Como Água Para Chocolate

Nota: ★★★½

Os ingredientes básicos são o amor e a comida, e, como o prato é mexicano, é amor e comida com tempero exageradamente forte. Mistura-se a eles um caldo espesso de fantástico, de fantasia, de um realismo irreal, louco, alucinado. E adicionam-se lágrimas, muitas lágrimas, em doses abundantes.

Muito da história se passa na cozinha. Tita, a protagonista, nasce numa das mesas da grande cozinha da fazenda da família: a mãe estava cortando cebola quando sentiu que o bebê iria sair naquela hora mesmo, não adiantaria tentar chamar médico, parteira.

Uma grande torrente de lágrimas expulsa Tita do ventre da mãe.

Vemos a cena bem no comecinho deste belo Como Água Para Chocolate (1992), que Alfonso Arau dirigiu com roteiro de sua então mulher Laura Esquivel, baseado no romance escrito por ela mesma.

O filme abre com uma mulher na cozinha, cortando cebola. É a sobrinha-neta de Tita, e será a narradora da história – o papel de Arcelia Ramírez. Fascinantemente, não é mencionado o nome dela em momento algum.

Tita é expulsa do ventre da mãe por um caudaloso rio de lágrimas

Eis o que a sobrinha-neta da protagonista da história relata para o espectador no inicinho da narrativa. O texto é precioso, suave e delicado como uma especiaria:

– “A cebola tem que estar bem cortada. Sugiro que ponham um pedaço de cebola na cabeça para evitar as lágrimas quando se está cortando. (Ela coloca um pedaço bem no alto da cabeça, e vira-se diretamente para a câmara, para o espectador.) O ruim de chorar quando se pica a cebola não é o fato em si de chorar, e sim que às vezes não se consegue parar.”

Corta, e vemos, num plano geral, uma casa de fazenda lá longe, sob um céu avermelhado de pôr-de-sol, numa vermelhidão de ofuscar até mesmo os de David O. Selznick em … E o Vento Levou e Duelo ao Sol, enquanto a sobrinha-neta de Tita prossegue contando:

– “Mamãe dizia que sou tão sensível à cebola quanto Tita, minha tia-avó, que desde o ventre materno chorava (um letreiro nos situa o quando e o onde: “Rio Grande, México, 1895”), quando minha bisavó picava cebola.”

Vemos então a cena: Elena (Regina Torné) pára de cortar cebola, leva a mão à barriga imensa, joga no chão tudo o que está à sua frente na grande mesa e se deita nela. Nacha, a fiel cozinheira da família (Ada Carrasco), tenta acudir, fala em chamar o médico, mas Elena diz que não vai dar tempo.

– “Nacha, a empregada, contava que Tita foi empurrada a este mundo por uma torrente de lágrimas que inundou o chão da cozinha. Quando o susto passou, e a água, graças ao sol, evaporou, Nacha recolheu o que restou das lágrimas – foram 20 quilos de sal, que usaram para cozinhar por muito tempo.”

Ah… Que maravilhosa abertura! Um rio de lágrimas que expulsa o bebê do ventre da mãe… Lágrimas que, quando secam, deixam no chão da cozinha 20 quilos de sal…

De vez em quando a mágica irrompe na narrativa – e é uma beleza

Em Como Água Para Chocolate, seu livro de estréia, publicado em 1989, Laura Esquivel, então com 39 anos, honrou a então jovem mas brilhante tradição do realismo fantástico latino-americano iniciada por seus colegas Manuel Scorza, Alejo Carpentier, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, José J. Veiga,

A mágica que de vez em quando invade a narrativa é talvez a melhor das qualidades do filme.

Num momento de profunda tristeza, às vésperas do casamento de seu amado Pedro (Marco Leonardi) com sua irmã Rosaura (Yareli Arizmendi), Tita (Lumi Cavazos, a atriz que está na maioria das fotos deste post) chora copiosamente, e muitas lágrimas caem na massa do bolo que ela e a fiel Nacha estão preparando para a festa. O resultado é que, quando o bolo é servido às dezenas de convidados, todos, absolutamente todos passam mal. Não apenas correm para onde é possível para vomitar como são atacados por profunda, profunda, profunda tristeza.

Algum tempo depois, quando Pedro a presenteia com um ramo de rosas, e os espinhos do ramo que ela aperta contra o peito fazem expor gotículas de sangue, Tita usa as pétalas da flor para fazer um molho de codornas – e todos os que comem a iguaria são atacados por um tesão sem fim. O efeito se concentra em especial sobre Gertrudis, a irmã do meio (Claudette Maillé).

A bela moça sai da mesa já pegando fogo. Vai tomar um banho na tentativa de tentar aplacar o calor, mas as chamas que saem de seu corpo incendeiam as paredes do banheiro – e Gertrudis sai correndo pelo campo, peladinha, e trepa no cavalo de um revolucionário que passava por ali, um villista, Juan Alejándrez (Rodolfo Arias) – e desaparece de cena abraçada a ele. Só vai reaparecer na fazenda da família muitos anos depois, casada com o agora maridão e ela mesma dona do título de generala da revolução mexicana do início do século passado.

Pedro aceita se casar com a irmã de Tita só para ficar perto da amada

Bem. Para relatar rapidamente esses dois momentos mágicos, avancei demais, pus o carro à frente dos bois. Vou dar um rewind, voltar para o início e contar só mais um pouquinho desta epopéia, este 50 Anos de Paixão criado por Laura Esquivel.

Assim que nasce Tita, a terceira filha de Elena, alguém questiona junto do marido dela a paternidade da segunda, a do meio, Gertrudis – falava-se, na região, que a menina seria filha de um negro, um amante de Elena. Chocado, perplexo com a informação, o pobre homem tem um ataque e morre.

E aí vem a chave da história. Viúva, Elena proclama que, seguindo a tradição mexicana, Tita, sua filha mais nova, não poderia se casar: cabe à filha mais nova ficar solteira e cuidar da mãe até que ela morra.

Quando Tita está na adolescência, aprendendo com Nacha os segredos da culinária, apaixona-se por um rapaz das vizinhanças, Pedro. Ele também se apaixona por ela, e vai com o pai pedir a mão da moça. Elena repete o refrão de que Tita não pode se casar – mas, se ele quiser, Rosaura, a mais velha, está absolutamente disponível.

Pedro aceita se casar com Rosaura – apenas para poder ficar perto da Tita amada.

E está feito o bolero, o novelão mexicano: estarão Tita e Pedro condenados para sempre a se consumir de amor sem consumá-lo?

Uma ode à libertação dos oprimidos – e à força das mulheres

Em torno dessa situação de novelão mexicano, há toda uma simbologia para quem quiser. Tita e Pedro são os oprimidos – Elena e Rosaura são os opressores. Gertrudis é a saída, a solução, a revolução.

Como Água para Chocolate é uma ode à libertação dos oprimidos – e também, à força, à independência das mulheres, à reação contra os preconceitos sociais, as amarras da tradição.

De maneira imprevista, interessante, fascinante, há um gringo, um médico do outro lado do Rio Grande, Alex Brown (o papel de Mario Iván Martínez), que se torna amigo da família. e se apaixona perdidamente por Tita – até porque, diabo, quem não se apaixonaria por aquela moça?

O gringo, ao contrário do que se poderia esperar, não é um explorador, um invasor, um sujeito emproado, metido, um imperialista danado. Bem ao contrário: é um rapaz de imenso coração, a bondade em pessoa.

Há exageros, mão pesada: Elena é a megera absoluta, o retrato do mal em si, enquanto Tita é a doçura absoluta, infinita.

Há derrapadas no visual. Os diretores de fotografia Steven Bernstein e Emmanuel Lubezki abusam das cenas de alvorecer e entardecer, para criar aquelas imagens que fariam a felicidade do produtor Selznick – e que acabam ficando simplesmente bocós.

Há atuações fracas. Marco Leonardi, o galã que faz Pedro, em especial, precisaria fazer uns três cursos de arte dramática para ser considerado mediano. A ruindade do ator quase chega a comprometer todo este belo filme – mas a verdade é que a gente acaba não dando importância a ela diante da delícia que é a história, o clima de realismo fantástico, a doçura de Tita, a beleza e simpatia dessa moça Lumi Cavazos que a interpreta – e toda essa ênfase à coisa da comida, a comida representando tudo, a tristeza, a alegria, o amor, a paixão, o tesão.

Delicioso exemplar do realismo fantástico, Como Água Para Chocolate é também um dos bons filmes daquela cepa que glorifica a comida, o paladar, os prazeres da mesa – ao lado do dinamarquês A Festa de Babette (1987), do anglo-americano Chocolate (2000), do alemão Simplesmente Martha (2001), refilmado pelos americanos como Sem Reservas (2007), do greco-turco O Tempero da Vida (2003), do francês O Segredo do Grão (2007), do americano Julie & Julia (2009).

Como Água Para Chocolate ganhou 26 prêmios, fora outras 14 indicações

Laura Esquivel iniciou a carreira de escritora fazendo roteiros de programas infantis para a televisão mexicana. E começou a escrever Como Água Para Chocolate como um roteiro de filme. Convencida de que não teria como financiar a produção de um filme com base no roteiro, resolveu então contar a história em prosa. O romance, lançado, como já foi dito, em 1989, foi um sucesso imenso no México e em vários outros países. O sucesso do romance garantiu que a história fosse levada ao cinema, com roteiro da própria Laura Esquivel.

Depois desse primeiro, a autora publicaria outros nove livros – oito romances, e um de contos.

A vida tem caminhos fantásticos como as histórias de ficção. Laura Esquivel e o diretor e produtor Alfonso Arau haviam se casado em 1975, quando ela estava com apenas 25 anos e ele, com 43. O casal se separou em 1996, apenas quatro anos depois do lançamento do filme – que foi grande sucesso de público e crítica no México e em vários países.

O filme levou 10 prêmios Ariel, o corresponde mexicano do Oscar, dado pela Academia Mexicana de Artes e Ciências Cinematográficas. Teve indicação ao Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro; ao todo, foram 26 prêmios e outras 14 indicações.

Like Water for Chocolate cria seu próprio mundo de intensa paixão e romance”

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Surpreendente e sensual filme (de uma novela de Laura Esquivel, a mulher do diretor), passado no início do século 20: a vida de uma jovem mulher é definida primeiro pela sua severa e inflexível mãe, e, o mais importante, pelo impressionante poder da culinária. Fábula suntuosa – não desprovida de humor – com um bom elenco e uma interpretação de primeira linha da atriz principal Cavazos. Picante, algumas vezes místico e gostosamente imprevisível.”

O grande Roger Ebert, o crítico que via filmes por prazer, e não por obrigação, encantou-se ainda mais que Maltin com Like Water for Chocolate. Deu a cotação máxima de 4 estrelas, e começou assim seu longo texto:

“No México – eu aprendi –, chocolate quente é feito com água, não com leite. A água é posta para ferver e então o chocolate é lançado nela. De uma pessoa em estado de excitação sexual se diz que está ‘como água para chocolate’. E agora aqui está um filme em que todo mundo parece estar fervendo, suas vidas voltadas para uma mulher cuja vida sexual é levada na cozinha, e cuja comida é tão mágica que ela faz as pessoas rirem, ou chorarem, ou correrem nuas da casa para serem carregadas embora por um revolucionário que passa por ali.

Like Water for Chocolate cria seu próprio mundo de intensa paixão e romance, e adiciona um pouco de comédia e muito de codornas, alho, mel, pimentas, coentro, pétalas de rosa e farinha de milho.”

Ah… Sempre digo e repito: quando eu crescer, quero escrever sobre filmes como Roger Ebert.

Mais adiante, ele afirma: “Como Bye Bye Brazil e partes de El Norte (de Gregory Nava, de 1983, sobre irmãos que deixam a Guatemala em busca de uma vida melhor nos EUA), ele mantém a tradição do realismo mágico que é importante na moderna literatura e no cinema latino-americanos. Ele começa com o pressuposto de que a magia pode mudar o tecido do mundo real, se for transmitida através das emoções das pessoas que amam. E Lumi Cavazos, como Tita, é o instrumento perfeito para a mágica, com sua devoção de vida inteira por Pedro.”

E, depois disso, não há mais o que dizer.

Anotação em junho de 2018

Como Água Para Chocolate

De Alfonso Arau, México, 1992

Com Lumi Cavazos (Tita)

e Marco Leonardi (Pedro Muzquiz), Regina Torné (Elena, a mãe), Mario Iván Martínez (dr. John Brown), Ada Carrasco (Nacha, a empregada), Yareli Arizmendi (Rosaura, a irmã mais velha), Claudette Maillé (Gertrudis, a irmã do meio), Pilar Aranda (Chencha, a empregada mais jovem), Farnesio de Bernal (o padre), Joaquín Garrido (sargento Treviño), Rodolfo Arias (Juan Alejándrez), Margarita Isabel (Paquita Lobo), Sandra Arau (Esperanza Muzquiz, a filha de Rosaura), Andrés García Jr. (Alex Brown, o filho de John), Arcelia Ramirez (a filha de Esperanza e Alex), Regino Herrera (Nicolás).

Roteiro Laura Esquivel

Baseado no romance de sua autoria

Fotografia Steven Bernstein e Emmanuel Lubezki

Música Leo Brouwer

Montagem Carlos Bolado e Francisco Chiu

Casting Liza Willert

Produção Alfonso Arau, Arau Films Internacional, Aviacsa, Cinevista, Fonatur, Fondo de Fomento a la Calidad Cinematográfica.

Cor, 105 min (1h45)

R, ***1/2

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