Marshall: Igualdade e Justiça / Marshall

Nota: ★★★☆

Mais um de tantos e tantos filmes que relatam histórias reais sobre a luta contra o racismo nos Estados Unidos, Marshall (2017), tem uma grande qualidade: não mostra o protagonista da história como um herói absolutamente perfeito.

Antes de mais nada, é preciso deixar bem claro: nada, absolutamente nada contra a existência de muitos filmes que denunciem o racismo e mostrem episódios da luta contra esse crime, um dos piores que a humanidade foi capaz de inventar. Exatamente como em relação às obras, também bastante numerosas, sobre os crimes do nazismo, o assassinato de milhões de judeus, o Holocausto.

Tudo a favor de que haja mais e mais bons filmes sobre esses horrores. Eles podem certamente ajudar a humanidade a não reincidir nos crimes.

O protagonista da história, Thurgood Marshall (1908-1993), é, sim, mostrado como um herói, um daqueles homens indispensáveis de que falava Bertold Brecht – “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”.

É mostrado como um herói – e o filme demonstra claramente que Thurgood Marshall fez por merecer isso.

A qualidade que me agradou foi que ele não é pintado como um herói absolutamente perfeito, em tudo por tudo.

Porque há uma tendência, especialmente quando a obra – seja filme, livro, peça de teatro – não é boa, de endeusar essas pessoas bravas, valorosas, indispensáveis, imprescindíveis, que tiveram alguma ou grande importância na luta contra o racismo.

O filme mostra – até com alguma insistência – que Thurgood Marshall era um homem não propriamente dotado de modéstia. Bem ao contrário: era um sujeito tremendamente cheio de si. Com absoluta confiança no seu taco. Presunçoso. Metido pra cacete. Pecava por soberba – e chegava a destratar os outros, tamanho seu ego.

Sim, sim, ele tinha razões de sobra para isso. Mas ao menos o filme exibe, expõe essa característica, com destaque, até.

Neste mundo atual em que fazer qualquer tipo de crítica, por menor que seja, a um ser humano de pele escura é tido como um crime de lesa-humanidade, essa qualidade de Marshall é para ser elogiada de pé como na ópera.

O filme se concentra em um episódio da vida de Marshall

Não é uma cinebiografia. Não se contam os principais fatos da longa, profícua, riquíssima vida de Thurgood Marshall. O realizador Reginald Hudlin e os roteiristas Jacob Koskoff e Michael Koskoff optaram por contar, em Marshall, um episódio da vida e da carreira dele, ocorrido em 1941, a época em que ele, aos 33 anos de idade, era o único advogado da NAACP, National Association for the Advancement of Colored People – a associação nacional para o avanço das pessoas de cor que viria a ter importância fundamental na luta pelos direitos civis que, em meados dos anos 1960, afinal garantiu o fim de toda a legislação segregacionista ainda existente nos Estados Unidos.

Essa informação básica é dada em rápido, sintético letreiro bem no início do filme, após o aviso “baseado em uma história real”: “Em 1941, Thurgood Marshall era o único advogado trabalhando para a National Association for Advancement of Colored People. Sua missão: defender pessoas falsamente acusadas de um crime por causa de sua raça.”.

Enquanto vão rolando os créditos iniciais – em que os únicos nomes internacionalmente famosos na época do lançamento são os da loura linda Kate Hudson e do veterano James Cromwell, aquele ator especializado em papéis de senhores de mau caráter –, vemos, simultaneamente, trechinhos de dois julgamentos. Em Hugo, no sulista, interiorano Oklahoma, o jovem Thurgood Marshall está defendendo, em um tribunal de júri, um negro que, submetido a brutal tortura, acabou confessando um crime que não cometeu. Em Bridgeport, no rico, sofisticado Connecticut, ao Norte de Nova York, um outro jovem advogado, Sam Friedman, apresenta a um tribunal de causas cíveis uma queixa de uma consumidora contra uma empresa de energia elétrica – e vence.

O advogado de pele negra é interpretado por Chadwick Boseman, rapagão fina estampa, belo porte, nascido em 1977 na Carolina do Norte, 30 títulos na filmografia, inclusive alguns filmes feitos para serem blockbuster, tipo Capitão América: Guerra (2016), Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Pantera Negra (2018). Boseman ainda não era um absoluto astro quando o filme foi lançado, mas, logo depois, se tornaria um semideus no panteão dos grandes heróis dos negros dos Estados Unidos – e de todo o mundo.

O advogado judeu é interpretado por Josh Gad, rapaz meio gorducho, rosto não belo, nascido em 1981 na Flórida, 65 títulos na filmografia, vários deles como dublador de personagens de animações, como A Era do Gelo, Angry Birds e Frozen – ele faz a voz do simpaticíssimo bonequinho de neve Olaf.

 Um negro pobre é acusado de estuprar e tentar matar uma loura rica

Será em Bridgeport, Connecticut, a cidade de Sam Friedman, que se passará praticamente toda a ação do filme.

Em Bridgeport, naquele ano de 1941, uma mulher branca, rica, de boa família, educada, religiosa, acusa um empregado seu, o motorista, negro, pobre, com manchas no passado, de a ter estuprado e em seguida tentado matá-la, jogando-a do alto de uma ponte sobre um reservatório.

A branca rica é o papel de Kate Hudson, que, a rigor, faz uma participação especial: ela aparece em algumas poucas sequências, no tribunal. O negro acusado, Joseph Spell, é interpretado por Sterling K. Brown.

O caso tem imensa repercussão nos jornais, inclusive os nova-iorquinos, os de circulação nacional. (A Grande Nova York fica muito perto de Connecticut e é ligada ao Estado por excelente malha ferroviária; moram nas pequenas cidades do Estado milhares de pessoas de classe média alta e classe alta que trabalham na metrópole.)

Os chefes da NAACP mandam Marshall para Bridgeport assim que ele termina seu trabalho em Hugo, Oklahoma. Mal dá para ele ficar algumas horas com sua mulher, Buster (Keesha Sharp).

A questão é que Marshall tem inscrição na Bar Association, o correspondente americano à Ordem dos Advogados, para praticar a advocacia no Estado de Nova York, mas não no Estado de Connecticut. Assim, para participar do julgamento de Joseph Spell, ele terá que ter uma subscrição de um advogado local. E o representante da NAACP em Bridgeport vai atrás de Sam Friedman. Talvez por achar que, sendo Sam um judeu, outra minoria frequentemente ameaçada pelos racistas, supremacistas, fosse simpático à causa.

Marshall trata Friedman como se fossem patrão e serviçal

A princípio, Sam Friedman tenta resistir ao máximo à idéia de ser o advogado de um negro acusado de estupro e tentativa de assassinato de uma branca. Até porque não é a praia dele – ele é um expert em casos cíveis, não criminais.

Quiseram os deuses, Deus, Jeová, o destino, as fadas, o fado, que Sam Friedman fosse sendo empurrado para o caso, por mais que ele rejeitasse a idéia.

A sequência, ainda bem no início dos 118 minutos de Marshall, em que os dois advogados, o negro e o judeu, se conhecem, é ótima – e a primeira a mostrar a empáfia, a soberba do protagonista da história. Marshall desembarca do trem em Bridgeport, é recebido pelo advogado branco que concordou em fazer a gentileza de subscrever o colega como defensor do acusado – e, agindo como se fosse ele o chefão, o todo-poderoso, indica que Sam é que deve carregar suas malas. E são malas pesadíssimas, como seus códigos de Direito.

Como se o colega, o seu igual, advogado como ele, fosse um serviçal.

A intenção de Sam era apresentar Marshall ao tribunal, fazer a subscrição que permitisse que ele trabalhasse em Connecticut, e cascar fora, deixar o caso apenas com o advogado da NAACP.

Apresentam-se então diante do juiz Foster,  um papel perfeito para o veterano James Cromwell – um juiz obviamente parcial, safado, sacana, filho da mãe, prontinho a encaminhar o julgamento de forma a dar a pena de morte ao réu negro. Para definir a situação em poucas palavras: o juiz Foster havia sido sócio do pai do promotor do caso, Loren Willis (Dan Stevens). Esse promotor, por sua vez, rico de nascimento, formado na melhor universidade, estava se preparando para concorrer ao Senado.

O juiz Foster decide que Sam Friedman é mais do que suficiente para defender o réu. Mas, como prova de que ele é extremamente justo, e não quer dar margem a que pensem o contrário, anuncia que permitirá a presença de Thurgood Marshall em seu tribunal – desde que ele não fale uma palavra. Poderá se comunicar com o colega Sam Friedman, mas apenas por escrito.

Como prova de que é um juiz extremamente justo.

Um advogado judeu sem prática alguma na área criminal, e um advogado negro experiente mas impedido de falar. Dois pequenos Davids, representando um negro de ficha suja, acusado de estuprar e tentar matar uma Wasp linda e riquíssima. Dois pequenos Davids a enfrentar diversos Golias – do juiz safado, preconceituoso, até toda a sociedade igualmente preconceituosa.

Nas décadas seguintes, Marshall teve carreira gloriosa, até chegar à Suprema Corte

Como costuma acontecer nos filmes que contam histórias reais, ao final da narrativa deste Marshall letreiros nos contam o que aconteceu com os principais personagens a partir daí. Sam Friedman se tornou um grande batalhador pelos direitos civis. E esse Thurgood Marshall, advogado brilhante demais da conta, teve uma carreira gloriosa, e um papel importantíssimo na luta pelos direitos civis. (Mais abaixo, uma foto de Marshall.)

Nos anos que se seguiram ao julgamento de Bridgeport, Marshall levou diversos casos à Suprema Corte dos Estados Unidos – e venceu quase todos. Inclusive o que ficou conhecido como Brown v. Board of Education, que, em 1954, proibiu como ilegal a segregação racial nas escolas públicas.

Em 1961, o presidente John F. Kennedy indicou Marshall para o cargo de juiz da Corte de Apelações. O sucessor de Kennedy, o também democrata Lyndon B. Johnson, o indicou para o cargo de Advogado Geral da União em 1965 e, em 1967, para uma das vagas na Corte Suprema dos Estados Unidos, onde permaneceu até 1991.

Nem é preciso dizer que foi o primeiro negro a ocupar uma cadeira na Suprema Corte.

Segregação.

É necessário lembrar sempre: a segregação racial, a separação obrigatória entre pessoas de pele clara e pessoas de pele escura, era garantida por lei em diversos Estados do Sul dos Estados Unidos da América, a Terra da Democracia e da Liberdade, até ser finalmente derrubada em meados dos anos 1960 pelo Civil Rights Act.

Essa Lei dos Direitos Civis, promulgada em 2 de julho de 1964 pelo presidente Johnson, baniu definitivamente todo tipo de discriminação baseada em raça, cor,  religião, sexo ou nacionalidade.

Até junho de 1964, prevalecia em diversos Estados leis severas proibindo, por exemplo, que brancos e negros frequentassem os mesmos lugares públicos, as mesmas escolas, os mesmos hospitais, os mesmos banheiros em estações rodoviárias ou restaurantes, os mesmos bebedouros.

O realizador Reginald Rudlin e os roteiristas Jacob Koskoff & Michael Koskoff espertissimamente puseram Thurgood Marshall, na cena final do filme, ao lado de um bebedouro no Mississipi junto do qual estava escrito o aviso infame: “White only”, só brancos.

Judeus e negros juntos contra o crime do racismo

Acho fascinante que o filme Marshall enfatize a importância de Sam Friedman no julgamento de Joseph Spell – e enfatize também o anti-semitismo que várias pessoas de Connecticut demonstram. “Achei que vocês, judeus, fossem inteligentes”, diz a Sam o nojento promotor Wasp. “Você está sendo igual a ele”, completa, em referência a Marshall. Ao que Sam responde que aquilo – ser comparado a Marshall – é um grande elogio.

Muitos judeus – assim como Sam Friedman – tiveram importância enorme na luta dos negros pelos direitos cjvis nos anos 50 e 60 nos Estados Unidos. Só para dar um exemplo que tem a ver com filmes, era judeu também Bernie Cohen, o advogado que defendeu os Loving, Mildred e Richard, o casal que em 1958 foi preso na Virgínia pelo crime de terem se casado – ele branco, ela descendente de negros e índios. O caso dos Loving foi levado à Suprema Corte dos Estados Unidos – que, em 1967, numa decisão histórica, definiu como inconstitucionais as leis estaduais que proibiam casamento entre pessoas de cor de pele diferentes.

(A história do casal foi contada no belo filme Uma História de Amor/Loving, de 2016).

Judeus e negros juntos contra o crime do racismo.

Marshall é um filme feito por negros e judeus. O diretor Richard Hudlin é negro, os roteiristas Jacob e Michael Koskoff são judeus.

Também é necessário lembrar sempre: jamais houve no Brasil uma lei que favorecesse, de alguma forma, qualquer tipo de segregação racial. Jamais houve qualquer tipo de proibição de casamentos inter-raciais.

Muito ao contrário: o Brasil é profundamente miscigenado, graças a Deus. Os casamentos entre pessoas de cores de pele diferentes sempre foram comuns.

E desde 1951, a discriminação racial no Brasil é proibida por lei, a Lei Afonso Arinos.

No Brasil, muito diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, a discriminação nunca foi defendida em lei, e, ao contrário, é crime.

Isso não quer dizer que não haja discriminação e racismo aqui. Há, sim, infelizmente – mas é necessário ter esses fatos sempre em mente. É muito assustador vermos pessoas dizendo – como a atriz e ativista Taís Araújo disse, em entrevista recente – que nos Estados Unidos é que as coisas com relação a racismo são boas.

É muito assustador ver a patrulha dos ativistas negros negar a uma mulata talentosa como Fabiana Cozzi o direito de representar no teatro Dona Ivone Lara porque ela não é suficientemente negra.

Muitas das ações dos ativistas da negritude brasileiros são tão racistas quanto os piores racistas americanos da época em que o apartheid deles era protegido por leis.

Anotação em junho de 2018

Marshall: Igualdade e Justiça/Marshall

De Reginald Rudlin, EUA, 2017

Com Chadwick Boseman (Thurgood Marshall), Josh Gad (Sam Friedman)

e Kate Hudson (Eleanor Strubing), Sterling K. Brown (Joseph Spell), Dan Stevens (Loren Willis, o promotor), James Cromwell (o juiz Foster), Keesha Sharp (Buster, a mulher de Marshall), Roger Guenveur (Walter White, o diretor da NAACP), Derrick Baskin (Ted Lancaster, o homem da NAACP em Bridgeport), Barrett Doss (Bertha Lancaster), Zanete Shadwick (Irene Lancaster, a filhinha do casal), John Magaro (Irwin Freidman, o irmão de Sam), Ahna O’Reilly (Mrs. Richmond), Jussie Smollett (Langston Hughes), Rozonda ‘Chilli’ Thomas (Zora Neale Hurston)

Roteiro Jacob Koskoff & Michael Koskoff

Fotografia Newton Thomas Siegel

Música Marcus Miller

Montagem Tom McArdle

Casting Victoria Thomas

Produção Chestnut Ridge Productions, China Wit Media, Starlight Media, Super Hero Films.

Cor, 118 min (1h58)

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