Assumindo a Direção / Learning to Drive

Nota: ★★★☆

A catalã Isabel Coixet é uma realizadora de filmes sobre pessoas comuns, gente como a gente, e seus relacionamentos com os outros – afetivos, passionais, familiares. Ela fala sobre a imensa maior parte da humanidade, e não sobre os temas da maioria dos filmes de hoje: bandidos, ladrões, assassinos, traficantes, super-heróis ou seres de alguma outra dimensão, diferente desta em que vivemos o eventual leitor e eu.

Além de preferir o mundo real, ela ainda tem outra qualidade: é talentosa.

Neste Learning to Drive, no Brasil Assumindo a Direção, uma co-produção Inglaterra-EUA de 2014, ela fala sobre o encontro de duas pessoas absolutamente diferentes uma da outra, o início de uma amizade improvável.

E nisso ela faz lembrar o colega francês Jean Becker, que persegue esse tema da amizade entre díspares, o aprendizado com a pessoa que é diferente, o crescimento a partir daí, e falou dele em belos, sensíveis filmes: Conversas com Meu Jardineiro/Dialogue avec mon Jardinier (2007), o encontro entre um homem de confortável situação financeira, mas em crise no casamento e com a vida na cidade grande, e um antigo colega de escola no interior, um jardineiro; Minhas Tardes com Margueritte/La Tête en Friche (2010), sobre o encontro entre um homem inculto, quase iletrado, com uma senhora nonagenária educada, culta; Sejam Muito Bem-Vindos/Bienvenue Parmi Nous (2012), sobre o encontro entre um pintor idoso que tem tudo o que se pode esperar – família, mulher, dinheiro, conforto – mas está profundamente infeliz, e uma jovem de 15 anos linda, cheia de energia, mas pouco educada, assediada pelo padrasto, enxotada pela mãe, sem ter para onde ir, sem rumo, sem nada.

Wendy e Darwan são muito estudados. Fora isso, são totalmente díspares

Diferentemente dessas três duplas de gente quase antípoda dos filmes de Jean Becker, não há um gigantesco fosso separando os dois personagens centrais de Learning to Drive em termos de cultura, conhecimento, educação: os dois são letrados, estudados, intelectualizados.

Mas, quanto a praticamente todo o resto, há um Grand Canyon, um Amazonas, um Saara separando Wendy (o papel de Patricia Clarkson) e Darwan (o de Ben Kingsley). Ela é Wasp – branca, anglo-saxã e de família protestante. Ele é um imigrante que veio da Índia, mas mesmo na Índia pertencia a uma minoria, e uma minoria rebelde, em geral perseguida ou com problemas com o status quo, os sikhs.

Ela tem muito conforto material: mora numa excelente sobrado em Manhattan, o umbigo da capital do mundo. Ele mora longe, num apartamento abaixo do nível do chão em Queens, com um jovem sobrinho, Preet (Avi Nash) e mais dois conterrâneos, imigrantes ilegais.

Ela tem uma profissão e uma posição social de respeito: é crítica de literatura, respeitada, com programa no rádio e tudo o mais. Embora tenha sido professor universitário em sua terra, ele, no país mais rico do mundo, que o aceitou como asilado político e lhe deu a nacionalidade americana, trabalha em jornada dupla como motorista de táxi e instrutor de auto-escola.

Quando por absoluto acaso se encontram, estão em momentos diferentes de suas vidas. Darwan, o imigrante de posição social humilde, está tranquilo, tem muita autoconfiança, garra, capacidade de trabalho, cabeça no lugar. Wendy, a Wasp classe média alta, está perdendo o marido – e, nesse processo, está perdendo também boa parte da razão, da dignidade e do auto-respeito.

O indiano trabalha pesado, duro, e poupa para dar vida melhor aos filhos que virão

É Darwan que o espectador vê primeiro. Ele está no banco de carona de um carro da auto-escola, e o rapaz bem jovem ao volante já está pronto para fazer o exame e tirar a carteira de motorista, segundo a avaliação do professor.

O primeiro diálogo já define claramente muito da personalidade do imigrante, um sujeito que admira o comportamento correto, as atitudes polidas, as maneiras educadas, o fazer certo na vida:

Darwan: – “Diminua. Estacione aqui. Mr. Yampolsky, você seguiu todas as regras. Você vai passar no exame amanhã, tenho certeza disso. E depois que você tiver sua licença, suspeito que você vai comprar o maior e mais veloz carro, e jogar todas as regras pela janela. Não é uma piada. Lembre-se: dirigir é uma liberdade. Desejo que você desfrute bem de todo tipo de liberdade… Desde que não machuque ninguém. Você me promete?

O garotão: – “OK, Mr. Singh.”

Darwan: – “Mr. Singh Tur.”

Em poucos minutos, com maestria, o roteiro (escrito por Sarah Kernochan diretamente para o filme de Isabel Coixet) nos apresenta alguns fatos básicos da vida de Darwan. Vemos que ele deixa o trabalho como professor de auto-escola para dirigir o táxi de uma cooperativa, e, ao final da segunda jornada de trabalho, vai para casa, descansar, para estar preparado no dia seguinte para mais uma jornada dupla.

É daquele tipo sério, que trabalha pesado, sem distrações, sem vícios, para juntar dinheiro e garantir uma vida melhor para os filhos que algum dia hão de vir.

Entra no táxi de Darwan um casal que está se desfazendo naquele momento

É de noite – um sujeito chama o táxi, Darwan pára, o sujeito entra e manda que ele toque em frente. Uma mulher chega perto do táxi, bate na janela, chama o sujeito – que manda o motorista arrancar, seguir em frente, largar a mulher quase histérica falando sozinha. Darwan não obedece ao passageiro – a mulher entra no carro. Só aí o motorista dá a partida.

E Darwan vai ouvindo a briga no banco de trás.

Wendy, quase histérica mesmo, reclama que Ted (o papel de Jake Weber) planejou tudo: só contou para ela quando estavam em um lugar público, e ela não poderia iniciar uma briga.

Ted – é bastante óbvio – tinha acabado de contar para a esposa que estava apaixonado e queria se separar.

Wendy, como tantas pessoas numa situação assim, se desespera, joga fora a dignidade, faz perguntas idiotas, afirmações cretinas (Por quê? Por quê? O que foi que eu fiz? Ela é mais jovem? Ela é mais bonita? Vocês já transaram? Por quê? Você ainda me ama! Eu sei que você ainda me ama! Eu não posso viver sem você!).

Darwan ouve tudo, às vezes dá uma olhadinha no retrovisor.

Ted dá o endereço dela, o que era deles até aquela manhã – um endereço elegante, Uptown, 110th Street, se não me engano –, joga umas notas no banco dianteiro, pede para o motorista parar um instantinho, e foge da cena dramática, amarga, patética, dolorosa demais.

Uma mulher que não sabe dirigir, um instrutor de auto-escola

Quando Wendy desce do táxi, diante de sua bela casa em Uptown Manhattan, não pude deixar de me perguntar: ué, mas como vai ser para eles se encontrarem novamente?

Nada mais fácil, né? Wendy esquece no banco de trás do táxi um grande envelope. Ao chegar à sede da empresa para entregar o carro, Darwan vê o envelope, pega.

No dia seguinte, ou no outro, vai pela segunda vez à casa de Wendy, para entregar o envelope.

Wendy, embora confusa, perdida, nos dias seguintes ao fim do casamento – ela, é claro, não acreditava que era o fim –, percebe que aquele indiano de turbante usa um carro de auto-escola. Como ela tinha pensado, pela primeira vez na vida, em aprender a dirigir, pede que ele deixe um cartão.

Ao contrário da imensa maior parte das pessoas de sua classe social, no mundo inteiro, Wendy, uma mulher aí na faixa dos 50 e tantos anos, jamais havia tido vontade de obter uma licença para dirigir. Como ela mesma diz, mora numa cidade desenvolvida, com imensa oferta de metrôs, ônibus e táxis – e além de tudo o marido, como quase todo mundo, dirigia. Então jamais tinha pensado no assunto.

Mas Tasha, sua única filha (o papel de Grace Gummer, a filha de Meryl Streep que tem tido a coragem de se aventurar no mesmo metiê que a mãe gênio), está morando no interior do interior de Vermont, lá no distante Norte, num lugar onde não há metrô, nem trens, nem tantos ônibus assim.

E então, a partir de uma conversa com Tasha, pela primeira vez na vida Wendy pensa na possibilidade de aprender a dirigir carro, para poder visitar a filha.

E assim a história bolada por Sarah Kernochan passa a ter uma justificativa para que os dois personagens se encontrem, convivam, e, aos poucos, passem a gostar da companhia do outro.

São personagens simpáticos, interessantes, e os atores são excecpcionais

São dois seres humanos bem interessantes, esses Wendy e Darwan, que por acaso, ou mero descaso, como diz a canção, se encontram no coração da cidade mais cosmopolita do mundo, a capital do Planeta Terra, já que, como diz o poeta, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida.

Uma Wasp que se recusa a aceitar que o marido agora cascou fora de vez, que a trocou por uma garotinha da metade da idade dela. Um sikh que está importando naquele exato momento uma noiva da sua aldeia perdida no meio do Punjab que ele jamais viu antes, e que foi escolhida pela irmã dele.

De fato, são figuras interessantes, simpáticas, essa Wendy e esse Darwan – pessoas em quase tudo absolutamente díspares, opostas, antípodas, mas que são, as duas, atraentes, que atraem a simpatia do espectador.

São personagens gostosos – e que ficam ainda mais fascinantes porque são interpretados por esses dois atores fabulosos, Ben Kingsley e Patricia Clarkson.

Ben Kingsley, nascido em Scarborough, a cidade de Yorkshire cantada naquela canção folclórica extraordinária, “Scarborough Fair”, está acostumado a falar com sotaque indiano. Diacho, o cara fez o papel de Mahatma Gandhi na superprodução de Richard Attenborough de 1982. Ganhou o Oscar pelo papel. Depois teria mais três indicações ao prêmio mais badalado que existe, dois deles na categoria de coadjuvante (Bugsy, 1991, e Sexy Beast, 2002), e um de novo na categoria de ator principal (Casa de Areia e Névoa, 2003, em que interpreta um iraniano que havia sido oficial importante no regime do xá Reza Pahlavi e agora é um imigrante nos Estados Unidos).

Não é de se admirar muito que Ben Kingsley fale tão perfeitamente com o sotaque que quiser. Em primeiro lugar, porque é um ator treinado, estudado, dos melhores que há. Em segundo lugar, porque afinal de contas conhece bem o sotaque dos indianos: o pai, nascido no Quênia, é descendente de indianos.

Isabel Coixet, Ben Kingsley e Patricia Clarkson levaram 6 anos para se reencontrar

A catalã Isabel Coixet está acostumada a trabalhar com atores das mais diferentes nacionalidades.

Como alguns de seus colegas mais especiais, é uma realizadora acostumada a trabalhar sempre com pessoas de quem se torna amiga, próxima.

Em 2008, dirigiu – também nos Estados Unidos – Fatal/Elegy, uma história sobre o encontro explosivo entre um professor que se tem na mais altíssima conta e uma aluna que é sensualidade pura. A aluna era interpretada por Penélope Cruz. O professor, pelo velho e bom Ben Kingsley. O elenco tinha ainda – meu Deus do céu e também da terra – Dennis Hopper, Peter Sarsgaard e Patricia Clarkson.

Durante as filmagens de Fatal/Elegy, Patricia Clarkson mostrou a Isabel Coixet e a Ben Kingsley um roteiro sobre o encontro entre uma americana da gema e um imigrante indiano.

Levaram seis anos para se encontrarem novamente os três para realizar este Learning to Drive. Sete anos, para quem já passou dos 40, dos 50, não é tanto tempo assim.

Gostaria de falar ainda, nessa área de registros objetivos, de dois pontos interessantes, fascinantes.

O primeiro: quem interpreta Jasleen, a noiva encomendada por Darwan à sua irmã, é Sarita Choudhury, essa atriz fantástica – como eu falei no texto sobre Negócio das Arábias/A Hologram for the King (2016), “mulher de presença forte na tela, a mil milhas do padrão tradicional de beleza, um tipo fascinante. E de carreira tão interessante quanto sua beleza distante das Barbies da vida”.

Duas pessoas assinam a trilha sonora.

Há melodias, temas tipicamente ocidentais – e há outros abertamente orientais, indianos, que fazem lembrar o que a gente conhece de música indiana, Ravi Shankar, e o que George Harrisson aprendeu com ele e divulgou para o mundo.

A trilha sonora é assinada por Dhani Harrison e Paul Hicks. Dhani é o filho de George com sua mulher Olivia.

Segundo o filme, não se deve jamais trair os sagrados laços do matrimônio

Quanto mais velho eu fico, mais acho que uma eventual infidelidade não é motivo para acabar com uma união. Que as uniões, quando são boas, produtivas, fecundas, positivas, são muito, muito maiores do que os efeitos de um casinho aqui e ali.

Não digo isso em defesa própria, de forma alguma. Sou hoje um perfeito monogâmico, malgré mon passé um pouco promíscuo.

Mas ao longo de toda a vida vim me convencendo cada vez mais de que uma os bons casamentos são muito mais resistentes, e não se destroem por uma puladinha para fora da cerca.

No entanto, achei simpaticamente engraçada a forma com que a roteirista Sarah Kernochan, com a óbvia aprovação da realizadora Isabel Coixet, define as coisas: se der vontade de duas pessoas terem um caso, mas uma delas estiver atada pelos laços do sagrado matrimônio a uma outra, então deve-se recuar. Recusar a oportunidade, a chance. Fechar-se à possibilidade.

Como assim – permitir experimentar algo que pode ser muitíssimo prazeroso?

Não! De jeito algum! Nem pensar! Nunca jamais em tempo algum deve o ser humano trair o marido/mulher.

É assim que deve ser, segundo mostra o filme.

Não é a forma como eu vejo a vida. Mas o filme defende a forma oposta com tanta simpatia que não há como não gostar dele.

Anotação em maio de 2017

Assumindo a Direção/Learning to Drive

De Isabel Coixet, Inglaterra-EUA, 2014

Com Patricia Clarkson (Wendy), Ben Kingsley (Darwan)

e Jake Weber (Ted, o ex-marido de Wendy), Sarita Choudhury (Jasleen, a noiva de Darwan), Grace Gummer (Tasha, a filha de Wendy), Avi Nash (Preet, o sobrinho de Darwan), Samantha Bee (Debbie), Matt Salinger (Peter), John Hodgman (o vendedor de carros), Michael Mantell (o pai de Wendy), Daniela Lavender (Mata), Gina Jarrin (Paige), Rajika Puri       (Rasbir, a irmã de Darwan)

Argumento e roteiro Sarah Kernochan

Fotografia Manel Ruiz

Música Dhani Harrison e Paul Hicks

Montagem Keith Reamer e Thelma Schoonmaker

Produção Universal, Broad Green Pictures, Lavender Pictures, Core Pictures

Cor, 90 min (1h30).

***

4 Comentários para “Assumindo a Direção / Learning to Drive”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *