O Mestre dos Gênios / Genius

Nota: ★★★★

Várias, muitas, numerosas vezes o cinema, a arte das imagens em movimento, prestou homenagens à literatura, a arte das palavras. Eu diria que Genius, a co-produção EUA-Inglaterra de 2016, no Brasil O Mestre dos Gênios, é uma das mais belas de todas.

Para qualquer pessoa que goste de bom cinema, é um belo filme.

Para qualquer pessoa que tenha especial ligação com as palavras, que de alguma maneira viva delas, ou por elas, é um filme obrigatório, uma pérola especial, inesquecível.

Como pertenço às duas categorias – dos que gostam de bom cinema, e dos que vivem das palavras –, Genius me deixou absolutamente acachapado.

O filme abre com big close-ups de um texto que está sendo lido por alguém que interfere no que está lendo. A caneta do sujeito que não é o autor do texto, mas que tem o poder de dar opiniões sobre ele, vai mexendo nas letras, nas palavras, nas frases, nos parágrafos.

Algumas palavras, expressões, conjuntos de frases vão sendo riscados, cortados fora. Em alguns trechos, a caneta faz marcações nas margens. Aqui e ali, uma interrogação.

O homem que corrige textos, que corta, marca, pede aqui e ali alguma explicação, indica que ali é necessária alguma alteração que só pode ser feita pelo autor, o homem que, enfim, edita o texto se chama Max Perkins, e é o protagonistas da história, o genius do título original, o mestre dos gênios do título brasileiro.

Interpretado pelo sempre excelente Colin Firth, não é uma invenção de um escritor – existiu mesmo. William Maxwell Evarts Perkins viveu 62 anos, entre 1884 e 1947. Foi editor de livros na Charles Scribner’s Sons, de Nova York. Descobriu F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, e editou os livros deles.

Editou – como o espectador vê na abertura do filme.

Os textos de F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway que nós lemos, que o mundo inteiro leu, de Este Lado do Paraíso (1920) a O Grande Gatsby (1925), de O Sol Também se Levanta (1926) a Adeus às Armas (1929), passaram pelo lápis de Max Perkins. Scott e Ernest tiveram frases cortadas por Max Perkins. Reescreveram trechos por recomendação de Max Perkins.

Até mesmo nos títulos dos livros Max Perkins mexia. F. Scott Fitzgerald queria o título de Trimáquio em West End para o seu terceiro romance. Max Perkins sugeriu que ele pensasse em um outro título – e é por isso que um dos hoje grandes clássicos da literatura de língua inglesa, que deu origem a filmes em 1947, 1974 e 2013, se chamou O Grande Gatsby.

Fitzgerald e Hemingway aparecem, mas o filme se concentra em Thomas Wolfe

A mudança do título para The Great Gatsby é citada, um tanto en passant, lá pela metade dos fascinantes 104 minutos do filme. Ernest Hemingway aparece em uma sequência, interpretado por Dominic West, recebendo a visita de Max Perkins enquanto fazia uma pescaria em Key West, na Flórida. F. Scott Fitzgerald aparece em três sequências importantes, fundamentais para a trama, muito bem interpretado por Guy Pearce.

Mas eles, Fitzgerald e Hemingway, não são os personagens centrais da história. O roteiro (de John Logan, baseado na biografia de Max Perkins escrita por A. Scott Berg) se concentrou no relacionamento entre o editor e o jovem Thomas Wolfe, um escritor que acabou ficando menos conhecido que os dois monstros sagrados citados anteriormente.

E aqui, de uma vez, é preciso fazer a distinção. O escritor que aparece no filme, o segundo personagem mais importante da história, é Thomas Clayton Wolfe (1900-1938), nascido na Carolina do Norte, autor de Look Homeward, Angel (1929) e Of Time and the River (1935). Nada a ver com o Tom Wolfe do novo jornalismo, autor de A Fogueira das Vaidades, Os Eleitos/The Right Stuff, Um Homem por Inteiro. Este Tom Wolfe nosso contemporâneo, Thomas Kennerly Wolfe, Jr., também é sulista, mas da Virginia, onde nasceu em 1931 – um ano depois da morte de seu quase homônimo.

Thomas Wolfe – uma beleza de interpretação de Jude Law – aparece já bem no inicinho do filme, de pé, numa calçada de Manhattan, fumando sem parar, observando de longe o prédio em que funciona, conforme anuncia grande letreiro na parede lateral, a Charles Scribner’s Sons – Editores e Livreiros, fundada em 1846.

Ele já havia mandado os originais de seu primeiro romance para todas as editoras de Nova York. A Scribner’s, naquela época uma editora de imenso prestígio, em grande parte por ter entre seus autores exatamente Fitzgerald e Hemingway, era a última tentativa. (Um letreiro informa que estamos em 1929.)

Max Perkins recebe de um colega os originais do romance ao qual Thomas Wolfe havia dado o título de O Lost. Um calhamaço imenso.

Começa a ler imediatamente.

Continua a ler no trem, a caminho de casa, ao final do dia de trabalho – veremos que Max, como tanta gente que trabalha em Nova York, vive upstate, ao Norte, fora da metrópole. Mora numa belíssima propriedade, com a mulher, Louise (o papel da sempre boa Laura Linney), e as cinco filhas.

Wolfe tem a certeza de seu livro será rejeitado também na Scribner’s

Uma figuraça, o tal Max Perkins, o homem que fez Fitzgerald e Hemingway mexerem em seus textos. Entre as manias que tinha estava a de jamais tirar o chapéu. Usava o chapéu na sua sala na Scribner’s, usava o chapéu em casa. Jantava com a família, aquele bando de seis mulheres em volta dele, de chapéu.

O filme mostra como Max trata os escritores. Ele não impõe nada, não manda, não dá ordens – faz sugestões. Realça sempre que a obra é do autor, é o autor que decide, a última palavra é sempre do autor. Ele apenas faz sugestões.

Como está sempre certo, como as sugestões são sempre preciosas, os autores acatam todas.

No jantar com a família no primeiro dia em que levou para casa os originais de O Lost (“o” interjeição, exclamação, o que em português seria Ó Perdido, ou Ó Perda), continua a ler à mesa.

Louise demonstra já estar acostumada com aquilo.

Quando o filme está aí com uns 10, 12 minutos, o jovem Thomas Wolfe vai à sala de Max Perkins na Scribner’s.

É um sujeito cheio de vida, um vulcão em atividade, um touro; fala (num sotaque sulista arretado) sem parar, aos borbotões, usando frases longas, cheias de imagens literárias. E fala sempre alto, um pouco mais alto do que seria o tom normal.

Entra na sala e dana a falar de Max Perkins, o homem que editou os livros de F. Scott Fitzgerald e de Ernest Hemingway (edições de capa dura daqueles livros citados aí acima podem ser vistos nas estantes que lotam a sala de trabalho do editor da Scribner’s). Fala, fala, fala, fala – e no fim encaminha a conversa no sentido de dizer que entende perfeitamente que seu original seja recusado também ali.

Max Perkins, voz bem baixa, pausadamente, diz, num momento em que a Niágara de palavras pára para que o jovem Tom respire: – “Senhor Wolfe, a Scribner’s está interessada em publicar seu livro. Eis aqui um cheque de adiantamento de US$ 500,00.”

O jovem Tom Wolfe gosta tanto do editor que sua amante fica com ciúmes

É um Tom Wolfe levitando aquele que entra no seu apartamento e conta para Aline Bernstein que a Scribner’s aceitou publicar seu livro.

Aline Bernstein – interpretada por Nicole Kidman – é uma mulher fascinante, como o espectador verá a partir daquele momento. É rica – o marido é homem das finanças, trabalha em Wall Street. Poderia ficar flanando, como seguramente faziam 99,9% das mulheres de seu meio naquela época, mas preferia ter sua vida, trabalhar, exercer uma atividade: é cenógrafa no mundo do teatro da Broadway.

Quando conheceu Tom Wolfe, apaixonou-se perdidamente.

O filme não diz explicitamente, mas deixa bastante claro que Aline sustenta o amante. Ama o sujeito, acredita no talento dele, tem dinheiro de sobra – custeia a vida dele.

Enquanto Tom trabalha junto com Max na edição do manuscrito – cortando, reescrevendo, refazendo trechos, cortando mais, melhorando –, Aline vai desenvolvendo um ciúme crescente do editor por quem o amante tem crescente paixão intelectual, imensa admiração.

Num encontro com Louise, demonstra esse ciúme. Mulher madura, inteligente, cultivada, tranquila, Louise conta para Aline que Max sempre desejou ter um filho.

O quadro fica bastante claro. Max Perkins de fato adotou Tom Wolfe como se fosse um filho – um grande amigo que poderia ser seu filho. Percebeu o potencial dele, dedicou imenso esforço para trabalhar com ele, podar os excessos de seu texto.

O Tom Wolfe desenhado no filme é de fato um homem de excessos. Um exagerado, como na canção de Cazuza. Um exagerado em tudo. Depois que seu primeiro livro é publicado, ainda em 1929, com o novo título de Look Homeward, Angel, com belíssima recepção da crítica e do público, o rapaz leva para Max na Scribner’s os originais de seu segundo romance – diversos blocos de papel, dezenas de pacotes de folhas datilografadas e manuscritas. Uma trolha absurda que daria um livro de 5 mil páginas, algo inimaginável.

Boa parte da narrativa de Genius se dá enquanto Max tenta domar o vulcão Tom Wolfe, obrigando-o a cortar, cortar, cortar, cortar, cortar.

O filme mostra Fitzgerald como um homem de caráter. Frágil – mas de caráter

Na primeira das três sequências em que F. Scott Fitzgerald aparece, na pele desse bom e versátil ator que é Guy Pearce, ele está descrevendo o horror que é o hospício público em que teve que internar Zelda. Scott não força a barra, mas fica claro que ele gostaria muito se a Scribner’s pudesse dar algum adiantamento para ele – embora ele estivesse, naquele momento, em uma crise de falta de criatividade, sem nenhum projeto de romance em vista.

Fitzgerald nunca foi um autor prolixo. Verdade que morreu jovem demais, em 1940, com ridículos 44 anos de idade. Em termos de quantidade, foi exatamente o oposto de Tom Wolfe, que escrevia sem parar. Deixou apenas 5 romances, um deles inacabado, e algumas dezenas de contos.

Max diz a Fitzgerald que a Scribner’s não tem condições de dar a ele mais um adiantamento – mas, em seguida, preenche um cheque dele mesmo, pessoa física, que entrega ao jovem escritor.

A segunda sequência em que o autor de Suave é a Noite aparece se passa na ampla residência de Max Perkins. Zelda (interpretada por Vanessa Kirby) havia tido alta de uma das várias internações em hospitais psiquiátricos, e estava, naturalmente, muito fragilizada. Vemos que os donos da casa, Max e Louise, a tratam com extremo cuidado.

Estão jantando, os quatro, quando Tom Wolfe chega, sem ter avisado antes – e bêbado. Percebemos perfeitamente a preocupação de Max, a tensão de Louise.

Tom começa a ofender Fitzgerald.

Max se levanta e o põe para fora.

Do lado de fora da casa, têm uma discussão duríssima.

Num filme em tudo por tudo extraordinário, adorei, em especial, ver como o roteiro de John Logan e toda a encenação feita pelo diretor Michael Grandage mostram F. Scott Fitzgerald como um homem de caráter. Adorei isso – porque F. Scott Fitzgerald foi meu primeiro grande ídolo da literatura. Devorei todos os seus quatro romances e o livro de contos quando era adolescente. Bebi F. Scott Fitzgerald de canudinho, direto para o coração.

Não era prolixo, bem ao contrário de Tom Wolfe, repito. Não era um homem forte, bem ao contrário de seu conterrâneo, contemporâneo, amigo e ao mesmo tempo desafeto Hemingway. Era um sujeito frágil, e o alcoolismo o consumiu. Mas era um homem de caráter, como bem mostra o filme.

Os americanos são interpretados por atores ingleses e australianos

O americano de Nova York Max Perkins é interpretado pelo inglês Colin Firth. O americano do interior da Carolina do Norte Thomas Wolfe é feito pelo inglês Jude Law. O americano de St. Paul, Minnesota, F. Scott Fitzgerald é interpretado pelo inglês criado na Austrália Guy Pearce. A americana de Nova York Aline Bernstein é feita pela australiana de criação Nicole Kidman. O americaníssimo Ernest Hemingway é interpretado pelo inglês Dominic West.

E até mesmo a americana do Alabama Zelda Sayre, depois Zelda Fitzgerald, é interpretada pela jovem atriz inglesa Vanessa Kirby, a que faz a princesa Margaret na série The Crown.

De americano, entre os principais atores do filme, só há mesmo Laura Linney, que interpreta Louise Perkins.

Achei esse detalhe fascinante.

Mas não chega a ser algo inesperado, esquisito: Genius é uma co-produção EUA-Inglaterra, e boa parte das filmagens aconteceu na Inglaterra.

Michael Grandage, o diretor, é também inglês. É um homem de teatro, basicamente. No cinema, fez 12 filmes como ator, e seu trabalho mais conhecido parece ser As Loucuras do Rei George, de 1994.

Este Genius foi seu primeiro filme como realizador.

Estreou muito bem. É um filme de narrativa sólida, firme, madura, sem invencionices, sem fogos de artifício, e um elenco de grandes atores em admiráveis atuações, todos eles, sem exceção.

Só não consegui entender muito bem por que Grandage e seu diretor de fotografia, Ben Davis, optaram por fazer a imensa maior parte das tomadas do filme bem escuras. É tudo muito escuro – impressionante.

Mas isso é um detalhinho mínimo.

Um belo filme.

Anotação em fevereiro de 2017

O Mestre dos Gênios/Genius

De Michael Grandage, EUA-Inglaterra, 2016.

Com Colin Firth (Max Perkins), Jude Law (Thomas Wolfe), Nicole Kidman (Aline Bernstein), Laura Linney (Louise Perkins), Guy Pearce (F. Scott Fitzgerald), Dominic West (Ernest Hemingway), Vanessa Kirby (Zelda Fitzgerald), Gillian Hanna (Julia Wolfe, a mãe de Thomasd), Angela Ashton (Bertha Perkins), Eve Bracken (Zippy Perkins), Katya Watson (Jane Perkins), Lorna Doherty (Peggy Perkins), Makenna McBrierty (Nancy Perkins)

Roteiro John Logan

Baseado no livro Max Perkins: Editor of Genius, de A. Scott Berg

Fotografia Ben Davis

Música Adam Cork

Montagem Chris Dickens

Casting Jina Jay

Produção Desert Wolf Productions, Michael Grandage Company, Riverstone Pictures, Pinewood Pictures.

Cor, 104 min

****

13 Comentários para “O Mestre dos Gênios / Genius”

  1. Esse de fato é um ótimo filme, também me agradou muito. Ótimo o seu texto, Sergio, disse tudo (tudo e mais um pouco: eu realmente havia confundido os dois “Tom Wolfe”! Pensei que o escritor do filme era o autor do “Fogueira das Vaidades”! Grato pelo esclarecimento!). Um abraço.

  2. Eu amei tanto este filme. E, engraçado, o papel do editor, um homem comum que faz coisas extraordinárias, é tão a descrição dos papéis do Tom Hanks que mesmo sabendo que era Colin Firth, ali, passei mais da metade do filme vendo o Tom.

  3. Olá Sérgio!
    Belíssimo filme! Aspectos técnicos, fotografia, elenco, roteiro, diálogos, que pérola!
    Cruzei, por acaso, com o filme na televisão portuguesa. Despretensiosamente, deparei com esse filmaço!

  4. Teve momentos do filme que eu fiquei literalmente assim (🤨🤨🤨 essa relação tá meio estranha ein) mas o filme enfatizou para não deixar a gente sonhar com a simples (não tão simples) frase “o Max sempre quis ter um filho” dando a entender que se a gente tá pensando em algo que não fosse isso, era melhor parar naquele momento (mas vamos lá. Aquela carta no final do filme foi ridícula, eu quase tive um treco). Devo admitir que eu parei e tive que expulsar minha mente de fanfiqueira da minha visão geral do filme, mas pode ser culpa do Colin e Jude que tiveram uma química incrível nesse filme, as cenas do corta isso, corta aquilo, para de acrescentar 80 páginas apenas para falar da vida do médico e do pai dele, foram totalmente. Incríveis! e os dois simplesmente deram uma surra de atuações, seus gestos, olhares e maneirismos diziam tudo e eu tava maravilhada bebendo cada segundo como se eu fosse morrer ali mesmo.

    Amei, recomendo de olhos fechados.

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