não é um filme fácil, agradável de se ver. É duro – como a vida.

O contrário de um filme vitimista – um filme positivo

Uma palavrinha sobre Tonie Marshall – de quem eu jamais ouvira falar, confesso.

Nascida em 1951, ela é filha da atriz Micheline Presle! Micheline Presle, a atriz de beleza estonteante, descoberta no final dos anos 30 por G. W. Pabst, em A Lei Sagrada (1939), mais de 180 títulos numa carreira que se estende de 1937 a 2014. Entre 1949 e 1955, Micheline foi casada com o ator e diretor americano William Marshall, o pai de Tonie.

Tonie Marshall é atriz (46 títulos na filmografia), produtora, diretora de fotografia, roteirista e diretora. Como diretora, já fez nove longa-metragens, dos quais creio que o mais conhecido é Instituto de Beleza Vênus (1999), com Nathalie Baye, Mathilde Seigner e Audrey Tautou.

Segundo a diretora contou em entrevista – reproduzida no site AlloCiné, que tem tudo sobre o cinema francês –, uns seis ou sete anos antes de fazer Numéro Une ela havia imaginado fazer uma série sobre a dificuldade de as mulheres chegarem aos postos mais importantes em diversas carreiras, diferentes profissões. Não conseguiu levar o plano adiante – e então passou a imaginar um filme sobre uma única personagem, e não mais sobre várias. Aí a coisa andou.

O nome de Raphaëlle Bacqué aparece nos créditos como colaboradora no roteiro. É uma jornalista do Le Monde, que serviu como consultora para Tonie Marshall, e fez a ponte para que ela ficasse conhecendo e entrevistasse altas executivas francesas. “Elas me contaram diversas histórias, pequenas humilhações que tiveram que enfrentar no dia a dia, num meio essencialmente masculino. Os testemunhos que ouvi delas foram muito importantes para elaborar o percurso da minha heroína.”

Tonie Marshall realça que seu filme não é “victimaire” – vitimista, com uma visão de vítimas. “Numéro Une quer ser um filme positivo, o contrário de um filme vitimista. O discurso vitimista me faz mal. Eu sei que a dúvida é um sentimento que muitas mulheres têm, mas, mesmo atingidas ou machucadas, devemos tentar avançar, devemos sempre acreditar que as coisas podem mudar.”

Anotação em junho de 2019

A Número Um/Numéro Une

De Tonie Marshall, Bélgica-França, 2017

Com Emmanuelle Devos (Emmanuelle Blachey)

e Suzanne Clément (Véra Jacob), Richard Berry (Jean Beaumel), Sami Frey (Henri Blachey, o pai de Emmanuelle), Benjamin Biolay (Marc Ronsin), Francine Bergé (Adrienne Postel-Devaux), Anne Azoulay (Claire Dormoy), Bernard Verley (Jean Archambault), John Lynch (Gary Adams, o marido de Emmanuelle), Olivier Claverie (o secretário-geral do Palácio do Elysée), Jérôme Deschamps (o presidente da Theorès), Avy Marciano (Yves Lafferière), Patrick Ligardes (o n°2 da Theorès), Guillaume Pottier (Denis), Lucie Borleteau (Laure Marty)

Argumento e roteiro Tonie Marshall & Marion Doussot, com a colaboração de Raphaëlle Bacqué      

Fotografia Julien Roux

Música Fabien Kourtzer e Mike Kourtzer

Montagem Marie-Pirre Frappier e stéphane Garnier

Casting Brigitte Moidon e Valérie Trajanovski

Produção Tabo Tabo Films, France 3 Cinéma. Versus Production, CN7 Productions, Noodles Production.

Cor, 110 min (1h50)

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