11 Minutos / 11 Minut

Nota: ★★★½

As coincidências, as peças que o destino – ou Deus, os deuses, o fado, as fadas, a aleatoriedade, seja lá o que for – prega na gente são a matéria-prima de muitas das histórias de François Truffaut, Claude Lelouch, Jacques DemyKrzysztof Kieslowski. Com 11 Minutos, o polonês Jerzy Skolimowski parece ter querido fazer o filme definitivo sobre esse tema.

A Soma de Todas as Coincidências.

O Maior Espetáculo da Terra das Coincidências de Deus e o Diabo.

O Maior Tour-de-Force da História.

11 Minutos são 81 minutos de fogos de artifício, criativóis, maneirismos, engenhosidades com a câmara.

Para tudo terminar no tom maior que pode haver, uma bomba atômica de talento, domínio das técnicas cinematográficas todas. Um exagero do exagero do exagero. Algo capaz de deixar a explosão final de Zabriskie Point – a aventura americana de Michelangelo Antonioni de 1970 em que vemos nada mais nada menos que a sociedade de consumo sendo destruída, indo para os ares – parecendo um traque, uma bombinha de criança.

Fiquei pensando que, aos 77 anos de idade, 55 de cinema, Jerzy Skolimowski fez este filme com o fôlego, o entusiasmo e a vontade de berrar o tempo todo para o espectador “Olhem como eu sou genial” de um iniciante de 30 anos. Nem Gláuber Rocha faria igual.

São uns 12 personagens. Não ficamos sabendo os nomes de vários deles

O próprio realizador é o autor da história original e do roteiro. O filme mostra o que acontece durante exatos 11 minutos, ao redor das 5 horas da tarde de um dia de semana qualquer, na vida de uma dúzia de pessoas na cidade de Varsóvia.

O roteiro vai e volta no tempo, para acompanhar este e depois aquele e depois aquele outro personagem – mas sempre naqueles 11 minutos ao redor das 5 da tarde.

Algumas daquelas pessoas se conhecem, outras nunca tinham visto as demais. Ao final daqueles 11 minutos, estarão todos juntos no mesmo local.

A câmara de Skolimowski e de seu diretor de fotografia Mikolaj Lebkowski vai nos mostrando cada um desses personagens – e muitas vezes vemos, perto de um, outro dos personagens, que a câmara depois perseguirá. Os mesmos movimentos de cada uma daquelas 12 pessoas ou pouco mais serão vistos mais de uma vez ao longo dos 81 minutos do filme, que reproduzem os 11 minutos fundamentais na vida de cada uma delas.

Não ficamos sabendo os nomes da maioria deles.

Eis os personagens:

* Richard, o americano diretor de cinema (o papel de Richard Dormer, na foto acima). Ele está hospedado num hotel de muitas estrelas na área central de Varsóvia, e tem um encontro agendado com uma belíssima atriz polonesa às 17 horas na sua suíte. Ele prepara tudo para tentar seduzir a moça – ou simplesmente partir para o assédio. Pouco antes do horário marcado, retira das tomadas todos os telefones do quarto, deixa a postos dois cálices de champagne, a garrafa devidamente colocada num balde de gelo.

* Anna Hellman, a atriz (o papel de Paulina Chapko, um monumento, na foto abaixo). Jovem, um tanto insegura, deslumbrante, ela quer, é claro, impressionar o diretor, quer ter a chance de ser escolhida para trabalhar no próximo filme dele. Mas logo perceberá, é claro, que o diretor vai, em algum momento, partir para o ataque.

* O marido de Anna (o papel de Wojciech Mecwaldowski, na foto abaixo) é um dos vários cujo nome não aparece no filme. Ele é mostrado como um sujeito ciumento – um ou dois dias antes daquele em que se passa a ação, brigou com um sujeito que passou a mão na bunda da linda mulher, levou um soco no rosto, perto do olho, ficou com um grande hematoma no rosto. Pretendia ir com a mulher para a entrevista com o diretor americano, mas dormiu demais, acordou em cima da hora, Anna há havia saído.

Ele se veste rapidissimamente, e sai caminhando o mais depressa que pode, quase correndo, pelas ruas, rumo ao hotel em que o americano está hospedado.

A câmara que o segue pelas ruas é brilhante. O ator que interpreta o marido de Anna, excelente, como aliás todos os demais, vai andando rapidissimamente entre as pessoas pelas calçadas – e a câmara o segue na mesma velocidade que ele. Vai ali juntinho dele, na cola dele. Não é uma câmara de mão – não treme nada. Teriam Skolimowski e o diretor de fotografia Lebkowski colocado trilho para a câmara se movimentar em travelling tão rapidamente, e de forma tão firme, tão segura?

Sempre insisto em dizer que não dou muita importância aos efeitos especiais, aos truques de estúdio. Mas algumas coisas básicas são absolutamente fascinantes. Sou fascinado pelos travellings – a câmara em movimento, que é a base do cinema, kinema em grego = movimento. O espectador normal pode sequer reparar, mas nesse tipo de coisa eu reparo. É uma absoluta maravilha a câmara seguindo às pressas o marido de Anna que praticamente corre pelas ruas centrais de Varsóvia.

Há o vendedor de hot-dog, o motoboy,  a médica, o pintor…

Lá pelas tantas, o marido de Anna passa perto de um vendedor de hot-dog que está atendendo a um grupo de quatro freiras. É bom lembrar que a Polônia é um país profundamente católico.

Ao finalmente chegar ao hotel, ele dará um jeito de subir até o andar em que o diretor americano está hospedado. Ficará rondando o quarto em que a belíssima mulher dele está, sozinha, junto de um americano que talvez esteja tentando cantá-la, tentando seduzi-la.

Ao longo do filme, veremos vários vezes o marido de Anna tentando entrar no quarto do diretor americano, em meio a sequências que mostram o que estava acontecendo com os diversos outros personagens da história ao longo daqueles mesmos decisivos 11 minutos ao redor das 5 horas da tarde.

* O vendedor de hot-dog (o papel de Andrzej Chyra, na foto abaixo) serve o grupo de quatro freirinhas enquanto conversa com elas sobre coisas relacionadas a essa grande invenção da humanidade, o cachorro-quente. Pergunta para elas qual o maior hot-dog elas acham que já foi feito. Demonstra ser um conhecedor de fatos relacionados a hot-dog. Demonstra que pesquisou muito o assunto.

* O motoboy, o rapaz que faz entregas (o papel de Dawid Ogrodnik). Nós o vemos cheirando cocaína e comendo uma mulher na casa de gente rica dela – são quase 5 da tarde, e o marido dela deveria estar no trabalho. Mas a mulher percebe que o marido está chegando – e o motoboy se veste às pressas, desde as escadas, chega até os jardins da casa e entrega o pacote que ele vinha trazer para o homem, que, perplexo, pergunta como ele havia conseguido entrar, passar pelo portão da frente.

O motoboy dá uma desculpa qualquer e consegue sair da propriedade rica; a moto demora a pegar, mas, quando pega, ele sai em altíssima velocidade.

* A dra. Ewa Król (Anna Maria Buczek) está, pouco antes das 5 horas daquela tarde, numa ambulância, indo atender uma emergência: uma mulher está para dar à luz em um apartamento localizado no andar alto de um prédio humilde, pobre, sem elevador. A médica e seus auxiliares encontram, ao subir as escadas do prédio, um morador aparentemente louco, ou em meio a surto, que tenta impedir a passagem da equipe de socorro. Há luta, muita dificuldade, mas a médica vai conseguir finalmente chegar ao apartamento da mulher grávida. Para sua absoluta surpresa, a dra. Ewa encontra lá um homem que parece extremamente doente, quase à morte – ela liga para a central de atendimento e pede o envio de mais uma equipe.

* Há o pintor que desenha cuidadosamente a ponte sobre o belo rio que corta a cidade (Jan Nowicki).

* Há o garoto estranho, esquisito, que – parece – foi convencido por alguém a cometer seu primeiro roubo (Lukasz Sikora).

* Há o ex-namorado (Mateusz Kosciukiewicz) que abandonou a namorada instável, depressiva (Ifi Ude), que gosta de um grande cachorro e vai também comer um hot-dog daquele vendedor.

* E há ainda um estranho casal de jovens aí de uns 30 e poucos anos, formado por um operário de obra, que está trabalhando num andaime do lado de fora de um quarto daquele hotel chique em que estão o diretor americano, a bela atriz polonesa e o marido ciumento dela, e uma moça bonita que fez um filme pornô e vai mostrar para o namorado.

O operário é um sujeito bem folgadão; aproveitou-se do fato de seu andaime estar junto de um quarto que naquele momento estava desocupado, entrou no quarto pela janela e deitou-se na cama para dar uma descansada. E aproveitou para chamar a namorada para se encontrar com ele lá.

Quer dizer: isso não é mostrado nem mencionado explicitamente. É o que dá para o espectador imaginar que aconteceu. O que vemos, ali naqueles 11 minutos mostrados no filme, por volta das 17 horas daquele dia, é que o operário está deitado na cama de um quarto de hotel. A namorada chega, eles conversam um pouco sobre o filme de que ela participou. Na conversa, é dito que os dois são alpinistas. Aí ele diz que tem que trabalhar, bota roupa de trabalho, abre a janela e passa do quarto para o andaime, no qual vai passar a trabalhar com um maçarico consertando alguma coisa da fachada do prédio do hotel. A namorada se despede dele dizendo que, lá de baixo, na rua, do ponto de ônibus, vai acenar para ele.

Uma mistura de explicitudes e gigantescas elipses, vazios, lacunas

Essa falta de uma explicação para como e por que os dois namorados se encontraram daquela maneira no quarto do hotel chique é uma das muitas lacunas que o filme parece fazer questão de deixar.

Ao elaborar o roteiro, Jerzy Skolimowski quis (na minha opinião, é óbvio) deixar bem claro que estava contando a história de 11 minutos que acontecem na vida de uma dúzia de pessoas – e não pretendia, de maneira alguma, explicar muito sobre a vida anterior delas.

A vida anterior delas não interessa. Tudo o que interessa são os 11 minutosa, o que acontece aos personagens naqueles 11 minutos.

Por exemplo: ficamos sabendo que o vendedor de hot-dog foi professor. Ele tem que comparecer de tempos em tempos a uma delegacia de polícia, e vemos um policial dizendo a ele para não vender seus sanduíches perto da escola. Depois vemos uma moça chegar perto dele e dizer uma frase um tanto ofensiva.

Dá para imaginar que ele tenha tentado molestar alguma aluna, tenha sido expulso da escola – por isso agora havia virado vendedor de hot-dog. Dá para o espectador inferir que houve algo assim. O filme dá pistas para que o espectador imagine algo assim – mas faz questão de não explicar mais nada. Faz questão de não explicitar nada.

Da mesma forma, não ficaremos sabendo jamais se o motoqueiro já era um amante daquela mulher rica que traí o marido – ou se aquela vez foi a primeira. A indicação é de que já era um caso que vinha rolando – ou o rapaz não estaria tão à vontade cheirando uma carreirona na casa da mulher.

Ficaremos sabendo, sim, que o motoqueiro é filho do vendedor de hot-dog. Os dois se encontram, ainda dentro dos 11 minutos que mudam a vida de todas aquelas pessoas. E é interessante notar que o pai não sabia de nada da vida do filho: ele diz para alguém que o filho agora está com a cabeça no lugar, vai se casar, está numa boa. E nós, espectadores, que não sabemos quase nada, sabemos que o rapaz não tem a cabeça no lugar coisa alguma: droga-se, anda de moto doidão em altíssima velocidade, põe em risco sua vida e a vida dos outros no trânsito.

O roteiro escrito pelo experientíssimo Skolimowski é uma mistura extraordinária de explicitude de algumas coisas e gigantescas elipses, vazios, lacunas em outros pontos.

Vai tudo num crescendo – até a explosão final, que acontece nos últimos cinco minutos de projeção. Um show de técnica, como já disse lá atrás. Um show de talento – e de exagero.

É óbvio que não vou contar o fim do filme – mas creio que não é spoiler dizer o seguinte:

É de uma ironia monstruosa que toda a grande tragédia mostrada nos minutos finais do filme seja provocada por uma ação que, afinal das contas, visava ao bem.

É cheio de excessos, de exageros, de fogos de artifício – mas é muito bom!

O filme foi escolhido para Polônia para representar o país na corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não chegou a figurar entre os indicados pela Academia de Hollywood.

Em festivais, 11 Minutos ganhou 6 prêmios, fora outras 8 indicações. Um dos prêmios foi o European Film Awards para Radoslaw Ochnio, pelo design de som. Eta prêmio justo. A idealização do som do filme é simplesmente espetacular.

Costumo sempre criticar excessos, exageros – e criativóis, fogos de artifício. Quanto mais velho fico, mais gosto – aparentemente, bem ao contrário de Jerzy Skolimowski – de narrativas simples, suaves, diretas, clássicas. Mas não há como resistir ao talento – e 11 Minutos é um filme metido, pretensioso, de um diretor que de fato berra o tempo todo “Vejam como eu sou genial”. Mas só que ele tem razão: ele tem mesmo talento demais, saindo pelo ladrão, e seu filme é uma maravilha.

Anotação em janeiro de 2018

11 Minutos/11 Minut

De Jerzy Skolimowski, Polônia-Irlanda, 2015

Com Richard Dormer (Richard Martin, o diretor americano), Paulina Chapko (Anna Hellman, a atriz), Wojciech Mecwaldowski (o marido de Anna), Andrzej Chyra (o vendedor de hot-dog), Dawid Ogrodnik (o motoboy), Agata Buzek (a alpinista), Piotr Glowacki (o operário de obra, marido da alpinista), Jan Nowicki (o pintor), Mateusz Kosciukiewicz (o ex-namorado), Anna Maria Buczek (a médica Ewa Król), Lukasz Sikora (o garoto), Ifi Ude (a garota com o hot-dog), Grazyna Blecka-Kolska (mulher grávida), Janusz Chabior (homem moribundo), Marta Dabrowska (freira)

Argumento e roteiro Jerzy Skolimowski

Fotografia Mikolaj Lebkowski

Música Pawel Mykietyn

Montagem Agnieszka Glinska

Desenho de som Radoslaw Ochnio

Produção Element Pictures, Skopia Film

Cor, 81 min (1h21)

***1/2

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