Onde Começa o Inferno / Rio Bravo

Nota: ★★★★

Depois de muitos anos de grandes sucessos, tanto Howard Hawks quanto John Wayne haviam enfrentado fracassos, quando se reuniram para fazer Rio Bravo, em 1958.

Hawks tinha feito um daqueles filmes inspirados em histórias bíblicas, ou coisa parecida, que estavam em voga na época, um tal Terra dos Faraós (1955). Tinha sido um fracasso avassalador, mas tão avassalador que o americaníssimo realizador, nascido no interiorzão de Indiana em 1896, havia fugido do seu país e se estabelecido na França – não para fazer filmes, mas para tirar férias.

John Wayne havia decidido não fazer mais westerns, ou no mínimo passar uma temporada sem fazer westerns, depois de ter interpretado Ethan Edwards, aquele poço de cólera e racismo acumulados ao longo de anos, em Rastros de Ódio/The Searchers (1956), de John Ford, o filme que foi e é tido até hoje como um dos melhores westerns de todos os tempos. Fez então cinco filmes não westerns: Asas de Águas, Estradas do Inferno, A Lenda dos Desaparecidos (todos de 1957) e A Vênus de Carne e O Bárbaro e a Geisha (de 1958). Cinco não westerns – e todos os cinco não sucessos.

Vinham então de fracassos, tanto o grande diretor quanto o grande astro.

Reuniram-se para fazer um western, e fizeram um dos melhores westerns da História. Uma beleza de filme, um filmaço, uma obra-prima.

Rio Bravo, no Brasil Onde Começa o Inferno, tem a melhor interpretação de toda a carreira de Dean Martin – o que não chega a ser pouco.

E, de quebra, de sobra, é ainda o filme que revelou ao mundo Angie Dickinson.

Nem precisava, de forma alguma precisava, mas, como estavam ali diante das câmaras dois cantores, um, Dean Martin, já veterano, reconhecido, famoso, e outro, Ricky Nelson, jovenzinho de tudo, adorado pela juventude de então, temos que, lá pelas tantas, o western pesado, dramático, embora cheio aqui e ali de momentos de bom humor, de repente revela uma pegada musical.

Nada estranho. Howard Hawks, bom em todos os gêneros, soube passar com louvor pelo musical. É dele, afinal de contas, Os Homens Preferem as Louras (1953), um dos filmes que catapultaram Marilyn Monroe para o posto mais alto do Olimpo dos grandes astros de cinema.

Uma abertura estupenda, impressionante, sem uma única palavra

Hawks abre o filme com 4 minutos e meio sem uma única fala. É um brilho de abertura.

Enquanto rolam os créditos iniciais, vemos uma caravana de cavaleiros e diversas carroças com mantimentos percorrendo uma trilha.

Corta, e vemos, em plano americano, um Dean Martin sujo, suado, usando um paletó andrajoso, velho, puído, entrando sorrateira, silenciosamente, pela porta de trás de um bar, um daqueles saloons típicos dos westerns. Ele a cada momento passa a mão na boca. Observa com um ar de desejo profundo as pessoas que bebem, a garçonete que passa com uma bandeja cheia de copos.

Um sujeito que está naquele momento junto ao balcão enchendo seu copo de uísque o vê. Os dois se observam de longe. O do balcão ergue o copo, como se estivesse fazendo um brinde, ou oferecendo um gole ao esfarrapado sujo e suarento.

O do balcão dá um sorriso de puro desdém, pega uma moeda e a lança dentro de uma escarradeira que está bem perto do esfarrapado.

Uma moeda dentro de uma escarradeira!

O sujeito ri do esfarrapado, que luta entre o nojo e a vontade desesperada de enfiar a mão na escarradeira e pegar a moeda.

O esfarrapado se abaixa em direção à escarradeira – mas um outro homem chega e a chuta para longe. Os dois se olham. A câmara mostra o rosto de Dude (esse é o nome do personagem de Dean Martin) visto do alto, e mostra o rosto do xerife John T. Chance (o papel de John Wayne) visto de baixo. Plongée e contreplongée, como se a câmara fosse os olhos de um e de outro.

O xerife agora olha para o sujeito sacana que jogou a moeda na escarradeira. Veremos que se chama Joe Burdette (Claude Atkins). Carregando uma grande espingarda com a mão direita, o xerife dá alguns passos na direção de Joe Burdette. Dude, o esfarrapado, pega um pedaço de pau no chão do bar e ataca o xerife, que cai no chão, desmaiado.

Joe ri de Dude – e este então tenta avançar com o pedaço de pau para cima do outro, mas é seguro por dois homens, cada um deles imobilizando um dos braços.

Joe se aproveita que Dude está imobilizado e desfere socos nele – um na barriga, um no rosto, outro na barriga. Quando vai dar o quarto soco, um outro homem segura sua mão. Tipo chega, basta, já deu. Joe então saca o revólver e dá um tiro homem que se atreveu a impedir que ele continuasse socando covardemente o esfarrapado.

O xerife está no chão, sem sentidos. Dude está ajoelhado, contorcendo-se de dor e de falta de álcool – e o sujeito que tentou defendê-lo está morto.

Joe, o sujeito brutal, assassino, sai do bar sorrindo, como se tivesse ouvido uma boa piada.

E entra em outro saloon. Com um gesto, pede bebida ao barman. Está sorvendo um gole de uísque quando o barman vê alguém entrando no bar. Joe se vira. É o xerife, um filete de sangue escorrendo do alto da cabeça, onde Dude o havia atingido com o pedaço de pau, e a espingarda apontada para o assassino.

Quatro minutos e meio de filme, e então John T. Chance diz a primeira fala do filme:

– “Joe, você está preso.”

Um outro sujeito do bar, atrás do xerife, aponta a arma para ele.

O esfarrapado está agora entrando no bar. Rapidissimamente, pega o revólver de um homem que está à sua frente, dá um tiro certeiro que pega o revólver que estava apontado para o xerife.

Este, por sua vez, enfia o cano da espingarda na orelha de Joe.

O xerife e o esfarrapado saem do bar puxando o assassino desacordado, que será trancafiado no xadrez da delegacia.

Estamos com apenas 6 minutos de filme.

Mais do que contar uma história, o filme esmiúça o comportamento dos personagens

Não há muitos westerns que comecem assim, com a tensão já lá no alto, uma série de acontecimentos rápidos, impactantes, impressionantes.

Depois desses 6 primeiros minutos de tom absolutamente maior, virão mais 135. Howard Hawks não teve pressa alguma em contar sua história. E, como é um filme extraordinário, os 141 minutos de duração passam depressa demais.

Mais do que contar uma história, Rio Bravo vai esmiuçar as personalidades, o comportamento daquele grupo de pessoas. Sim, tem uma história sólida, que prende a atenção, e incluirá outros momentos de ação, de combate, de lutas, de tiroteios – mas parece que o principal interesse do veterano realizador é fazer um estudo das personalidades.

Veremos que Dude havia sido, no passado, e por muito tempo, auxiliar do xerife Chance. Era um excelente homem da lei, sujeito de imensa rapidez no saque e pontaria como poucos. Uns dois anos antes da época em que se passa a ação, no entanto, havia se apaixonado perdidamente por uma bela mulher que descera da diligência ali naquela pequenina cidade do Texas. Deixara o emprego por causa dela e saíra da cidade com ela. Voltou uns meses depois. Era evidente que a bela havia dado o fora nele – e então atracou-se com a garrafa e não conseguiu mais largá-la.

Os mexicanos – toda a região, evidentemente, era coalhada de mexicanos – o chamavam de Borrachón. De borracho, bêbado.

Depois dos dois incidentes daquela noite, e da prisão de Joe Burdette, o xerife o acolhe novamente – e Dude faz uma tentativa de permanecer sóbrio.

A luta desesperada dele contra o vício atravessa o filme do começo ao fim. É um dos elementos mais importantes da narrativa.

E Dean Martin soube tirar vantagem da importância do personagem. Teve aí, como esse pobre bêbado que luta feito um gigante contra o vício, a melhor interpretação de sua carreira tão longa e multifacetada.

Conta-se que ele lutou pelo papel com a mesma força com que seu personagem luta contra o desejo de beber. Seu agente procurou Hawks, que marcou então para que Dean Martin se encontrasse com ele no estúdio às 9h30 da manhã seguinte. Martin, cantor de sucesso, membro do Rat Pack de Frank Sinatra, tinha um show em Las Vegas naquela noite, que só terminava depois de meia-noite – mas não pediu para remarcar o horário. Alugou um aviãozinho e às 9h30 estava diante do diretor. Ganhou o papel, para felicidade dos cinéfilos.

Há apenas cinco close-ups em 141 minutos de filme

Há louco para tudo, e então alguém contou: só há, ao longo dos 141 minutos de Rio Bravo, cinco close-ups.

Western, de fato, é um gênero que se dá bem com os planos gerais, as tomadas de amplas das vastas paisagens. Mas neste filme de fato Howard Hawks radicalizou. De fato, todo o seu filme é feito com planos gerais ou no máximo planos americanos, aqueles em que vemos as pessoas da cintura para cima.

Sendo assim, quando aparece um close-up, é porque o realizador de fato quer realçar demais aquele fato que está mostrando.

O IMDb traz a informação de que são cinco close-ups, e os enumera. Joe atirando no bar, na abertura, dando o tiro à queima-roupa que mata o sujeito que quis impedi-lo de continuar esmurrando Dude. Um copo de cerveja no balcão do bar pertencente aos Burdettes, manchado de sangue – o que serve para alertar Dude de que o assassino que eles estão procurando naquele momento está no mezanino acima do bar. As botas do xerife Chance batendo uma contra a outra, num momento de tensão em que o grupo está reunido na delegacia à espera do ataque dos capangas dos Burdettes para libertar Joe. As mãos de Dude tentando enrolar um cigarro de palha e, trêmulas por causa da falta da bebida, não conseguindo. E as mãos de Dude tentando botar de volta na garrafa de uísque a dose que haviam oferecido para ele, mas ele decide, depois de um bom tempo, recusar.

Dos únicos cinco close-ups do filme, dois são para realçar a luta de Dude contra a cachaça. Isso mostra bem a importância que o alcoolismo do personagem tem na narrativa.

É um dos personagens mais marcantes entre todos os alcoólatras que o cinema já mostrou, esse Dude muito bem interpretado por Dean Martin.

Para ajudá-lo contra o grupo de pistoleiros, o xerife tem um bêbado e um velhinho

Joe Burdette, o sujeito cruel, brutal, cínico que é preso pelo xerife John T. Chance, é o irmão caçula de Nathan Burdette (o papel de John Russell), o fazendeiro mais rico e poderoso da região. Nathan é mostrado como um latifundiário impiedoso, que foi comprando terras e mais terras, e, à medida em que foi formando seu império, foi se cercando de capangas para defendê-lo contra qualquer perigo.

A cidadezinha está cheia de capangas de Joe, e o xerife Chance sabe que a qualquer hora virá um ataque daquele bando de pistoleiros profissionais para libertar o irmão mais novo e mais estúpido do magnata.

Do seu lado, para ajudá-lo na guerra contra o monte de profissionais, ele tem – como diz para ele um amigo de passagem pela cidade, Pat Wheeler (o papel de Ward Bond) – apenas um bêbado e um velho aleijado.

O velho aleijado, Stumpy, é o papel de Walter Brennan (1894-1974), um ator tão absolutamente simpático quanto o personagem que interpreta. Stumpy é o braço-direito do delegado Chance há muitos, muitos anos. Faz tudo: cozinha para todos, os da lei e os eventuais fora dela que ficam no xadrez, limpa, arruma, cuida de tudo – inclusive dos presos. É o encarregado de manter Joe Burdette sempre sob suas vistas.

Tem uma admiração canina por Chance, e uma carência absoluta de ter seu trabalho reconhecido por ele. Chance é claro que gosta do bom velhinho que anda capengando, arrastando uma perna, e falando com uma vozinha taquara rachada de Pato Donald – mas, de propósito, está sempre a ralhar com ele.

E o fato é que, para defender a lei na cidade – e, naqueles dias em que se passa a ação do filme, para manter preso Joe Burdette, até a chegada do delegado federal que irá levá-lo para julgamento numa cidade vizinha maior, mais equipada –, o xerife conta apenas com um velhinho aleijado e um bêbado. Um bêbado que não está bebendo, e portanto vê as mãos tremerem e jacarés subindo pelas paredes.

Ricky Nelson garantiu alguns milhões de dólares nas bilheterias

Pat Wheeler, o tal amigo do xerife que define daquela maneira seca, cruel, os seus ajudantes, é, ou deve ser (o filme não esclarece de maneira nítida), um rico comerciante, que transporta mantimentos e outros bens de uma cidade para outra naquele Texas sem fim. A caravana que vemos no iniciozinho do filme, enquanto rolam bem rapidamente os créditos iniciais, é dele. Está ali de passagem , indo entregar sua mercadoria mais adiante.

Propõe-se a ajudar o amigo. Dispõe-se a oferecer para o xerife os préstimos de um rapazinho que contratou, um garoto que, apesar de não ter idade, é um excelente pistoleiro. Chama-se Colorado – o papel de Ricky Nelson.

O nome não significa praticamente nada hoje, mas Ricky Nelson, boa pinta, boa voz, era o ídolo de milhões de garotinhas nos Estados Unidos de fins dos anos 50, pré-invasão britânica. Me assustei agora ao checar o livro US Top 40 Hits da Billboard: Ricky Nelson botou nada menos de 35 canções entre os discos mais vendidos nos Estados, 33 delas entre 1957 e 1964. Eu sabia que ele tinha sido muito famoso, mas de fato não fazia idéia que era tanto.

Consta que Howard Hawks não tinha muita confiança naquele fedelho – em 1959, ano de lançamento do filme, Ricky Nelson tinha 19 anos –, que parecia jovem demais, verde e inexperiente demais, e então deu para o personagem Colorado o menor número de falas possível para um astro cujo nome vinha em terceiro lugar nos créditos, logo após John Wayne e Dean Martin. Mais tarde, no entanto, segundo o IMDb, o veterano realizador seria forçado a admitir que a presença de Ricky Nelson no elenco garantiu uns pares de milhões de dólares para o filme nas bilheterias.

Pat Wheeler, tendo a seu lado o amigo Chance, chama Colorado e diz que gostaria que ele passasse a trabalhar para o xerife. O garoto, porém, recusa o oferecimento, diz que prefere continuar trabalhando para Pat Wheeler. Este fica bastante contrariado, mas Chance leva numa boa: diz que a decisão só demonstrar que o rapaz é esperto, tem bom senso.

Para demonstrar que o cerco está se fechando, que quem ajudar o xerife corre perigo, Nathan Burdette manda um de seus muitos capangas assassinar Pat Wheeler.

Esse capanga é o tal que, tendo levado um tiro de raspão de Dude, vai se esconder no mezanino do bar dos Burdettes. O sangue que sai do ferimento dele cai no copo de cerveja no balcão – o copo que é mostrado num dos cinco close-ups do filme.

Chega à cidade uma bela mulher que está naqueles cartazes de “Procura-se”

Um dos mandamentos de Hollywood é que, para ter boa bilheteria, todo filme deve ter um “female interest”. Uma personagem mulher, a ser interpretada por uma bela atriz, para dar prazer à homarada no escurinho do cinema – ver barbado dar tiro pode ser bom, mas, quando há uma bela atriz na história, aí fica melhor.

E então entra na trama Feathers – a personagem interpretada por Angie Dickinson.

Dito assim, fica parecendo que é forçado, artificial, plastificado. Mas os roteiristas Jules Furthman e Leigh Brackett fizeram um belo trabalho, o diretor Hawks orquestrou tudo muito bem, e Angie Dickinson, bela, atraente e gostosérrima, vive uma personagem absolutamente fascinante.

Feathers é fundamental para Rio Bravo. O filme não seria o que é se não fosse por ela.

A bela mulher chega numa diligência, como havia anos antes chegado aquela que tornaria a vida do pobre Dude um inferno. Hospeda-se no melhor hotel da cidade, propriedade do simpático casal de mexicanos Carlos e Consuela (Pedro Gonzalez-Gonzalez e Estelita Rodriguez), e no salão de bar do próprio hotel se entretém num jogo de cartas de que participam, entre outros, Pat Wheeler e o garotão Colorado.

Num momento em que ela deixa a mesa de jogo e sobe as escadas rumo a seu quarto, o xerife Chance vai atrás. Pede a ela que embarque na próxima diligência: não quer mais vê-la em sua cidade. E expõe o motivo: ela está num daqueles cartazes de procura-se muito usuais no Velho Oeste, ela e um sujeito, wanted por serem trapaceiros, vigaristas. O cartaz a descreve, e Chance lê para ela: o jogador procurado anda com “uma garota de uns 22 anos, 1 metro e 65, boa aparência, cabelo castanho, e usa plumas”.

A moça que está diante do xerife se encaixa à perfeição com a descrição – até porque usa um cordão de plumas. Plumas – feathers.

É ligeiramente machista o fato de que a heroína da história não tenha nome próprio, e passe a ser chamada pelo nome das penas do cordão que usa. Mas só ligeiramente.

O roteiro inverte o clichê e a bela Feathers pergunta: “Como um homem vira xerife?”

Já se disse muito (e eu mesmo já escrevi isso aqui algumas vezes) que o western – um gênero machista, até mesmo compreensivelmente machista, já que trata basicamente de homens fortes vivendo em ambiente hostil e dados a lutas de todos os tipos – costuma em geral dividir as mulheres em dois grandes grupos: as virtuosas, honestas, perfeitas, mães de família, de um lado, e as não tão virtuosas, não tão perfeitas, nada mães de família, em geral cantoras de cabarés, dançarinas ou abertamente profissionais do sexo. De uma maneira simplificada, santas de um lado e putas de outro.

Claro, essa divisão maniqueísta, simplificadora, simplória, vexaminosa, está presente nos westerns de uma maneira geral. Há exceções, como toda regra, e até exceções em um bom número – mas a rigor são exceções. Rio Bravo é uma exceção, e essa Feathers interpretada por Angie Dickinson (nascida em 1931, a atriz estava portanto com 27 anos quando o filme foi rodado) é uma exceção.

Uma das coisas mais comuns, nas histórias de ficção assim como também na vida real, é a pergunta, dirigida às putas de todas as categorias, “como foi que uma moça como você veio parar num lugar desses?” Bob Dylan fez uma bela canção em torno desse chavão, chamada “Sweetheart like you”: “What’s a sweetheart like you doing in a dump like this?”

Os roteiristas Jules Furthman e Leigh Brackett, num momento especialmente feliz, inverteram o clichê. Lá pelas tantas, é Feathers que faz a pergunta a John T. Chance:

– “Como é um homem acaba virando xerife?”

– “O sujeito fica preguiçoso. Fica cansado de vender sua arma em tudo quanto é lugar. Decide vender em um lugar só.

– “Eu diria que você fez uma venda ruim.”

– “Um monte de gente por aqui vai concordar com você.”

E Feathers: – “Mas foi uma venda, e é tarde demais para voltar atrás.”

E então o xerife Chance, com aquele jeitão John Wayne dele, aproveita a brecha: – “Não querendo mudar de assunto, mas… Como uma moça faz para aparecer num cartaz de procura-se?”

– “Ela se casa.”

– “O cartaz diz que ele é um trapaceiro.”

– “Não era naquela época” – e fica claro que ela se refere à época em que se casaram. – “Mas depois a sorte dele mudou.”

O sujeito com quem Feathers se casou, o jogador que depois virou trapaceiro, acabou sendo morto por um jogador enfurecido por ter sido trapaceado. Feathers agora é apenas a viúva de um trapaceiro – e logo ficará claro que, naquela mesa em que ela estava lá no salão do bar do hotel, havia de fato um trapaceiro, e não era ela.

John T. Chance diz a ela que conhece o xerife da cidade que mandou imprimir aquele cartaz. E promete que vai escrever uma carta para o colega, pedindo para ele parar de distribuir a peça.

Mesmo assim, pede encarecidamente à moça que vá embora na diligência seguinte.

É claro, é óbvio, é evidente que ela não vai embora. Até porque, se fosse, o filme perderia muito.

Quase todas as fotos de publicidade do filme mostram as coxas de Angie Dickinson

Angie Dickinson – que, antes de Rio Bravo, já havia feito muitas séries de TV, mas não tivera ainda uma boa oportunidade no cinema – tem 1 metro e 65, exatamente a altura, é claro, que consta no cartaz de procura-se. John Wayne é homem de 1 metro e 93. Quando ficam os dois de pé, o xerife Chance e a bela Feathers, a diferença de tamanho dos dois chega quase a ser chocante. Angie Dickinson terá que ficar no pontinha dos pés para conseguir beijar o Duke, quase na sequência final.

Consta que, aos 51 anos, John Wayne ficou um tanto encabulado por ter que fazer cenas de amor com aquela mocinha de 27 anos e quase 30 centímetros menor que ele.

Bobão.

Mas, se ficou, foi perfeito, porque o xerife John T. Feathers, um solteirão renitente, fica mesmo encabulado diante daquela mulher gostosérrima.

E como é gostosa. Quando, na sequência quase ao final, John T. encontra Feathers vestida para matar (vixe Maria, mil perdões pelo jogo de palavras), é para qualquer um ficar sem jeito. Que coxas, meu Deus do céu e também da terra! Não é à toa que a sequência em que Feathers aparece com as coxas de fora dure não menos que um minuto e meio, mas quase todas fotos de publicidade de Rio Bravo mostrem Angie Dickinson daquele jeito.

Hawks e Wayne entendiam que Rio Bravo era uma resposta a High Noon

A página de Trivia sobre o filme no IMDb traz 75 itens, diversos deles absolutamente gostosos, fascinantes. Nem vou me debruçar sobre aquelas informações porque este texto já está gigantesco demais, e ainda nem procurei outras opiniões, mas é fundamental anotar que volta e meia o IMDb faz paralelos entre Rio Bravo e Matar ou Morrer/High Noon, o filme de Fred Zinnemann que havia sido lançado sete anos anos, em 1952. Várias vezes é dito que Howard Hawks e o próprio John Wayne entendiam que Rio Bravo era uma resposta a High Noon, um contraponto, uma reação.

As citações a High Noon não dizem por que é que Rio Bravo pretendia ser uma resposta, um contraditório a High Noon.

High Noon mostra a procura desesperada do xerife de uma pequena cidade por ajuda para enfrentar um bando de criminosos que está para chegar. Um a um, os homens procurados por ele vão se negando a ajudá-lo. O filme foi interpretado, na época, como uma metáfora sobre o macarthismo que mostrava suas garras em todas as atividades da sociedade americana, mas em especial na área das artes, do entretenimento – os filmes, a música, a televisão. As pessoas de bem do país estavam se recusando a apoiar um homem honesto que pedia ajuda para enfrentar um grande perigo, uma grande ameaça.

Será que Hawks e Wayne teriam desgostado de High Noon por causa dessas suas intenções, digamos, um tanto “vermelhas”, por simpatizar com os artistas que estavam sendo perseguidos por terem demonstrado simpatia pela causa da busca pela igualdade social?

Mas e daí?

As histórias dão quase no mesmo. Em High Noon, Will Kane enfrenta sozinho os bandidos – terá apenas a inesperada ajuda de sua mulher, uma quaker, que a vida inteira imaginou que jamais chegaria perto de uma arma. Neste Rio Bravo, o xerife John T. Chance só pode mesmo contar com a ajuda do bêbado, do aleijado e, depois, finalmente, da mulher que está apaixonada por ele e do rapazinho Colorado.

Ou seja: não vejo em que Rio Bravo conteste High Noon.

O Guide de Jean Tulard o define como um dos três mais belos westerns da História

Maltin dá 3.5 estrelas 4: “Xerife Wayne tenta impedir que um assassino com boas conexões fuja da cadeia da cidade, com apenas um bêbado Dino, a pernuda Angie, o manco Brennan e o lockjawed Ricky para ajudá-lo. A quintessência do western de Hawks, tratado com indulgência na época de seu lançamento, visto agora como um clássico americano; longo, mas muito divertido. Seguido por El Dorado.”

Sim: seguido por El Dorado. É fundamental registrar isso. Oito anos depois de Rio Bravo, Hawks lançou El Dorado, uma espécie assim de variação em torno do mesmo tema deste filme aqui, também com John Wayne e com Robert Mitchum como um xerife que se afunda na bebida e James Caan como um sujeito bem mais novo que se une aos dois veteranos e mais um velho amigo fiel.

Lockjawed. Não achei tradução para esse adjetivo usado por Maltin, que estava bem humorado quando fez o verbete, já que brincou com o fato de Brennan ser manco e Angie ser leggy.

De novo: as coxas de Angie Dickinson aparecem na tela por não mais que 20 segundos – mas elas são absolutamente inesquecíveis. Segundo minhas anotações, vi Onde Começa o Inferno pela primeira vez em 1966, aos 16 anos de idade – e jamais me esqueci das coxas de Angie Dickinson, nem do corpete com cheiro de Angie Dickinson caindo em cima do manco e do bêbado, aí já ex-bêbado, que faziam então uma ronda pela cidade.

Mas por que um contraponto a High Noon?

A prima-donna da crítica americana Pauline Kael não responde à pergunta, e diz que este é um western semi-satírico. “Tolo, mas com sabor”, resume ela. Às vezes dá vontade de mandar dame Kael plantar potatoes.

O magnífico Guide des Films do mestre Jean Tulard dá 4 estrelas ao filme, algo absolutamente, mas absolutamente raro, e faz sobre ele um verbete longo, dos mais longos que já vi na obra.

“Conta-se que Hawks decidiu realizar Rio Bravo em resposta a Le Train Siffera Trois Fois (o trem apitará três vezes, o título em francês de High Noon). Ele não compreendia por que o xerife intrerpretado por Gary Cooper gastava seu tempo pedindo ajuda, já que ele poderia muito bem se virar sozinho. Efetivamente, Chance passa o começo do filme não aceitando a ajuda a não ser de pessoas realmente motivadas. Começa com uma bela e original cena muda que mostra o sofrimento do alcoólatra Dude. Depois o filme fala e rapidamente nos damos conta de que é um dos três mais belos westerns da história do cinema (com La prisionnière du désert e L’ange des maudits) e também um dos mais belos filmes. As cenas de gunfights são concisas até a elipse (maravilhosa a cena do jarro de flores lançada pela janela e, sobretudo, a cena em que Dude entra pela grande porta da frente do salão, ele que costumava entrar pela porta de trás, e descobre o assassino ferido graças ao sangue que cai no copo de cerveja. Mas o verdadeiro tema não é apenas o salvamento de Dude, mas é também, no nosso entendimento, o mais belo filme sobre a sedução, sobre a arte que possui a mulher de fazer crer que ela foi escolhida. Chance viu muito bem os estragos causados a Dude pelo amor, mas desta armadilha aqui ele não sairá mais. Em cena, dois cantores: Dean Martin e Ricky Nelson, o jovem astro do rock’n’roll, criador do ‘Teen-age idol’. Cada um deles interpreta uma canção e os dois cantam uma outra em duo.”

Se é um dos três melhores, não sei. Mas que é um dos melhores, ah, isso é

Sempre digo que os franceses não são apenas os criadores do cinema, e o povo mais apaixonado pelo cinema, como têm também os melhores textos sobre o cinema.

O texto do Guide des Films é excelente, embora, a meu ver, não esclareça direitinho a coisa de o filme ser uma resposta a High Noon, Le Train Siffera Trois Fois. Will Kane não deveria então procurar ajuda, assim como John T. Chance não fica procurando ajuda? É só isso? Sem quaisquer motivações políticas, como cheguei a pensar? Bah…

Mas e isso de dizer que os três melhores westerns de todos os tempos são este aqui e mais La Prisionnière du Désert e L’ange des Maudits, hein? Credo… É bastante assustadora uma afirmação assim tão peremptória.

La Prisionnière du Désert é The Searchers, no Brasil Rastros de Ódio (1956), já citado umas 300 linhas acima. E L’ange de Maudits é Rancho Notorious, no Brasil O Diabo Feito Mulher (1952), de Fritz Lang, com Marlene Dietrich, Arthur Kennedy e Mel Ferrer.

Afirmações assim peremptórias, definitivas – estes são os três melhores westerns de toda a história – são perigosas, assustadoras. E olha que eu sou dado a afirmações peremptórias, definitivas, mas jamais ousaria dizer que três filmes são os melhores e pronto.

Mas dá para dizer perfeitamente que este Rio Bravo é um dos melhores westerns já feitos. Ah, isso dá para dizer. Tranquilamente.

Anotação em fevereiro de 2017

Onde Começa o Inferno/Rio Bravo

De Howard Hawks, EUA, 1959

Com John Wayne (xerife John T. Chance), Dean Martin (Dude), Ricky Nelson (Colorado Ryan), Angie Dickinson (Feathers), Walter Brennan (Stumpy), Ward Bond (Pat Wheeler), John Russell (Nathan Burdette), Pedro Gonzalez-Gonzalez (Carlos Robante), Estelita Rodriguez (Consuela Robante), Claude Akins (Joe Burdette)

Roteiro Jules Furthman e Leigh Brackett

Baseado em um conto de B.H. McCampbell

Fotografia Russell Harlan

Música Dimitri Tiomkin

Montagem Folmar Blangsted

Produção Howard Hawks, Armada Productions, Warner Bros.

Cor, 141 min

R, ****

16 Comentários para “Onde Começa o Inferno / Rio Bravo”

  1. Este é certamente um dos melhores westerns já realizados.
    Eu, por mim, tenho-o em grande consideração, vi-o muitas vezes e sempre com muito prazer.
    O melhor western de sempre? O meu preferido é Once Upon a Time in the West de Sergio Leone.
    Tem para além de tudo o mais uma banda sonora primorosa de Ennio Morricone. Quase que vale a pena ver o filme só para ouvir a música.

  2. Se eu não estou enganada, Hawks refilmou isso como “El Dorado” de 1967, que eu tive chance de ver e rever muitas vezes na TV. Era um dos meus westerns favoritos, sempre visto com prazer, e eu pensava que era um filme basicamente sobre a amizade masculina – a forma como os personagens de Wayne e Mitchum se relacionam nele (Mitchum fazendo o papel que aqui era de Martin).

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