Quatro Estações em Havana – Ventos de Havana

Nota: ★★★☆

O crime é especialmente bárbaro, medonho, horroroso. Lissette (Mariam Hernández), jovem, bonita, professora de cursinho pré-universitário, é morta em seu próprio apartamento, depois de ser duramente espancada. Havia feito sexo com dois homens diferentes, segundo revela a autópsia. Na casa, são encontrados restos de maconha e anfetaminas.

Nada bom para acontecer na capital de um país comunista. Os ditadores comunistas costumam fazer todo um discurso de que crimes bárbaros, drogas e promiscuidade são coisas do capitalismo, são provas da decadência da sociedade capitalista.

O tenente da polícia de Havana que fica encarregado de investigar a morte da jovem professora Lissette, Mario Conde, também não se encaixa no modelo de funcionário devotado do Estado, fiel cumpridor dos ditames do Partido – muitíssimo antes ao contrário. Mario Conde se veste com jeans, essa coisa que cheira a imperialismo, ouve rock, outra coisa que cheia a imperialismo, gosta de música cubana tradicional e sente saudades da Havana antiga, coisas que a Revolução deixou para trás.

É um policía (com acento no i final, como bem adivinha a ruiva Karina, interpretada pela colombiana Juana Acosta) muy, muy extraño, raro. Já teve veleidades literárias – e uma de suas paixões é J. D. Salinger, o americano autor de The Catcher in the Rye, ou El Guardián Entre el Centeno.

Mario Conde se parece muito com Sam Spade e Philip Marlowe

Na verdade, muito mais que um policía cubano, Mario Conde é assim uma espécie de Sam Spade, de Philip Marlowe. Exatamente como esses dois detetives criados respectivamente por Dashiell Hammett e Raymond Chandler, Conde bebe demais, é briguento demais, solitário demais (mesmo tendo grandes amigos, ao contrário de seus colegas e antecessores americanos), emotivo demais – e é um danado de um bom detetive. Tem um faro, um instinto admirável, que poucas vezes falha.

Por causa disso, é respeitado, admirado mesmo, por seu chefe, o major Antonio Rangel, ele mesmo um policial competente, abnegado, bom de serviço. O major – que Conde chama com carinho de El Viejo – aguenta as esquisitices do tenente, seu jeito displicente de se vestir, sua cara de eterna ressaca, porque, apesar de tudo, ele é o melhor investigador de crimes de Havana.

Não é à toa essa semelhança com Sam Spade e Philip Marlowe. Mario Conde é a criatura do escritor Leonardo Padura Fuentes – e, como tantas criaturas da literatura, é muito, muito parecido com seu criador. Padura é apaixonado por Dashiell Hammet e Raymond Chandler, assim como um ouvinte apaixonado de rock dos anos 60 e 70.

Nasceram exatamente no mesmo dia, criatura e criador, conforme este último explica em um de seus livros, embora não no mesmo ano: Leonardo Padura nasceu (em Havana, La Habana, por supuesto) em 1955. Portanto, estava com 34 anos em 1989, o ano em que caiu o Muro de Berlim, o ano em que ele viajou ao México pela primeira vez, e lá visitou a casa em que morou Leon Trotski até ser assassinado por Ramón Mercader a mando de Stálin.

Foi no ano em que começou a se interessar por Trotski e em que caiu o Muro que Leonardo Padura criou Mario Conde, bem à sua imagem e semelhança. Mas o criou um pouquinho mais velho do que ele próprio: em 1989, o ano em que investigou o assassinato da jovem professora Lissette, Mario Conde completou 36 primaveras.

36 primaveras, 36 verões, 36 outonos, 36 invernos.

Depois de ter lançado o primeiro livro em que Mario Conde é o protagonista, Padura resolveu lançar mais um, mais um e mais um. “Conde certa noite cochichou-me ao ouvido uma coisa que, matutada durante alguns dias, pareceu-me uma boa idéia: por que não fazemos outros romances? Decidimos, então, escrever mais três peças que (…) formaram a tetralogia Estações Havana”, ele escreveu no prefácio de Paisagem de Outono, o quarto livro da série.

Um romance passado em cada uma das quatro estações do ano – quatro romances, todos passados em 1989, aquele ano absolutamente especial na História da humanidade e na história de Leonardo Padura.

Foram escritos entre 1991 e 1998.

Em dezembro de 2016, foram lançados os quatro filmes baseados na tetralogia Estações Havana.

Em quase todo bom filme de ou sobre Cuba, lá está Jorge Perugorría

Mario Conde vem na pele de Jorge Perugorría, seguramente o ator cubano mais conhecido internacionalmente, o ator que para muita gente é a cara do cinema cubano. Assim como Ricardo Darín é a cara do cinema argentino – mas o cubano de Havana é mais jovem que o argentino de Buenos Aires. Darín nasceu em 1957, exatamente o ano em que teria nascido Mario Conde, e estreou em série de TV em 1960.

Já Perugorría nasceu em 1965, seis anos após a revolução que derrubou o sanguinário ditador Fulgêncio Batista e colocou Fidel Castro no poder. Ele só começaria no cinema em 1993 – mas também, depois que começou, não parou jamais. Tem 70 títulos em sua filmografia. Darín, que começou mais de 30 anos antes dele, tem 85.

Jorge Perugorría esteve nos dois filmes cubanos dos anos 90 mais conhecidos e aclamados internacionalmente, dois grandes, belos filmes, Morango e Chocolate (1994) e Guantanamera (1995), ambos dirigidos pela dupla Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, ambos bastante críticos do regime de Fidel et caterva.

Em quase todo bom filme sobre Cuba, lá está Jorge Perugorría. Ele esteve em um dos sete episódios do filme multinacional 7 Dias em Havana/7 Dias en La Habana/7 Jours à La Havanne (2012) – exatamente o episódio dirigido por Juan Carlos Tabío e… escrito por Leonardo Padura! E esteve também no maravilhoso, esplêndido Retorno a Ítaca (2014), do francês Laurent Cantet, escrito e roteirizado por Cantet e… Leonardo Padura!

A jovem morta dava aulas no cursinho em que o detetive estudou

Jorge Perugorría interpreta Mario Conde maravilhosamente.

Ele surge, na abertura deste Vientos de La Habana, caminhando de uma maneira não propriamente sóbria numa rua à noite – e o destino quis que naquele momento estivesse naquela rua, diante de seu carro com um pneu da frente arriado, uma mulher ruiva, bela, gostosa. Meio bêbado, mas não demais, Mario Conde se oferece para ajudar. Troca o pneu do carro da moça – que se apresenta como Karina, um ingeniera, que estará no dia seguinte viajando até Matanzas.

(Juana Acosta, na foto acima, a beldade colombiana que interpreta Karina, tem mais de 50 títulos em sua filmografia vários deles produções espanholas.)

O roteiro mistura tomadas de Conde e Karina com tomadas de outra moça jovem e bela – Lissette, a professora que estava sendo assassinada naquele exato momento em que o policía conhece a ruiva Karina.

Passam-se uns dois, três minutos, até que começam os créditos iniciais.

Após os créditos, somos apresentados ao comissário de polícia, o major Antonio Rangel (interpretado por Enrique Molina). Ele dá uma dura porque Conde está chegando atrasado ao local do crime, o apartamento de Lissette.

Lá dentro do apartamento já está o sargento Manolo Palacios (Carlos Enrique Almirante), que sempre trabalha com Mario Conde, o braço direito do tenente.

Depois de examinar cuidadosamente o apartamento em que Lissette foi morta, Conde e Manolo vão começar sua investigação no cursinho em que ela dava aula, o pré-vestibular La Vibora.

É uma das grandes sacadas do criador da história e dos personagens: o tenente Mario Conde estudou exatamente naquele pré-vestibular, o La Vibora. Foi lá que ele teve as experiências mais importantes da juventude, foi lá que conheceu as pessoas que são os seus grandes amigos até hoje. Foi lá que conheceu Tamara e se apaixonou terrível e fatalmente por ela – mas Tamara não aparece neste Vientos de La Habana; vai aparecer, e ser muito importante, em Passado Perfeito, a história que se passa no inverno.

Ao investigar o assassinato da jovem professora do cursinho pré-vestibular no qual ele mesmo havia estudado, o tenente Mario Conde vai desvendar uma complexa teia que envolve tráfico de drogas, grande quadrilha de crime organizado, comércio ilegal, e, embora crime bem menor, também venda de gabaritos de provas.

O filme é muito fiel ao espírito do livro – até porque o autor é um dos roteiristas

Não vou avançar além disso, na narrativa da trama; não é necessário e seria spoiler.

Importante, fundamental, é registrar que o filme é absolutamente fiel ao espírito do livro que o inspirou. Bem, teria mesmo que ser assim, já que o roteiro é assinado por “Lucia Lopez Col e Leonardo Padura, com a colaboração de Félix Viscarret” – e temos que Lucía Lopez Coll é a senhora Leonardo Padura, a quem todos os quatro livros são dedicados. Félix Viscarret, jovem espanhol de Pamplona, vencedor de um prêmio Goya de melhor roteirista em 2007 por Bajo las Estrellas, é o diretor deste Vientos de La Habana e dos três outros filmes baseados nas Estações Havana.

Uma bela sacada dos três roteiristas foi introduzir algo que seria mesmo impossível no livro: aqui, o espectador vê Lissette, a professora. Lissette (a bela atriz Mariam Hernández, na foto abaixo, que a interpreta é espanhola) aparece, como já foi dito, logo no início do filme, no mesmo momento em que Mario Conde fica conhecendo a ruiva Karina. Ela volta a aparecer várias outras vezes, quando Conde fica tentando montar em sua cabeça as últimas cenas de Lissette em vida.

Imagens belíssimas de Havana, de emocionar frade de pedra

É um filme de belíssimas imagens.

A Havana mostrada agora como sendo a de 1989 (embora o filme, ao contrário do livro, não fale explicitamente em datas) é ao mesmo tempo estupendamente linda e estupendamente deteriorada, acabada, mal tratada.

A fotografia, dirigida pelo espanhol Pedro J. Márquez, é espetacular, maravilhosa, impressionante. Faz o espectador babar por Havana.

A fotografia deste Vientos de La Habana é a perfeita tradução do amor apaixonado que Leonardo Padura e sua criatura Mario Conde têm pela capital de Cuba.

Nos créditos iniciais do filme, depois dos dois, três minutos de abertura, vemos planos gerais de Havana – imagens de fazer eriçar os pelos dos braços de um frade de pedra.

Surge lá um caminhão que lança fumacê pelas ruas – e Mary e eu nos pegamos comentando que aquilo deveria era estar acontecendo no Brasil de hoje, um fumacê para matar os mosquitos que estão nos trazendo de volta doenças que havíamos tido como extintas no começo do século passado.

A fumaça que se eleva por ruas de Havana vista pela câmara do diretor de fotografia Pedro J. Márquez é de uma beleza extraordinária.

Co-produção Espanha-Cuba, dirigido por um espanhol, com diretor de fotografia espanhol, os filmes das Quatro Estações em Havana tiveram trechos filmados na Espanha. Mas a maior parte das filmagens foi mesmo na capital cubana.

O primeiro filme dos quatro se baseia no segundo livro

Há curiosidades interessantíssimas sobre estes filmes. Este Vientos de la Habana aqui foi o primeiro deles – embora o livro em que ele se baseia, Ventos de Quaresma, seja o segundo da tetralogia, como mostra o quadro abaixo:

 

Título e estação do ano Escrito em Copyright em Cuba
1 Passado Perfeito/Pasado Perfecto (Inverno) 7/1990 a 1/1991 2000
2 Ventos de Quaresmo/Vientos de Cuaresma (Primavera) 1992 2001
3 Máscaras/Máscaras (Verão) 1994 a 1995 1997
4 Paisagem de Outono/Paisaje de Otoño (Outono) 11/1996 a 3/1998 1998

 

Vientos de La Habana foi lançado como filme de cinema, e estreou no Festival de San Sebastián de 2016. Mas os três seguintes foram lançados em forma de minissérie, e estão disponíveis na Netflix – embora cada um deles tenha duração de longa-metragem normal, com cerca de 1 hora e meia, e cada um possa ser visto independentemente dos outros. (Por causa dessas características, vou considerar aqui no site cada um deles como sendo um filme, e não como episódios de uma série de TV.)

Há um detalhe desconcertante, grotesco, ridículo nas legendas em Português disponíveis na Netflix. O Magro Carlos aparece nas legendas como Skinny, e Candito, o Vermelho, como Red! Traduziram os apelidos dos personagens não do Espanhol, mas da tradução doEspanhol para o Inglês!

Ridículo, meu! Mais ridículo que isso só se o protagonista fosse chamado nas legendas de Mario Count!

O Magro Carlos e Candito, o Vermelho, são dois dos maiores amigos de Mario Conde – foram todos colegas no pré-universitário de La Víbora. Candito (o papel de Mario Guerra) ganhou o apelido por causa do cabelo ruivo; foi um dos colegas de pré-universitário que se deram mal na vida. Virou um adulto que vive de bicos, um tanto próximo da marginalidade. Neste Vientos de La Habana, Conde o procura para auxiliá-los na investigação, para que o ajude a descobrir qual era a origem da droga que estava sendo vendida no pré-universitário.

Padura brincou que Perugorria passou por um processo de mariocondenização

O Magro Carlos (o papel de Luís Alberto García) é o maior amigo entre os grandes amigos de Mario Conde – é o amigo irmão, o mais amado. E o apelido vem carregado de ironia e dor, porque Carlos, na época em que se passa a ação, já não é mais magro. Muito ao contrário, é gordo – engordou demais, desde que, soldado em Angola, levou um tiro que atingiu sua coluna e ficou paraplégico.

O Magro Carlos e Conde se vêem sempre. Conde visita constantemente o amigo – e aproveita para comer a comida sempre maravilhosa e farta, apesar de toda a dificuldade de se achar mantimentos em Cuba, feita por Josefina, a Jose, mãe de Carlos (interpretada por Aurora Basnuevo). O tenente da polícia vai à noite à casa do amigo, fila a bóia magnífica de Jose e depois ele e o Magro Carlos enchem a cara de rum e conversam sobre todos os assuntos possíveis, ao som de rock dos anos 60 e 70 que sai de velhos LP e fitas cassete.

Em entrevista ao jornal espanhol El País, em San Sebastián, onde esteve com Jorge Perugorría para a exibição de Vientos de La Habana no festival internacional de cinema, Padura contou:

“Já em 1999 chegou a Cuba um diretor espanhol que tinha a intenção de levar o personagem ao cinema, e me disse que, na opinião dele, o ator para interpretá-lo tinha que ser Pichi (o apelido de Jorge Perugorría entre os amigos). A partir daí vieram produtores espanhóis, franceses, dinamarqueses, com todo tipo de projeto… até que por fim este aqui foi concretizado. E Perugorría sempre estava em primeiro lugar da lista, e nem era mais eu que propunha. No fundo, creio que Pichi começou faz tempo um processo de mariocondenização até o ponto que me parece que, quando começaram as filmagens, Pichi já era mais Mario Conde que Pichi. Isso se vê na tela. Ele se apropriou do personagem de forma visceral.”

O repórter de El País, Gregorio Belinchón, perguntou então ao ator o que ele pensa de Mario Conde. “É um sujeito cativante”, definiu Perugorría. “O representante de uma geração que se criou na Revolução acreditando em um modelo de país que nunca chegou a se concretizar e que nunca vai se concretizar, porque o mundo mudou. Por isso ele se alimenta de nostalgia. É igual a Havana, tão decadente como atraente. Ambos vão caindo aos pedaços, e no entanto mantêm seu encanto.”

Anotação em março de 2018

Quatro Estações em Havana – Ventos de Havana / Cuatro Estaciones en La Habana – Vientos de La Habana

De Félix Viscarret, Espanha-Cuba, 2016

Com Jorge Perugorría (tenente Mario Conde)

e Carlos Enrique Almirante (sargento Manolo Palacios), Enrique Molina (major Antonio Rangel), Luis Alberto García (Carlos, O Magro), Mario Guerra (Candito, O Vermelho),  Juana Acosta (Karina), Mariam Hernández (Lissette), Héctor Medina (Lázaro), Jorge Martinez (Andrés), Alexis Díaz (Conejo), Aurora Basnuevo (Josefina), Félix Beatón (capitão Cicerón), Vladimir Cruz (tenente Fabricio), Leonardo Benítez (Tony), Jorge Caballero (Jardinero)

Roteiro Lucia Lopez Col e Leonardo Padura, com a colaboração de Félix Viscarret

Baseado no romance Ventos de Quaresma, de Leonardo Padura

Fotografia Pedro J. Márquez

Montagem Antonio Frutos

Produção Thomas Disch, Peter Nadermann, Nadcon Film, Tornasol Films

Cor, 95 min (1h35)

***

6 Comentários para “Quatro Estações em Havana – Ventos de Havana”

  1. Olá,
    Assisti ontem a série quatro estações em Havana, na Netflix e, sempre que eu gosto de um filme, corro pra internet para saber mais informações sobre o mesmo. Aqui, lendo o que vc escreveu sobre o filme, diz que o mesmo se passa em 1989, visto que a caracterização realmente nos leva a este ano. O que me intrigou é que, no primeiro episódio tem um calendário na parede com o ano 1997 e, nos outros 3 episódios aparecem calendários com o ano de 1998. Será que é alguma pegadinha do diretor? Fiquei muito curiosa!!

  2. Olá, Mqria Isabel!
    Muito obrigado por enviar o comentário.
    Não reparei nesse detalhe dos calendários! E não consigo pensar numa explicação para o fato de os filmes terem colocado os calendários lá… Se a intenção fosse trazer mais para o presente a ação, poderiam ter, então, colocado, sei lá, tipo 2005, ou 2011…
    Nos livros é dito expressamente que tudo se passa em 1989…
    Se você descobrir a explicação, me conte. Eu prometo que conto, se encontrar…
    Um abraço.
    Sérgio

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