Silêncio nas Trevas / The Spiral Staircase

Nota: ★★★☆

The Spiral Staircase, no Brasil Silêncio das Trevas, thriller de Robert Siodmak lançado em 1946, começa de forma espetacular, brilhante, coisa que dá vontade de aplaudir de pé como na ópera.

Durante os créditos iniciais – bem rápidos, como era o padrão naquele tempo –, vemos em plongée, a câmara colocada no alto, virada para baixo, a escada em espiral do título original. Ela voltará a aparecer mais tarde, é claro, e terá muita importância na trama. Mas, ao fim dos créditos iniciais, a primeira tomada do filme não é no interior de uma casa, e sim ao ar livre. Vemos, em um travelling, a câmara sendo movida rapidamente sobre trilhos, o que parece ser a Main Street, a rua principal de uma pequena cidade do interior.

A câmara pára diante de uma porta com um letreiro informando que ali funciona o Village Hotel. Um funcionário bem vestido (Charles Wagenheim) trabalha na recepção, que está vazia naquele momento – e assim o funcionário se arrisca a ir até o umbral de um grande salão, separado do hall de entrada do hotel por grossas cortinas escuras.

Uma placa acima da porta do salão tem os dizeres: “Filmes. A Maravilha da Época. ‘O Beijo’.

Motion Pictures. The Wonder of the Age. The Kiss.

Lá dentro do salão, que a câmara mostra agora, improvisou-se uma sala de cinema. Um homem aciona manualmente o projetor. Uma pianista executa música adequada às imagens que vão sendo reproduzidas na tela. As cadeiras dispostas diante da tela no salão estão todas ocupadas. A câmara se fixa, ainda que bem rapidamente, numa moça bonita, que assiste mesmerizada ao filme The Kiss. Veremos logo que ela se chama Helen (o papel de Dorothy McGuire, aquela atriz de rosto muito belo e muito doce), e será a protagonista da história.

Robert Siodmak e o roteirista Mel Dinelli já estabeleceram, em quatro ou cinco tomadas iniciais, o onde e o quando. Como o cinema está em seu início, estamos nos primeiros anos do século XX; escreveu-se que a ação se passa exatamente em 1916, mas não há referência a um ano específico, nem direta nem indiretamente. E estamos seguramente em uma cidade pequena, mas de uma região desenvolvida dos Estados Unidos. Como haverá várias citações a Boston, o espectador saberá que é Nova Inglaterra, muito provavelmente o Estado de Massachusetts.

No térreo, um cinema improvisado. No andar de cima acontece um crime

A câmara mostra a platéia, o projecionista ao fundo. E aí ela se movimenta para cima, para o alto, para o andar de cima.

No andar de cima, uma mulher caminha dentro do amplo quarto do hotel. Vai até a janela, olha para a rua lá embaixo, atravessa o quarto novamente, em direção à porta de um gigantesco armário de roupas, uma espécie de closet. Vemos que ela manca.

A câmara se fixa na porta aberta do closet – e vai fazendo um zoom em direção às roupas.

Vemos que há alguém atrás das roupas.

A câmara faz um novo zoom, agora em direção ao olho da pessoa que está escondida ali. O olho passa a ocupar a tela inteira. E aí vemos de novo a mulher, que está colocando uma roupa – e fica absolutamente claro que aquilo que estamos vendo é exatamente o que os olhos da pessoa escondida no armário estava vendo.

E então o assassino ataca a mulher.

Corte rápido – e estamos de novo no salão do hotel transformado em sala de projeção, um cinema improvisado. O filme está terminando. Helen, a moça bonita, chorou com a história.

Um barulho forte no andar de cima, de algo pesando caindo no chão. Os espectadores olham para o teto. No hall de entrada do hotel, o funcionário da recepção ouviu o barulho e está agora correndo escada acima.

Estamos exatamente com 4 minutos e 20 segundos de filme.

Uau, meu! Que maravilha de abertura.

Foi o terceiro ataque de um serial killer na pequena cidade

Bem rapidamente, veremos que há um serial killer naquela cidade pequena da Nova Inglaterra, próxima a Boston. Aquela mulher que acaba de ser assassinada, que mancava, foi a terceira vítima. Antes dela, tinham sido mortas uma mulher que tinha uma grande cicatriz no rosto e uma outra que era retardada.

Três vítimas, todas três mulheres, todas três com males, problemas, deficiências. “Defeitos”, na visão de um louco, um psicopata, um assassino em série.

E Helen – o espectador saberá disso muito rapidamente – é muda. Está absolutamente claro que Helen deverá ser a vítima seguinte.

Helen é uma moça órfã, sem ninguém na vida. Trabalha como dama de companhia de uma senhora muito rica, Mrs. Warren (o papel da grande Ethel Barrymore), que mora em um grande casarão de dois andares e mais um porão, ligados por uma escada espiral. O casarão da família Warren fica um tanto afastado da cidade, já no meio do campo – e praticamente toda ação do filme vai se passar dentro dele, a partir do momento, bem no início da narrativa, em que Helen volta para lá, depois de ter visto o filme no salão do hotel e ter se assustado, assim como toda a pequena cidade, com o terceiro assassinato cometido pelo matador em série.

No casarão dos Warren há vários empregados; ao todo, são oito pessoas

A senhora Warren parece ter grande apreço por Helen – e praticamente só por ela. É uma pessoa de difícil trato. Segunda mulher do rico Warren – já falecido –, idosa, doente, mal sai de seu quarto, de sua cama. Detesta a enfermeira que cuida dela, Mrs. Barker (Sara Allgood). Às vezes fala como se não estivesse mais em pleno domínio das faculdades mentais, como se dizia naquela época. Às vezes fala de presságios, sonhos, intuições, como se fosse um tanto médium.

A casa tem dois homens. O mais velho é o professor Warren (George Brent, na foto abaixo), um cientista, homem culto, cultivado, sério, um tanto sisudo, filho do primeiro casamento de seu pai, enteado, portanto, da sra. Warren. O mais novo, Steve Warren (Gordon Oliver), é filho do segundo casamento do falecido. Bem ao contrário do meio-irmão mais velho, é o tipo aventureiro, mulherengo, meio irresponsável, viaja muito, às vezes para a Europa, e não passa muito tempo ali no casarão da família. Está sempre atrás de Blanche, a bela secretária do meio-irmão mais velho – o papel da belíssima Rhonda Fleming, aqui em versão cabelos longos e negros, e não ruiva, como a conheci em filmes dos anos 50 e 60.

Blanche mora no casarão, tem um quarto exclusivo para ela, próximo aos dos Warren.

Além da secretária Blanche, da dama de companhia Helen e da enfermeira Mrs. Barker, a casa ainda tem um casal de empregados que cuida de tudo. A senhora Oates (interpretada pela inglesa Elsa Lanchester), veremos lá pela metade do filme, é dada a uma bebida forte. O senhor Oates (Rhys Williams) é um sujeito que está sempre de cara feia.

Praticamente toda a ação se passa dentro do casarão, e num único dia

Toda a ação do filme se passa ao longo de um único dia e uma noite que parece não ter fim. E praticamente tudo acontece, repito, dentro daquele casarão de escadaria espiral onde moram todas essas oito pessoas.

Haverá duas visitas às claras: a do médico Parry (Kent Smith), que está tentando se estabelecer na cidade, fazendo concorrência ao idoso dr. Harvey (Erville Alderson), e a do principal policial do lugar (o papel de James Bell).

O dr. Parry está cuidando da sra. Warren – e arrasta as asinhas para a bela Helen. Acha que, com os modernos tratamentos agora disponíveis em Boston, a moça poderá recobrar a fala – ela havia se tornado muda após um terrível choque, um grande trauma.

Mas lá dentro do casarão está também o assassino. Ainda na primeira meia hora de filme, a câmara faz um zoom semelhante àquele do inicinho, e focaliza em super hiper big close up um olho do assassino, quando ele está exatamente observando a bela – e muda – Helen.

É uma noite de tempestade. Haverá muitos raios e trovões para realçar o clima de tensão que reina no casarão. E, bem no começo, a sra. Oates verifica que uma das janelas da casa, que ela julgava fechada, havia sido aberta. Isso é falado com muita clareza, para deixar nítida na cabeça do espectador que o assassino pode perfeitamente ter entrado na casa e se escondido, à espera do momento certo de atacar Helen.

O roteirista mexeu bastante na história escrita por Ethel Lina White

Os créditos iniciais dizem que o roteiro escrito por Mel Dinelli se baseia no romance Some Must Watch, de Ethel Lina White. Há, no entanto, segundo informa o IMDb, grandes diferenças entre o romance – lançado em 1933 – e a trama do filme. A ação se passava nos anos 30 na Inglaterra, e não nos primeiros anos do século XX na Nova Inglaterra. O fato de as vítimas do assassino serem portadoras de alguma deficiência foi invenção do roteirista Dinelli – não há nada disso no livro. A Helen do livro não é muda.

O livro The RKO Story diz que o filme é “um thriller soberbo na tradição hitchcockiana”. E que o diretor Robert Siodmak, o diretor de fotografia Nicholas Musuruca, o expert em efeitos especiais Vernon L. Walker, os diretores de arte Albert S. D’Agostino e Jack Okey e o técnicos de som John L. Cass e Terry Kellum, todos eles se esforçaram ao máximo para transformar o filme numa experiência semelhante a um nocaute no espectador, um filme com a força de um pesadelo.

O livro informa também que The Spiral Staircase foi o primeiro filme que resultou de uma parceria entre a RKO Radio Pictures e o Vanguard Films, a produtora do poderoso David O. Selznick – o sujeito que fez … E o Vento Levou e foi o responsável pela importação para Hollywood de Ingrid Bergman e Alfred Hitchcock. Selznick entrou na parceria com os direitos do romance, o roteiro, e os serviços do produtor Dore Schary, do diretor Siodmak e das atrizes Dorothy McGuire e Ethel Barrymore – todos eles funcionários contratados da Vanguard Films.

A RKO entrou com os demais elementos. Os lucros foram divididos meio a meio – cada um levou U$ 885 mil, uma quantia bastante considerável em 1946.

Um “pequeno clássico”, “um catálogo completo dos filmes de terror”

O filme foi muito bem recebido pela crítica. A veterana Ethel Barrymore (1879-1959) teve uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu papel como a doente mas poderosa senhora Warren.

Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4 e, assim como o livro The RKO Story, diz que o filme tem o estilo de Hitchcock. Elogia – e ele está muito certo nisso – como inesquecível a atuação de Dorothy McGuire como a emprega muda de uma casa que “pode estar abrigando um assassino”.

Pauline Kael, que mete o pau em pelo menos 95% dos filmes, poupa The Spiral Staircase, que chama de “este pequeno clássico de horror”. Ela lembra que a mansão em que se passa a ação é decorada com figuras de vários animais selvagens e cheia de portas que rangem, portões, janelas com persianas, e resume que o filme contém todos os adereços do gênero: uma noite de tempestade e uma coleção de psicopatas. “Mas os psicopatas são pessoas bastante apresentáveis, e isso, mais a direção habilidosa e ágil, faz com que o terror seja convincente.”

O Guide des Films de Jean Tulard presenteia o filme – que na França se chama Deux Mains, La Nuit, duas mãos, a noite – com raras 3 estrelas: “Pode-se considerar a obra como um catálogo completo dos filmes de terror. Siodmak faz um grande trabalho, com um sentido sólido do fantástico psicológico. A astúcia central consiste em colocar em cena uma heroína muda, tornando assim a angústia visual muito mais densa. (…) É antes de tudo um filme noir, tratado como tal, cheio de imbricações psicológicas complexas a dois dedos do suspense psicanalítico, um puro tratado sobre a moda expressionista.”

A história deu origem a três outros filmes, em 1961, 1975 e 2000

Sucesso razoável de público, tremendo sucesso de crítica, The Spiral Staircase teve não uma, mas três refilmagens!

E, aparentemente, pelo que dá para perceber, nas três vezes refilmou-se não exatamente a história original do livro de Ethel Lina White, mas a trama escrita pelo roteirista Mel Dinelli para o filme de 1946 com base no romance. Todas as três refilmagens mantiveram o título original, The Spiral Staircase.

Em 1961, Boris Segal dirigiu a primeira delas, um telefilme que contou com a presença da grande, veneranda Lilian Gish (1893-1993) – uma das primeiras grandes estrelas de Hollywood, talvez a primeira estrela realmente grande, no papel da matriarca Mrs. Warren. Elizabeth Montgomery, a Samantha Stephens da série A Feiticeira/Bewitched, interpretou Helen, a jovem muda.

A segunda refilmagem foi uma produção inglesa para o cinema, em 1975, com a belíssima Jacqueline Bisset fazendo Helen e Christopher Plummer, dez anos depois do extraordinário sucesso de A Noviça Rebelde/The Sound of Music, como o doutor, o filho mais velho da família dona da mansão. John Philip Law, o anjo de Barbarella, interpretava Steven, o irmão mais novo. O diretor era Peter Collinson.

Não vi essa refilmagem, e não veria mesmo, apesar de toda a beleza de Jacqueline Bisset. As referências são todas de que o filme é muito, muito inferior ao original.

Em 2000 houve mais uma versão feita para a TV, uma co-produção Canadá-EUA, dirigida por James Head. Não reconheço nenhum nome do elenco.

Siodmak foi um dos criadores do noir. E enganou meio mundo com uma mentira

Esta anotação estaria absolutamente incompleta se não tivesse esta informação que vai abaixo.

O olho que vemos duas vezes em super hiper big close up – o olho do assassino – é do próprio diretor do filme!

Robert Siodmak (1900-1973) foi um dos responsáveis pelo estabelecimento da gramática do film noir, ao levar para os Estados Unidos seus conhecimentos sobre o expressionismo alemão. Começou a carreira na sua Alemanha natal, mas, com a ascensão dos nazistas ao poder, fugiu para a França, e, depois de uma temporada ali, emigrou para os Estados Unidos em 1940. Consta que, para obter um visto para entrar no país, declarou ter nascido em Memphis, Tennessee, quando seus pais passavam férias ali.

A mentira – que veio uns 75 anos antes da epidemia das fake news – até que pegou. O Dicionário de Cinema – Os Diretores do mestre Jean Tulard caiu nela, e afirma, na edição brasileira da L&PM de 1996, que Robert Siodmak “nasceu nos Estados Unidos, em Memphis, mas estudou na Universidade de Marburg, interessando-se pelo teatro e pelo cinema alemão”. E também o respeitável The International Dictionary of Films and Filmmakers – Directors adota a versão de que ele nasceu em Memphis.

Em seu Dicionário de Cineastas, Rubens Ewald Filho registra que existem duas versões – a de que ele nasceu em Dresden, e a de que nasceu em Memphis. Tanto o IMDb quanto o livro 501 Movie Directors e a Wikipedia afirmam que ele nasceu em Dresden, e que a história de Memphis foi uma invenção dele para obter o visto para entrar nos Estados Unidos.

Robert Siodmak conseguiu enganar meio mundo! Que figura.

Anotação em março de 2018

Silêncio nas Trevas/The Spiral Staircase

De Robert Siodmak, EUA, 1946.

Com Dorothy McGuire (Helen), George Brent (Professor Warren), Ethel Barrymore (Mrs. Warren), Kent Smith (Dr. Parry), Rhonda Fleming (Blanche, a secretária), Gordon Oliver (Steve Warren), Elsa Lanchester (Mrs. Oates, a empregada), Sara Allgood (Mrs. Barker, a enfermeira), Rhys Williams (Mr. Oates), James Bell (o policial), Erville Alderson (Dr. Harvey, o médico veterano), Charles Wagenheim (o funcionário da recepção)

Roteiro Mel Dinelli

Baseado no romance Some Must Watch, de Ethel Lina White

Fotografia Nicholas Musuraca

Música Roy Webb

Montagem Harry W. Gerstad e Harry Marker

Produção Dore Schary, RKO Radio Pictures e Vanguard Films.

P&B, 83 min (1h23)

***

Título na França: Deux Mains, la Nuit. Em Portugal: A Escada de Caracol.

 

5 Comentários para “Silêncio nas Trevas / The Spiral Staircase”

  1. Gostei muito desse filme quando o descobri pela internet, tem mais de um ano. Não é famoso, mas consegue surpreender pela competência e dar pequenos sustos sem apelar para exageros, como muitos do gênero feitos hoje.

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