A Livraria / The Bookshop

Nota: ★★½☆

Todas as intenções, em A Livraria/The Bookshop, co-produção Espanha-Inglaterra-Alemanha de 2017, são nobres, boas, generosas. É a história de uma jovem viúva amante das letras e dos livros que luta para abrir e manter uma livraria em uma pequenina cidade litorânea inglesa no finalzinho dos anos 1950.

A jovem viúva é interpretada, com brilho, graça e talento, por Emily Mortimer, essa ótima atriz. A direção é da catalã Isabel Coixet, que considero uma das melhores entre todos os realizadores em ação nos últimos anos, autora de alguns grandes filmes, outros se não grande no mínimo muito bons: Minha Vida Sem Mim (2003), A Vida Secreta das Palavras (2005), Fatal/Elegy (2008), Assumindo a Direção (2014), Ninguém Deseja a Noite (2015).

É uma produção absolutamente impecável em todos os quesitos, dos figurinos (de Mercè Paloma) ao desenho de produção e à direção de arte (de, respectivamente, Llorenç Miquel e Marc Pou), da escolha do belo elenco (por Jeremy Zimmermann) à música de Alfonso de Vilallonga.

A fotografia – de Jean-Claude Larrieu – é uma maravilha.

E no entanto…

E no entanto…

Não sei bem. Ou será que sei mas não consigo definir direito o que, no entanto, acontece?

Todos são contra a idéia de se abrir uma livraria!

O livro The Bookshop foi lançado em 1978; foi o segundo romance de Penelope Fitzgerald (1916-2000), uma escritora inglesa nascida em família distinta, de gente de fina educação, ligada às artes e à cultura. A mãe, filha do bispo anglicano de Lincoln, foi uma das primeiras mulheres a serem admitidas em Oxford. O pai foi editor da revista Punch, e entre os tios dela havia um teólogo e escritor, um expert sobre a Bíblia e um romancista e biógrafo.

Eis como a Wikipedia sintetiza a trama do livro – que a própria realizadora Isabel Coixet roteirizou, aparentemente com bastante fidelidade:

“A novela, passada principalmente em 1959, gira em torno de Florence Green, uma viúva de meia-idade que decide abrir uma livraria na pequena cidade litorânea de Hardborough, Suffolk. O lugar que ela escolhe é a Velha Casa, uma propriedade abandonada (…). Depois de muitos sacrifícios, Florence consegue abrir seu negócio. Ela sofre a oposição da influente e ambiciosa Mrs. Gamart, que quer adquirir a Velha Casa para criar ali um centro de artes.”

Não adianta procurar no mapa a cidade em que se passa toda a ação de The Bookshop, Hardborough: ela é fictícia, é uma criação de Penelope Fitzgerald. E Hardborough não é apenas fictícia: é uma cidade estranha. Praticamente todo mundo ali fica contra a idéia de Florence Green de querer abrir uma livraria.

Apenas uma pessoa ficará do lado de Florence: o rico, excêntrico, misterioso, recluso Edmund Brundish, um leitor voraz. Brundish é interpretado por Bill Nighy – e, que eu me lembre, esta foi a primeira vez que o vi em um papel dramático. Já vi Bill Nighy em um monte de filmes, todos eles comédias.

Florence não nasceu naquela pequenina cidade; foi para lá após a morte do marido na Segunda Guerra Mundial. Não sei se o livro explica por que ela escolheu se mudar para Hardborough, mas o filme da grande Isabel Coixet não se preocupa com isso.

Mas o que é muito pior: o filme não consegue explicar por que raios ninguém ali – à exceção de Edmund Brundish – deseja que haja uma livraria na cidade.

O banqueiro é contra. O próprio advogado de Florence é contra. O sujeito que mora na cidadezinha e trabalha para a BBC (não se explica o que exatamente ele faz na BBC), um tal de Milo North (James Lance), sujeitinho antipático, desagradável, um horror, é contra.

Sobretudo e sobre todos, a tal da Mrs. Gamart citada na sinopse da Wikipedia é absolutamente contra a abertura de uma livraria na cidade. E ela é a mulher mais rica do lugar; casada com um general (o papel de Reg Wilson), se sente a dona de Hardborough.

E essa dona Gamart não apenas não quer que Florence abra a livraria. Ela passa a ter um ódio mortal da idéia – e exerce a sua influência para que todos, absolutamente todos do lugar lutem para que a livraria não dê certo, não prospere, não dure.

Mrs. Gamart é interpretada – com brilho – por Patricia Clarkson, a grande atriz com quem Isabel Coixet já havia trabalhado em Fatal e Assumindo a Direção. Que eu me lembre, esta é a primeira vez que vejo Patricia Clarkson interpretando uma vilã.

E Mrs. Gamart é uma vilã horrenda. Das piores que já houve na literatura, no cinema, em qualquer tipo de ficção: é uma bruxa, uma megera, uma coisa absolutamente sem jeito.

Mas por que, diabos, são contra uma livraria?

Por que raios, na Inglaterra, em 1959 – não estamos falando da Idade Média, nem de um território dominado por fanáticos talibans –, todo mundo é contra a idéia de uma viúva abrir uma livraria?

Não tenho a menor idéia.

O filme dessa realizadora tão talentosa, com tantos bons atores, essa produção tão caprichada, não conseguiu me explicar.

Seria assim uma espécie de parábola? Uma metáfora, talvez, exatamente sobre os fanáticos do atraso, os defensores da ignorância? Seria aquela imaginária cidadezinha de Hardborough um microcosmo de regime totalitário que conseguiu se incrustrar num belo trecho do litoral inglês?

Uma espécie assim da sociedade do futuro distópico criado por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, em que os livros são banidos, sob a alegação de que tornam as pessoas infelizes?

Ray Bradbury e Fahrenheit 451 têm importância na trama de A Livraria: Florence manda um exemplar do livro, que acabara de ser lançado, para Edmund Brandish, e ele passa a ter adoração pelo livro e por Ray Bradbury.

Outro livro que tem importância na trama é Lolita, de Vladimir Nabokov. A história do velho professor que se apaixona perdida e obsessivamente por uma garotinha de 12 anos chocou os puritanos nos puritanos anos 1950, que viram no romance traços de pornografia.

Seria a luta entre Florence e Mrs. Gamart assim uma parábola sobre a luta entre o Bem e o Mal? Entre o Conhecimento e a Ignorância?

Uma parábola sobre a luta entre Liberdade de Expressão e Censura, entre Arte e Ignorância, entre Cultura e Obscurantismo?

Só se for.

“É desapontador que este filme não funcione”

Acho que consigo, sim, completar aquela frase, aquela idéia lá do início. Todas as intenções, em A Livraria/The Bookshop, são nobres, boas, generosas. E o filme é todo extremamente bem feito. No entanto, fica faltando o básico: alguma explicação para o estranho fenômeno que ocorre na fictícia cidade de Hardborough.

Fica faltando lógica.

The Bookshop obteve diversos prêmios Gaudi e Goya – o primeiro é assim o Oscar da Catalunha, a terra de Isabel Coixet, e o segundo é o Oscar da Espanha. Ao Gaudi, foram 12 indicações, inclusive ao Melhor Filme em Lingua Não-Catalã; levou os troféus de direção de arte e trilha sonora.

Ao Goya, foram também 12 indicações, e A Livraria venceu nas categorias de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro adaptado.

O site rogerebert.com deu ao filme 2 estrelas em quadro e o definiu como “um desapontamento”. Eis o início do texto do crítico Nell Minow:

“Ter todos os ingredientes corretos nem sempre faz um bom bolo. The Bookshop se baseia em um romance de Penelope Fitzgerald e tem atores amados dos dois lados do Atlântico: Emily Mortimer, Bill Nighy, Patricia Clarkson. A ação se passa num cenário pitoresco, uma pequena cidade do litoral da Inglaterra nos anos 1950-60. Focaliza livros e tem como heroína uma brava viúva que adora ler e enfrenta a líder da cidade, uma daquelas vilãs cuja graça e cortesia superficiais escondem crueldade e fúria. E o roteiro é escrito pela diretora Isabel Coixet, cujo filme My Life Without Me, de 2003, é uma suave gema, excepcionalmente sensível e comovente.”

No entanto…

“Então fomos a ele com muita expectativa, e é especialmente desapontador que este filme não funcione.”

E ele termina seu texto assim:

“É um desapontamento grande, especial, para quem é fã de dramas de época britânicos. Mortimer e Nighy são cativantes como sempre, e então leva um tempo para perceber que as muitas pausas lentas não estão adicionando muita coisa. Há um episódio sobre a decisão de Florence de vender o controvertido Lolita, mas isso também não vai a lugar algum. Enquanto Fitzgerald queria explorar a pequenez mental das pequeninas cidades e a policagem mesquinha, seria justo esperar que um filme sobre uma livraria com três personagens que dizem que não gostam de ler teria pelo menos encontrado um deles em algum momento cativado por um livro, talvez até Lolita.”

É. Pela primeira vez, Isabel Coixet decepcionou.

Anotação em dezembro de 2018

A Livraria/The Bookshop

De Isabel Coixet, Espanha-Inglaterra-Alemanha, 2017

Com Emily Mortimer (Florence Green),

e Bill Nighy (Edmund Brundish), Patricia Clarkson (Violet Gamart), James Lance (Milo North), Honor Kneafsey (Christine), Hunter Tremayne (Mr. Keble), Michael Fitzgerald (Mr. Raven), Frances Barber (Jessie), Reg Wilson (General Gamart), Nigel O’Neill (Mr. Deben), Jorge Suquet (Mr. Thornton), Harvey Bennett (Wally), Lana O’Kell (Ivy Welford), Adie Allen (Mrs. Traill)

e Julie Christie (a voz da narradora)

Roteiro Isabel Coixet

Baseado na novela de Penelope Fitzgerald

Fotografia Jean-Claude Larrieu

Música Alfonso de Vilallonga

Montagem Bernat Aragonés

Casting Jeremy Zimmermann

Desenho de produção Llorenç Miquel

Direção de arte Marc Pou

Figurinos Mercè Paloma

Produção Diagonal TV, A Contracorriente Films, Green Films,

Zephyr Films.

Cor, 113 min (1h53)

**1/2

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