1945

Nota: ★★★★

1945, produção húngara de 2017, do realizador Ferenc Török, é um filmaço, uma obra-prima, uma maravilha. E a proeza de ser um filme surpreendente, novo, forte, vigoroso, sobre um tema tão exaustivamente examinado ao longo dos 72 anos que separam as duas datas acima é apenas uma de suas qualidades.

Ele é também um daqueles filmes que devem ser vistos por espectadores que não sabem quase nada sobre ele. Daqueles que têm que ter sinopse escrita de forma muito cautelosa, a fim de se evitar spoiler.

O espectador que souber pouquíssimo, quase nada, sobre a trama poderá sorver com muito maior impacto a beleza do filme.

Foi só quando o filme se aproximava dos 30 de seus 91 minutos de extraordinário cinema que caiu para mim a ficha do que, afinal, se tratava, qual era exatamente o cerne da trama.

Ferenc Török, realizador nascido em Budapeste em 1971, em pleno regime comunista, 26 anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, 24 títulos na filmografia, é também o co-autor da história e do roteiro, ao lado de Gábor T. Szántó. Ele e seu parceiro escolheram contar a história dessa maneira, revelando os fatos bem aos poucos, não adiantando informações.

Todo o roteiro, na verdade, é estruturado de maneira a fugir das explicitudes como o diabo foge da cruz, o fanático foge da dúvida. Há uma opção preferencial pela riqueza do implícito, do não dito às escancaras.

Assim, em respeito a essa escolha do realizador, vou tomar o maior cuidado para não passar o carro na frente dos bois, para não revelar o que não deve ser revelado – e deixar bem claro quando vão começar os spoilers, para que o eventual leitor seja bem avisado de que não deveria continuar.

(Esse é, de resto, um cuidado que tenho sempre. Mas é que este filme de fato é daqueles que merecem atenção especial. Como O Show de Truman, por exemplo. Se alguém que não viu ainda o Show de Truman fica sabendo do que se trata afinal aquilo, estragou tudo – ou, no mínimo, no mínimo, estragou demais.)

O ano em que se passa a ação é realçado a partir do título

Há uma exceção nessa coisa da opção pelo implícito em vez do explícito: o filme começa definindo muito bem o quando, a data em que se passa a ação.

1945, como já está posto no título. Mas mais do que isso: 12 de agosto de 1945, exatamente às 11 horas da manhã, no interior da Hungria, um vilarejo a uns poucos quilômetros da estação de trem. O vilarejo não é identificado, o que é a melhor maneira de se dizer que poderia ser qualquer um, qualquer lugar da Hungria. O quando, no entanto, é realçado, é mostrado com toda a explicitude possível. O rádio na casa do homem que faz a barba está ligado no noticiário, e o noticiário mostra que a guerra contra o Japão continuava. Os soviéticos e os americanos continuavam atacando alvos japoneses. Naquele dia 12 de agosto, os americanos haviam lançado a segunda bomba atômica sobre o Japão: depois da bomba sobre Hiroshima, uma semana antes, agora tinha sido a vez de Nagasaki ser atingida.

Na Hungria, falava-se nas eleições que estavam para acontecer.

Não é preciso que o filme mostre tão explicitamente, mas dá para saber, é bem óbvio, que a guerra na Europa já havia acabado. A rendição final do regime nazista havia sido pouco antes, no dia 7 de maio.

Os invasores nazistas haviam sido derrotados. A Hungria, assim como outros países da Europa Central e do Leste, estava agora com novos ocupantes, os soviéticos que haviam vencido os nazistas no front oriental.

Andrzej Wajda mostrou esse mesmo período na sua Polônia natal na obra-prima Cinzas e Diamantes, de 1958: saem os invasores nazistas, entram os libertadores soviéticos – que logo viram os novos invasores.

Como Cinzas e Diamantes, e exatamente como todos, absolutamente todos os filmes feitos nos anos 40 e 50 nos países da Europa Central e do Leste que caíram sob o domínio da União Soviética após a expulsão dos nazistas, este 1945 é em preto-e-branco.

Uma fotografia admirável, excepcional, de beleza escandalosa em preto-e-branco, de autoria de Elemér Ragályi, veterano ator e diretor de fotografia nascido em 1939 com mais de 100 filmes no currículo.

Dois desconhecidos chegam ao lugar – e tudo muda

A data da ação bem especificada, o filme vai nos apresentando algumas pessoas ali do vilarejo.

O careca que faz a barba cuidadosamente é István Szentes (Péter Rudolf, na foto do alto), o tabelião e também magistrado e dono da farmácia-armazém – a rigor, como vamos vendo à medida em que a narrativa vai se adiantando, o homem mais importante do lugar, o coronel, o manda-chuva.

Naquele dia, haverá uma grande festa na cidadezinha: o filho de Szentes, Árpád (Bence Tasnádi), vai se casar.

Nem o pai nem a mãe do rapaz – Anna (Eszter Nagy-Kálózy, à esquerda na foto acima) – gostam da noiva, mas o filho decidiu se casar com ela, e então paciência: eles vão fazer uma grande festa.

Szentes diz que a noiva, Kisrózsi (Dóra Sztarenki, nas foto acima e abaixo), não passa de uma camponesa. Pai e mãe acham que o maior interesse da moça não é o rapaz, e sim a farmácia-armazém da família que ele toca.

Todos sabem que Kisrózsi teve um outro amor, o rapagão Jancsi (Tamás Szabó Kimmel), que esteve sumido durante uns tempos, e agora reapareceu no vilarejo. Não é dito claramente – quase nada é dito claramente –, mas dá para o espectador inferir que Jancsi participou da resistência aos nazistas. O que se mostra é que ele é muito amigo dos soldados russos que estão por ali – até fala a língua do novo invasor.

Árpád , o noivo, tenta dar uns amassos na noiva quando os dois estão na farmácia que ela passará a administrar junto com ele, mas Kisrózsi impede um avanço maior: – “Você não pode esperar até de noite?” O rapaz, então, se quieta.

Pouco depois, no entanto, veremos Kisrózsi recebendo a visita sorrateirta do antigo namorado Jancsi, e para Jancsi a moça se escancara toda – literalmente.

Um trem pára na estação próxima ao vilarejo, e dele descem dois homens vestidos de preto – um mais velho, de barba branca, outro bem jovem. Levam dois grandes baús, que um homem e seu ajudante colocam numa carroça.

Da estação saem em direção ao vilarejo – os baús na carroça dirigida pelo homem, e os dois recém-chegados seguindo atrás, a pé.

O chefe da estação, Állomásfönök (István Znamenák), tenta fazer uma ligação, não consegue completá-la. Então pega sua bicicleta e vai às pressas avisar o manda-chuva István Szentes sobre a chegada dos desconhecidos.

O IMDb apresenta uma sinopse primorosa sobre o filme. Uma sinopse que não revela o que não deve ser revelado, que não tem nem o mais leve toque de spoiler.

“12 de agosto de 1945, 11 horas da manhã. Dois misteriosos desconhecidos vestidos de preto aparecem na estação de trem de um vilarejo húngaro. Dentro de poucas horas, tudo muda.”

A rigor, a rigor, isso é todo o que o espectador precisa saber antes de ver o filme.

Um lugarejo cheio de pessoas covardes, egoistas

A estação de trem é mostrada em várias tomadas, vista de diferentes pontos, ainda bem no início do filme, enquanto vamos conhecendo aqueles personagens que tentei apresentar acima.

Eu já havia lido a sinopse que está no IMDb – e era tudo o que sabia sobre o filme até então –, e assim não era surpresa para mim que a estação ferroviária aparecesse naquelas várias sequências. Até fiz uma brincadeira com Mary: – “Parece o Sergio Leone mostrando a estação de trem em que os bandidos esperam a chegada de um outro”.

Parece mesmo. Mas parece também com outro western, e um western nada spaghetti, Matar ou Morrer/High Noon, que Fred Zinnemann lançou em 1952, no meio da feroz caça às bruxas empreendida pelo macartismo contra comunistas, simpatizantes de comunistas e simpatizantes de simpatizantes de simpatizantes de comunistas.

Ao longo de quase uma hora e meia, por coincidência quase a duração exata deste 1945, Matar ou Morrer mostra o xerife de uma cidadezinha saindo à procura de quem queira ajudá-lo a enfrentar o bando armado que, após a chegada de seu líder, no trem do meio-dia, irá atrás dele, o xerife, para matá-lo. E vai mostrando ao espectador uma cidade cheia de gente covarde, medrosa, egoista, incapaz de um gesto para ajudar o sujeito que até então garantia a paz no lugar.

Assim como Matar ou Morrer faz com aquela cidadezinha do Oeste americano, este 1945 vai nos mostrando que aquele lugarejo no interior da Hungria é cheio de gente covarde, medrosa, egoísta, oportunista – muitos deles absolutamente sem caráter. Gente estúpida, gente hipócrita, como diria Gilberto Gil na bela canção.

E aqui chega a hora do aviso: a partir daqui vem spoiler.

Não vou contar o fim do filme, mas vou fazer uns poucos comentários sobre a chave da trama, que o diretor Ferenc Török só começa a revelar mesmo depois da primeira meia hora de narrativa.

Atenção: spoiler. Quem não viu o filme deve parar aqui

Os dois homens que descem do trem são judeus – é absolutamente fácil identificar isso. (São interpretados por Iván Angelusz, o mais velho, e Marcell Nagy, o jovem.)

O que o espectador não sabe é o que eles foram fazer ali.

Exatamente como os moradores da cidade também não sabem. O manda-chuva István Szentes; o fraco András Kustár (József Szarvas), que mora numa bela casa com a mulher mandona (Ági Szirtes); o padre (Béla Gados); Kocsmáros (Tibor Mertz), o dono do bar; e todos os demais… Ninguém sabe o que os dois desconhecidos que chegaram querem, pretendem.

Nenhum dos habitantes sabe, mas muitos deles – aqueles que têm culpa pelo que fizeram, durante os anos em que os nazistas ocuparam o país – imediatamente desconfiam: os judeus estão voltando. Na frente vieram esses dois, depois virão os outros – e vão retomar o que pertencia a eles. As riquezas todas de que os húngaros não judeus se apossaram quando os nazistas levaram os judeus para os campos de concentração.

Os ricos do vilarejo entram em pânico– István Szentes à frente de todos, mas não apenas ele. Vários, vários que haviam se apoderado das casas, dos tapetes, dos quadros, da prataria dos que haviam sido presos pelos nazistas.

Há que sintam culpa – mas são poucos. A maioria sente apenas medo de perder aquilo que se acostumou a ter, aquilo que foi roubado dos que foram para os campos de concentração.

Esta é, de fato, uma abordagem do Holocausto bastante diferente da de centenas e centenas de outros filmes que falam do horror nazista.

E é uma forma de mostrar o Holocausto com tanta veemência, tanto horror, quanto em outras obras-primas que o cinema já fez.

“As coisas poderiam ter tomado um caminho melhor”

Em uma entrevista na época do lançamento do filme, Ferenc Török disse que 1945 “mostra um outro aspecto da história européia, o drama dos sobreviventes, que voltaram e reencontraram uma sociedade em parte hostil, e que tinha se apropriado de seus bens. Aquele foi um dos aspectos mais terríveis do Holocausto. O Estado concedeu as propriedades dos judeus aos cidadãos não judeus, às vezes com preços bem reduzidos, e assim os transformou em colaboradores. Eles não tinham necessariamente sentimentos anti-semitas, mas não conseguiam rejeitar a oferta de ganho financeiro. É assim que a maior parte dos homens se comporta. Esse drama moral criou um segundo anti-semitismo depois da guerra. Quando os sobreviventes retornaram e pediram para recuperar suas propriedades, as pessoas entraram em choque, por causa de sua própria vergonha e seu sentimento de culpa.”

O realizador falou também de seu interesse em fazer um filme sobre aquele momento histórico exato:

“Aquele período imediatamente após a guerra, e logo antes das nacionalizações e do comunismo. Durante um tempo, houve ainda a possibilidade de uma transição democrática. As coisas poderiam ter tomado um caminho melhor. O fascismo tinha terminado, e o comunismo ainda não tinha começado. Tentamos capturar a atmosfera daquela época. É uma passagem da História da Hungria que não foi muito contada na literatura ou no cinema. Há sobretudo a tendência a focalizar a própria Segunda Guerra Mundial ou a ditadura dos anos 50. Eu queria apresentar um quadro social da Hungria justamente após a guerra.”

Uma das obras-primas sobre o Holocausto

O processo de passagem dos bens dos judeus para os não-judeus ficou conhecido como “arianização’.

Assim, de uma certa maneira, este 1945 remete a outro grande filme feito nos países europeus que foram invadidos pelos nazistas e depois pelos soviéticos, o lindo e tristíssimo A Pequena Loja da Rua Principal, que a dupla Ján Kadár e Elmar Klos lançou em 1965 na então Checoslováquia que começava a respirar os ares menos rarefeitos da Primavera de Praga.

O filme de Kadár e Klos mostra como os invasores nazistas entregavam a checo-eslovacos não judeus as propriedades de judeus, através do exemplo de um sujeito bom, coitado, ignorante, simplório, que é nomeado o novo dono da pequena loja do título, pertencente a uma senhorinha bem velhinha, que não entende abolutamente nada do que está acontecendo.

A Pequena Loja da Rua Principal mostra o início da “arianização” – a apropriação dos bens dos judeus pelos não judeus. 1945 mostra um exemplo do que aconteceu ao final da guerra, quando os campos de concentração foram abertos pelos Aliados vencedores, e milhares e milhares de judeus voltaram à vida.

O filme de Kadar e Klos levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. 1945 não chegou a receber o reconhecimento da Academia de Hollywood, mas teve seis prêmios e outras quatro indicações em festivais mundo afora.

Acho pouco. Eu colocaria 1945 na lista das grandes obras-primas sobre o Holocausto, ao lado de A Lista de Schindler de Steven Spielberg e O Pianista de Roman Polanski, entre tantos outros.

Anotação em junho de 2019

1945

De Ferenc Török, Hungria, 2017

Com Péter Rudolf (István Szentes, o magistrado e tabelião), Bence Tasnádi (Árpád Szentes, filho de István), Tamás Szabó Kimmel (Jancsi, o namorado de Kisrózsi), Dóra Sztarenki (Kisrózsi, a noiva de Árpád), Ági Szirtes (Andrásné Kustár), József Szarvas (András Kustár), Eszter Nagy-Kálózy (Anna Szentesné, a mulher de István), Iván Angelusz (Sámuel Hermann), Marcell Nagy (o filho de Sámuel Hermann), István Znamenák (Állomásfönök, o chefe da estação), Sándor Terhes (Pál Iharos), Miklós B. Székely (Suba Mihály), György Somhegyi (o fiho de Suba Mihály), Tünde Szalontay (Rózsika), Béla Gados (o padre), János Derzsi (o veterano de guerra), Tibor Mertz (Kocsmáros, o dono do bar), Bálint Adorjáni (Kalauz, o condutor do trem), Vivianne Bánovits (Juliska), Rita Kerkay (Katica), Zsolt Dér (oficial russo)

Argumento e roteiro Gábor T. Szántó & Ferenc Török  

Fotografia Elemér Ragályi      

Música Tibor Szemzö

Montagem Béla Barsi   

Casting Gábor Fischer   

Produção Katapult Film.

P&B, 91 min (1h31)

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Título na França: La Juste Route.

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