Morituri

Nota: ★★★☆

Morituri, de 1965, é um daqueles casos de bons filmes que não tiveram o reconhecimento que merecem. Foi um fracasso de público e crítica na época do lançamento.

Vi o filme quando ele chegou aos cinemas brasileiros, em 1966, e guardei dele, se não muito da trama, ao menos uma boa impressão. O Telecine Cult o trouxe para a programação agora, e revê-lo foi uma ótima experiência.

É um ótimo filme de guerra; tem ação, suspense – mas o ritmo, o clima, é mais de espionagem, inteligência e contra-inteligência. A trama é especialmente bem engendrada, bem costurada, os vários personagens são bem construídos – em especial os dois principais, interpretados por Marlon Brando e Yul Brynner.

Mais que apenas um filme de guerra e de ações de inteligência e contra-inteligência, é um bom estudo de personalidades, de caráter, como bem definiu a Mary.

Tem características fascinantes. Produção americana sobre a Segunda Guerra Mundial, portanto sobre o enfrentamento americanos, ingleses, russos e aliados contra alemães, feita exatos 20 anos após o fim do conflito, baseia-se em um livro do alemão Werner Joerg Luedecke, é dirigido pelo alemão Bernhard Wicki (1919-2000), e tanto o americano Marlon Brando quanto o russo de nascimento Yul Brynner fazem papel de alemães.

Enfrentam-se o tempo todo, os personagens dos dois atores centrais, dentro de um gigantesco cargueiro que leva preciosíssimo material da Ásia para a Alemanha – e foram, os dois, vítimas de chantagem para estarem naquele lugar, naquele momento.

O capitão Muller é forçado a levar uma carga preciosa para os nazistas

A primeira sequência do filme se passa – conforme indica um letreiro logo após o final dos breves crédito iniciais – no Japão, em 1942. Mais especificamente, na embaixada da Alemanha em Tóquio. O capitão Muller, da marinha mercante alemã (o papel de Yul Brynner), entra furioso na sala do almirante Wendell (Oscar Beregi Jr.) – que o espectador pode perceber rapidamente que é a maior autoridade da Marinha de Guerra nazista no Japão.

O capitão Muller veio reclamar, furibundo, que, na tripulação do seu navio, o cargueiro Ingo, haviam colocados criminosos – dois assassinos, alguns ladrões. E também um subversivo, acrescenta o almirante Wendell. E explica: é exatamente para que esses criminosos sejam levados para a Alemanha, onde serão julgados por seus crimes.

O capitão Muller continua esbravejando, dizendo que com aquela tripulação ele não fará a viagem do Japão até Bordeaux, na França ocupada pelos alemães.

O cargueiro levará da Ásia para a França e de lá para a Alemanha nada menos que 7 mil toneladas de borracha em estado cru – o suficiente, conforme será dito em outro diálogo, para fazer pneus para todos os veículos alemães em uso na guerra. Terá que atravessar boa parte do Pacífico, passar pelo extremo Sul da América do Sul e depois navegar por todo o Oceano Atlântico – expondo-se, portanto, aos ataques dos aliados. Uma tarefa duríssima, perigosíssima. Por isso é que os nazistas contam com o capitão Muller, um comandante veterano, experimentado, o melhor que poderia haver.

Muller continua dizendo que não vai – e aí o almirante Wendell expõe a chantagem. Tudo bem, Muller pode se recusar – mas com isso ele estará estragando completamente a carreira de seu filho, jovem capitão da Marinha de Guerra.

Corta, e passamos para Calcutá, na Índia, onde haverá uma outra chantagem.

Um alemão não nazista, perito em explosivos, é forçado a trabalhar para os aliados

Na segunda sequência de Morituri, o coronel Stratter, do exército britânico (interpretado, em uma participação especial, pelo grande Trevor Howard) está contando para um sujeito muito rico chamado Robert Crain, um portador de passaporte suíço vivendo há 3 anos na Índia (o papel de um Marlon Brando com os cabelos tingidos de louro), exatamente sobre o carregamento do cargueiro Ingo – as 7 mil toneladas de borracha.

A conversa se dá ao som de Mozart, na casa imensa, milionária de Crain, dando para a maravilha de um amplo rio, o Hooghly.

O coronel Stratter explica a importância daquela carga – e como é de fundamental importância que as 7 mil toneladas de borracha não cheguem à Alemanha, e, muito ao contrário, caiam nas mãos dos aliados. Isso encurtaria a guerra em ao menos alguns meses e, assim, salvaria milhares e milhares de vidas.

E, com calma, mas também com firmeza, conta para Robert Crain que sabe que ele na verdade não é suíço – é um cidadão alemão, chamado Schroeder, oficial de reserva de batalhão de engenharia do Exército alemão que, ao ser convocado para servir, conseguiu fugir para a Suíça, arranjar documentos falsos e mudar-se para a Índia levando boa parte de sua fortuna.

E o militar britânico continua a explicar seu plano:

Um engenheiro alemão perito em explosivos poderia embarcar no cargueiro Ingo ainda no Japão, fazendo-se passar por um oficial da SS, o serviço secreto nazista. Lá dentro, poderia desativar os explosivos colocados pelos alemães para explodir o navio caso ele viesse a ser tomado por embarcações aliadas. (Os alemães prefeririam que o navio e as 7 mil toneladas de borracha fossem parar no fundo do oceano do que entregar para o inimigo aquela carga preciosa.)

E, em algum ponto da viagem, já com os explosivos desativados, o cargueiro alemão poderia ser interceptado por um comboio americano.

Seu segredo revelado, Schroeder-Crain ainda tenta protestar, dizer que não aceita.

E não há como não pensar que Marlon Brando foi muito bem escolhido para o papel. Aquele Schroeder depois Crain e mais tarde Herr Keil é um sujeito rico demais, metido, afetado, pomposo, antipático – um personagem que parece ter sido inventado para Marlon Brando. Serve a ele como uma luva.

O alemão: “Slatter, você é um bastardo frio”. O inglês: – “Nasci numa ilha gelada”.

Falou-se muito, no que se escreveu sobre o filme, que esse Schroeder-Crain-Herr Keil é um pacifista. Na verdade, ele é um hedonista, pura e simplesmente – um sujeito que se dedica a gozar as coisas boas da vida. É pacifista? Ah, até é, porque guerra não chega a ser uma coisa propriamente muito prazerosa. Mas, em primeiro lugar, antes de mais nada, é um hedonista.

Não é nazista, de jeito algum – fugiu do país ao ser convocado para servir de fato no Exército. Mas também não quer se empenhar na luta contra os nazistas – lutar dá trabalho.

De uma certa maneira, esse personagem de Marlon Brando em Morituri se parece com o Ricky Blaine de Humphrey Bogart em Casablanca, o filme fetiche de gerações e gerações, lançado em 1942, exatamente o ano em que se passa a ação deste aqui.

Schroeder-Crain é neutro, porque neutro não tem que entrar em briga.

E então, na sua mansão com vista para o grande rio que passa por Calcutá, Schroeder-Crain em breve Herr Keil da SS diz, com aquela voz absolutamente única de Marlon Brando:

– “Coronel Statter, além dos aspectos suicidas do plano, não acredito na guerra como solução de conflitos políticos. O que as guerras provam? Homens, mulheres e crianças são dizimados. Uma geração mais tarde, amigos tornam-se inimigos e vice-versa, e esse ciclo idiota recomeça. Aprecio seu nobre esforço para salvar milhares de vidas, mas perdõe-me por me preocupar com a minha vida.”

O coronel Statter passa então – como pouco antes no filme havia passado o almirante nazista Wendell – para a chantagem pura e simples: tudo bem, ele pode se recusar. Mas nesse caso ele seria levado para a Inglaterra e em seguida lançado de pára-quedas de um avião da RAF sobre território alemão.

Diante da chantagem clara, o alemão diz: – “Slatter, você é um bastardo frio”. Ao que o inglês responde: – “Nasci numa ilha gelada”.

Um navio carregando uma imensa quantidade de conflitos e de  morituri

A inteligência britânica provê a Schroeder-Crain todo um material falso para ser Herr Keil, da SS. E, quando o filme – que dura 123 minutos – está aí com uns 20, Herr Keil está embarcando no grande cargueiro Ingo como um passageiro de volta à Alemanha. Só que um passageiro colocado à última hora no navio com a insígnia da SS no paletó não parece a ninguém apenas um passageiro.

O capitão Muller, que não é, de forma algum, um nazista, evidentemente entende que aquele sujeito da SS está ali no seu navio para observá-lo, para espiar todos os seus movimentos. Um espião.

O subversivo, preso político, anti-nazista que está sendo levado de volta para a Alemanha para ser condenado à morte, este vai querer, durante a longa viagem através de dois oceanos, ter o prazer de matar um oficial da SS – embora o oficial da SS não seja oficial da SS, não seja sequer nazista. Tem o apelido de Donkeyman, esse subversivo (o papel de Hans Christian Blech), e terá parte importante na trama.

Já o primeiro oficial, o segundo na cadeia de comando do grande cargueiro, Kruse (Martin Benrath), esse, sim, é um nazista de carteirinha, literalmente. É um sujeito que odeia seu superior, o capitão Muller – até por saber que ele não é membro ou admirador do Partido Nacional-Socialista. E vai se encantar com o fato de ter no navio um oficial da SS.

O grande cargueiro Ingo sai do Japão para uma viagem de vários meses rumo à Europa carregando 7 mil toneladas de preciosa borracha e uma quantidade infinita de conflitos prestes a explodir – inclusive um falso oficial da SS que na verdade está, contra sua vontade, a serviço dos aliados, tentando desmontar os explosivos colocados para afundar o navio caso haja o risco de ser tomado pelos inimigos.

Um gigantesco navio carregando uma imensa quantidade de morituri. E de conflitos sem fim entre eles.

Disseram que o título esquisito ajudou o filme a ser um fracasso

Pois é, morituri. Houve quem atribuísse ao título pelo menos parte do gigantesco fracasso do filme nas bilheterias.

De uma maneira geral, o público americano – é o que se dizia, o que se entendia, e a rigor é o que se diz e se entende até hoje – não é muito afeito a palavras que não compreende. Filmes com legendas nunca fazem grande sucesso no mercado americano, o maior do mundo. O americano médio (é o que o se diz) é monoglota. O que não é inglês é esquisito, bárbaro, incompreensível. Em diversos bons filmes americanos, personagens referem-se à língua que se fala noMéxico como Mexican. Imagine se americano comum, médio, vai saber que no vizinho México se fala uma língua que na verdade vem da Espanha – isso seria pedir demais. (Se fosse explicar que a rigor vem não da Espanha, mas de Castela, Castilla, em castelhano, aí seria de fundir a cuca.)

O filme até que tenta. Traz a explicação logo após os créditos iniciais: “Morituri te salutant era a forma com que os gladiadores saudavam César, na Roma de 2 mil anos atrás. Ave, César, os que vão morrer vos saúdam.”

Morituri: aqueles que vão morrer.

O filme chegou a ser relançado com o esquisitérrimo título de The Saboteur, Code Name Morituri.

A fotografia do filme é impressionante, soberba

Leonard Maltin deu apenas 2.5 estrelas em 4, e fez uma sinopse no mínimo inexata: “Brando é o maior nome do grande elenco em estudo de alemães anti-nazistas que ajudam os britânicos a capturar um navio cargueiro. O elenco e a fotografia de Conrad Hall são as únicas qualidades; o roteiro degenera.”

Para Maltin, o filme é The Saboteur, Code Name Morituri. E ele encerra sua sinopse assim: “originalmente lançado como Morituri”.

O autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo, na época em que se vendiam guias de filmes, está certíssimo quando elogia a fotografia de Conrad Hall (1926-2003, 3 Oscars, fora outras 7 indicações ao prêmio da Academia).

É um brilho.

É preto-e-branco, claro, como ainda se faziam muitos dos filmes, mesmo os americanos de grandes estúdios, em 1965. E é um estupor. A câmara de Conrad Hall faz zooms para perto e zooms para longe de deixar tontos de prazer os cinéfilos. Pega personagens e depois se distancia deles, para mostrar o grande navio sozinho de tudo no meio do mar imenso, e, ao contrário, pega do plano mais geral possível para se aproximar e se aproximar e se aproximar que dá para o espectador mais curioso ficar imaginando como foi, afinal de contas, que aquelas sequências foram feitas, que tipo de truque, ou de conjunção de truques, foi usado para obter aquele efeito.

Eu jamais me preocupo em saber como se obteve tal ou tal efeito. Gosto de ver o que passa na tela – e gosto quando o que passa na tela é belo.

Os zooms in e os zooms out de Morituri são belos como os de Titanic. Mas é preciso lembrar que Morituri é de 1965, décadas antes das imagens geradas por computador e do desenvolvimento de tantas novas técnicas de filmagem.

Um livro critica o filme por ser “uma série de equações morais”

O Guide des Films de Jean Tulard faz a seguinte apreciação: “Boa direção, mas o roteiro não evita um estereótipo sequer, e os atores exageram no cabotinismo.”

O livro The Films of 20th Century Fox diz o seguinte: “Marlon Brando fez de novo um alemão atormentado espiritualmente, mas com muito menos sucesso do que em The Young Lions.”

The Young Lions, no Brasil Os Deuses Vencidos, é um filme de guerra de 1958, dirigido por Edward Dmytryk, com Marlon Brando, Montgomery Clift e Dean Martin, baseado no romance caudaloso de Irwin Shaw. Um belo filme, pelo que eu me lembro – mas era adolescente quando o vi, quase uma outra encadernação. (Jornalista não reencarna – reencaderna.)

“Aqui ele é um espião a serviço dos britânicos, viajando num cargueiro do Japão para a Alemanha (é para Bordeaux, e isso é isso é dito várias vezes, mas tudo bem – o destino final da carga é a Alemanha) e lutando para entregar o navio para o inimigo. A viagem vira uma série de equações morais envolvendo nazismo ou não-nazismo e tensão entre as várias facções, com o capitão finalmente… (E aqui o livro faz um spoiler que omito.) Morituri é admirável no conceito, mas monótono na execução, e veio a ser um dos filmes de Brando de menor sucesso.”

Cada cabeça uma sentença. Acho que uma das qualidades do filme é ser uma série de equações morais.

O IMDb conta que Marlon Brando inicialmente se recusou a participar das entrevistas para divulgação do filme. A Fox ameaçou processá-lo, argumentando que aquilo constava do contrato. Em uma entrevista coletiva, Brando disse o seguinte: “Você não terá condições de continuar a viver a não ser que veja Morituri”. A Fox o dispensou das entrevistas seguintes.

O cara era mais enjoado que gato de hotel. Mas era um grande ator – fazer o quê?

Anotação em janeiro de 2018         

Morituri

De Bernhard Wicki, EUA, 1965

Com Marlon Brando (Robert Crain, Herr Keil), Yul Brynner (Capitão Muller)

e Janet Margolin (Esther), Trevor Howard (coronel Statter), Martin Benrath (Kruse), Hans Christian Blech (Donkeyman), Wally Cox (Dr. Ambach), Max Haufler (Branner), Rainer Penkert (Milkereit), William Redfield (Baldwin), Oscar Beregi Jr. (almirante Wendell), Martin Brandt (Nissen), Gary Crosby (Sloan), Charles De Vries (Kurz), Harold Dyrenforth (Cornelson)

Roteiro Daniel Taradash

Baseado em novela de Werner Joerg Luedecke

Fotografia Conrad Hall

Música Jerry Goldsmith

Montagem Joseph Silver

Figurinos Moss Mabry

Produção Aaron Rosenberg, 20th Century Fox.

P&B, 123 min (2h03).

***

3 Comentários para “Morituri”

  1. ASSISTI NO LANÇAMENTO E SAÍ DO CINEMA SEM ENTENDER. ESTAVA INTERESSADO EM YUL BRINNER E NÃO EM BRANDO PORQUE ME PARECIA QUE ATORES MUITO PREMIADOS E FAMOSOS SÓ FAZIAM PAPÉIS DE VENCEDORES, ETC. NÃO ENTENDI O FILME E NÃO SEI O QUE ACONTECEU COM O NAVIO E COM OS DOIS PRINCIPAIS. ISSO É O PIOR QUE PODE ACONTECER A UM FILME, NÃO SER COMPREENDIDO. SAÍ DIVULGANDO QUE NÃO VALIA A PENA

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