O Salão de Jimmy / Jimmy’s Hall

Nota: ★★★☆

Apenas oito anos após Ventos da Liberdade/The Wind that Shakes the Barley (2006), Palma de Ouro em Cannes e mais um monte de prêmios e indicações, o grande Ken Loach voltou à mesma Irlanda dividida, partida, conflagrada, do período entre a guerra civil de 1922 e a total independência da Grã-Bretanha em 1937, neste Jimmy’s Hall (2014).

O Jimmy do título (Barry Ward) é comunista – assim como Ken Loach permanece um eterno socialista, não importa que caia o Muro de Berlim, que desapareça a União Soviética, que o comunismo seja varrido da Europa e permaneça apenas em paragens exóticas como a Coréia do Norte e Cuba, que a História tenha demonstrado à exaustão que nenhum país sob regime comunista ou socialista se deu bem em termos econômicos ou quaisquer outros.

Jimmy é comunista, e é bom, íntegro, honesto, altruísta. Só quer o bem de seu povo, só faz o bem para os pobres, os oprimidos, os deserdados da sorte, os sem-terra, os sem-trabalho, os sem-teto. Nem precisava, mas Jimmy também é bonito, tem uma bela figura.

Os amigos de Jimmy são todos como ele.

Do outro lado, lutando contra Jimmy e seus amigos, estão os maus – e os maus são horrorosos, são medievais, são da idade da pedra ainda sequer lascada. O padre Sheridan (Jim Norton) – todo mundo sabe que na Irlanda a religião é importantíssima, e a imensa maioria é católica fervorosa – é uma besta fera, uma besta quadrada, que prega que fora da Santa Madre Igreja não há salvação, só pecado, concupiscência, Satanás. Que dançar, só se for dança tradicional irlandesa, no salão paroquial – se for música americana, tocada nos discos de jazz que Jimmy trouxe ao voltar depois de dez anos de exílio em Nova York, aí é pecado mortal. Que aprender – poesia, prosa, música, dança, esporte, desenho, carpintaria, qualquer coisa, qualquer matéria –, só se for sob a supervisão da Santa Madre. Leigo, em especial leigo pobre, autodidata, ensinar gente pobre qualquer coisa é coisa do demônio. Não pode de jeito nenhum.

O padre Sheridan é até bonzinho, comparado com O’Keefe (Brían F. O’Byrne), o chefão ali do Condado de Leitrim, interiorzão da Irlanda rural. O’Keefe tem os maus bofes de um coronel do sertão nordestino do começo do século XX, de um líder da Ku-Klux-Klan no Sul Profundo da época em que os brancos penduravam pretos nas árvores como se fossem strange fruits – como diria a loucamente doída canção imortalizada por Billie Holiday.

Tudo em que Ken Loach toca vira ouro cinematográfico

Bons que são bons demais, maus que são maus demais. Hum… Maniqueísmo, aquela coisa que reduz, que simplifica, que não vê sequer um tom de cinza entre o preto e o branco, aquela brutalidade com a qual a arte não tem condições de conviver.

Então este Jimmy’s Hall só pode ser uma porcaria.

Pois é. Tudo indicaria nessa direção. A questão é que Jimmy’s Hall é um Ken Loach. E Ken Loach é um gigante, um monstro. É um dos maiores realizadores destes primeiros 110 anos de cinema, e possivelmente o maior ainda em atuação hoje em dia.

Ken Loach (nascido na pequena cidade inglesa de Nuneaton, em 1936) é, antes de tudo, um humanista, um artista que tem profundo respeito e admiração pelas pessoas – um tanto como o italiano Frank Capra e o checo Milos Forman, que emigraram para os Estados Unidos porque ali era o país em que se construíam os filmes, como alguns séculos antes de Cristo era para o Egito das pirâmides que os engenheiros gostariam de emigrar. Como o francês Jean Renoir, que passou pela terra das pirâmides cinematográficas mas quis voltar para seu país tão logo foi possível, passado o horror do nazismo.

Tudo em que Ken Loach toca – assim como acontecia com Capra e Renoir, como acontece ainda com Forman – vira ouro cinematográfico.

Cenas aceleradas de Nova York. Depois, cenas lentíssimas do interior da Irlanda

Jimmy existiu. Chamava-se James Gralton, e nasceu em 1886, no Condado de Leitrim, interiorzão da Irlanda. Os créditos finais de Jimmy’s Hall citam vários livros sobre ele, ou nos quais se fala dele. Foi uma figura importante naqueles anos turbulentos da Irlanda que se libertava do jugo britânico.

Já bem no iniciozinho do filme, um letreiro informa: “Uma história inspirada na vida e nos tempos de Jimmy Gralton e em um salão no interior da Irlanda”.

Os créditos iniciais rolam enquanto o espectador vai vendo filmes jornalísticos, cenas reais de Nova York nos anos 30, os anos da Grande Depressão, que se seguiram ao crash da Bolsa de Nova York em 1929.

A montagem dos trechos de filmes históricos é acelerada, assim como os compassos de jazz da época. É tudo rápido, frenético, no fundo da tela, enquanto vamos vendo os nomes dos atores e depois da equipe técnica – nenhum ator de fama internacional, aliás – rolando sem pressa. O ritmo das imagens é muito mais rápido que o dos créditos.

E aí, terminados os créditos, há uma brutal mudança – de tudo. Cessados os filmes feitos na época, nos anos 30, em preto-e-branco, exibidos com montagem frenética, vemos agora o início do filme propriamente dito – numa paisagem de verde forte, amplo, dois homens estão num carro de boi que avança como que a um quilômetro por hora.

É um choque: com apenas um corte na sala de montagem, passamos da movimentação frenética de Nova York para a calma eterna do campo irlandês.

Jimmy, recém-chegado de volta, após dez anos de exílio na América, está indo para a casa de sua mãe, Alice (Aileen Henry), a casa em que nasceu, levado no carro de boi do grande amigo Mossie (Francis Magee).

Os dois vão conversando bem devagar, em ritmo de campo irlandês, o contrário do ritmo nova-iorquino das imagens anteriores, enquanto vários letreiros vão explicando para o espectador a situação, o contexto histórico.

Creio que dá para afirmar que o texto que lemos nesse início de filme saiu da pena, perdão, do processador de texto de Paul Laverty, que assina sozinho o roteiro deste Jimmy’s Hall, assim como assinou diversos, diversos, diversos dos filmes do mestre Loach.

Transcrevo:

“Entre 1919 e 1921, o povo da Irlanda lutou pela sua independência do Império Britânico. Em 1922 houve uma guerra civil entre aqueles que aceitavam o Tratado imposto pelos britânicos e aqueles que resistiam a ele. Os pró-Tratado, apoiados pelos britânicos, venceram a guerra civil. Espalhou-se grande amargura pelo país. Dez anos depois, uma mudança de governo prometia um futuro mais pacífico.”

E um último letreiro antes de a ação deslanchar dá o onde e o quando: “Condado de Leitrim, Irlanda, 1932”.

Qundo Jimmy volta, a mulher amada está casada, com dois filhos

A cena em que Jimmy desce do carro de boi e vai se encontrar com a maravilhosa mãe que não via havia dez anos é um esplendor.

Logo depois dela há uma sequência de festa na casa de Alice Gralton – todos os amigos da família haviam ido dar as boas vindas ao sujeito que tinha uma incrível liderança ali, e que havia sido obrigado a fugir das autoridades pró-Grã-Bretanha indo para o outro lado do oceano.

A câmara passeia entre a pequena multidão reunida na casa rural dos Gralton – e, de alguma forma, obriga o espectador a prestar atenção àquela mulher de cabelos encaracolados que está por ali servindo as pessoas, meio como se fosse da casa, como se fosse a melhor amiga da mãe de Jimmy.

O roteiro – como sempre escorreito, límpido, de Paul Laverty – não esconde nada. Ao contrário. Mostra bem depressa.

A mulher de cabelos encaracolados, Oonagh (o papel de Simone Kirby), was once a true love of his. Perdão, misturei as canções com o filme. Oonagh havia sido – na verdade ainda era – o grande amor de Jimmy. Haverá flashbacks para a época de antes do desterro, 1922, quando ele liderou a implantação do grande salão que dá o nome do filme – o grande salão comunitário em que as pessoas boas e pobres do condado se reuniam para aprender com as que sabiam mais, na mais absoluta e maravilhosa experiência de irmandade, de solidariedade que pode haver no mundo.

E, nos flashbacks em que se mostra que o comunista Jimmy havia liderado ali na Irlanda rural um soviete perfeito – todo de paz, amor, irmandade, solidariedade, sem sinal de disputa de poder, guerra pelo poder, Stálin, e portanto degredo, Sibéria, Gulag –, mostra-se também que, dez anos mais jovens, Jimmy e Oonagh se amavam maravilhosamente. Mas, na hora em que ele só viu uma saída, a emigração para o país distante, ela se negou a segui-lo. E então, quando ele voltou, agora, na época em que se passa a ação principal, 1932, ele tem fios brancos nas têmporas e ela já teve dois filhos com Fintan (Michael Sheridan), com quem se casou porque as mulheres se casam e têm filhos, mesmo aquelas que tiveram um grande amor por alguém que aconteceu de ter ido embora.

(As mulheres daquela época e daquele lugar, bem entendido.)

Quem, em sã consciência, pode ser contra a alegria, a solidariedade?

Creio que, em Jimmy’s Hall, o eterno socialista Ken Loach quis acalentar o sonho de que seria possível fazer uma sociedade baseada não na competição, mas na solidariedade. Não na ambição desenfreada, na vontade de acumular, mas no sentimento santo de dividir, distribuir. Não na perversa, assassina, nojenta convivência de milionários com miseráveis, mas na esperança de que a bondade pudesse ser maior que a mesquinharia, e todos os irmãos pudessem aproveitar o leite e o mel que estão aí para quem sabe como viver com os outros, e não contra os outros.

Creio que é exatamente isso que Ken Loach quer nos mostrar. Que é possível. Que seria possível. Que poderia ter sido possível.

Ele fala através do discurso de Jimmy – aí não sei se transcrito do que Jimmy teria discursado de verdade, ou se inteiramente criado pelo roteirista Paul Laverty:

– “Precisamos retomar o controle sobre nossas vidas. Trabalhar para o necessário, não para a avareza.”

Ah, aí vai uma rima interna: “Work for need, not for greed.”

– “E não apenas sobreviver como um cão, mas viver. E celebrar. E dançar, cantar, como seres humanos livres.”

Quem, em sã consciência, poderia ser contra isso? Quem, a não ser pessoas horrorosas, padres que representam o Mal Em Si, chefões políticos fascistas filhos da mãe, poderiam ser contra a Alegria, a Solidariedade, a Fraternidade?

Em 2014, 58 anos depois de o Império Comunista ter sufocado a rebelião húngara que pedia liberdade, 46 anos depois de o Império Comunista ter enviado os tanques do Pacto de Varsóvia para sepultar de vez aquela idéia maluca do povo da Checoslováquia de praticar um tal de “socialismo democrático”, Ken Loach insiste e não desiste: o grande sonho pode dar certo.

Ou então, no mínimo, no mínimo, poderia dar certo. Poderia ter dado certo.

Se não tivesse havido Stálin. Se Stálin não tivesse mandado matar aqueles milhões de pessoas. Se, talvez, em vez de Stálin tivesse Trotski herdado de Lênin a tarefa de conduzir a Revolução – ele, que era um democrata, e não um ditador como Stálin, que jamais teve apreço por qualquer tipo de algo parecido com democracia.

Seria Ken Loach um trotskista?

Não sei. Mas sei é que, beirando os 80 anos, Ken Loach se recusa a abandonar o sonho.

Uma sequência de beleza estonteante no salão quase sem luz

Lá pelo meio de Jimmy’s Hall, há uma sequência de beleza estonteante, de emocionar um frade de pedra.

O salão de Jimmy já foi reaberto. O padre Sheridan, o chefão O’Keefe e sua turma estudam como fazer para destruí-lo, mas naquele momento o salão está funcionando, fazendo as pessoas dançarem, cantarem, aprenderem, serem felizes.

É finalzinho de dia. Jimmy e Oonagh entram no salão – estão absolutamente sozinhos.

É preciso enfatizar: desde que ele voltou da América, os dois se vêem constantemente. Ela dá aula de música no salão. Amam-se, como se não tivessem passado dez anos de distância – mas não são amantes. Ela é casada, os dois respeitam o casamento.

Então, quando estão os dois absolutamente sozinhos no salão, ela pede que ele tranque a porta.

Pede também que ele se vire, não olhe – e se esconde atrás da porta aberta de um armário.

O espectador já sabe o que ela vai fazer: vai pôr o vestido lindo que Jimmy havia trazido para ela de Nova York.

O salão está quase escuro – por uma janela deixada aberta, entra só um pouco da luz do dia que está acabando.

O diretor de fotografia Robbie Ryan usou algum tipo de filtro que faz a cena parecer quase preto-e-branco, pela ausência de luz forte.

Oonagh se mostra então com o belo vestido para Jimmy e para a câmara de Robbie Ryan e Ken Loach.

Os dois se aproximam – dez anos de tesão reprimida.

Não – ao contrário do que o espectador poderia achar, não se atracam, não tiram a roupa, sequer se beijam.

Dançam. Sem música, mas dançam no meio do salão.

É de fazer chorar um frade de pedra.

Depois do filme, o governo irlandês reabilitou Jimmy Gralton

Jimmy’s Hall foi admitido para a mostra competitiva do Festival de Cannes. Ken Loach é um veterano frequentador de Cannes, Berlim e Veneza, os três mais importantes festivais de cinema do mundo. Seus filmes foram exibidos em nada menos que 16 edições do Festival de Cannes!

No entanto, daquela vez seu filme não levou prêmio.

Obteve, no entanto, reconhecimento ainda mais importante que uma láurea em Cannes. Em 2015, um ano após o lançamento do filme, foi lançada uma campanha pedindo que o governo irlandês rescindisse a ordem de extradição de Jimmy Gralton e apresentasse um pedido de desculpas formal à sua família. Em setembro de 2016, o presidente irlandês Michael D. Higgins atendeu ao pedido, classificou como “errada e indefensável” a ordem de extradição, e inaugurou um memorial ao ativista comunista em Effrinagh, Condado de Leitrim, no lugar onde havia o antigo salão.

Fiquei muito contente quando verifiquei que este Jimmy’s Hall será o décimo filme de Ken Loach a entrar neste site. Que beleza: tenho visto bons filmes…

Eis aí os outros que já foram comentados aqui:

Chuva de Pedras / Raining Stones (1993),

Terra e Liberdade / Land and Freedom (1995),

Uma Canção para Carla / Carla’s Song (1996),

Apenas um Beijo / Just a Kiss ou Ae Fond Kiss (2004),

Ventos da Liberdade / The Wind that Shakes the Barley (2006),

Mundo Livre / It’s a Free World… (2007),

À Procura de Eric / Looking for Eric (2009),

Rota Irlandesa / Route Irish (2010),

A Parte dos Anjos / The Angel’s Share (2012)

Anotação em novembro de 2016

O Salão de Jimmy/Jimmy’s Hall

De Ken Loach, Inglaterra-Irlanda-França, 2014

Com Barry Ward (Jimmy), Simone Kirby (Oonagh), Francis Magee (Mossie), Jim Norton (padre Sheridan), Aileen Henry (Alice, a mãe de Jimmy), Andrew Scott (padre Seamus), Aisling Franciosi (Marie O’Keefe), Brían F. O’Byrne (O’Keefe), Stella McGirl (Stella), Sorcha Fox (Molly), Martin Lucey (Dessie), Mikel Murfi (Tommy), Michael Sheridan (Fintan, o marido de Oonagh), Shane O’Brien (Finn), Denise Gough (Tess), Karl Geary (Seán), Conor McDermottroe (Doherty), John Cronogue (Séamus Clarke)

Roteiro Paul Laverty

Fotografia Robbie Ryan

Música George Fenton

Montagem Jonathan Morris

Casting Kahleen Crawford

Produção Sixteen Films, Element Pictures, Why Not Productions, Wild Bunch, British Film Institute, Film4, Irish Film Board.

Cor, 109 min

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