A Acusada / Lucia de B.

Nota: ★★★☆

Ao contrário de tantos filmes que fazem questão de trazer, logo de cara, a frase “baseado em fatos reais”, Lucia de B., no Brasil A Acusada, não usa essa afirmação. Mas não esconde, de forma alguma, que é, sim, a recriação no cinema de uma história real – uma dura, trágica, apavorante história real, acontecida há pouco tempo na civilizadíssima Holanda.

O caso teve ampla repercussão não apenas na Holanda, mas em todo o mundo – e não poderia ser de outra forma. Uma enfermeira, a Lucia de Berk do título, foi acusada de ter matado sete pacientes – bebês e idosos – e de ter tentado matar outras cinco pessoas. Não havia prova cabal de qualquer um dos crimes. A acusação se baseou em indícios vagos, em alegações de colegas de trabalho de Lucia – várias delas expressando uma visão preconceituosa sobre o comportamento dela – e num perfil psicológico dela traçada pela promotoria.

Foi um erro judiciário crasso, absurdo, inaceitável na republiqueta mais miserável do planeta – que passa a ter uma dimensão muitíssimo maior por ter acontecido em um dos países mais civilizados, mais ricos, mais avançados do mundo.

Lucia de Berk sempre afirmou ser inocente.

O filme – dirigido por uma mulher, a holandesa Paula van der Oest, com roteiro de Moniek Kramer e Tijs van Marle – consegue ter, ao mesmo tempo, embora isso possa parecer paradoxal, um tom de documentário e de uma apaixonada defesa da personagem central.

Essa dualidade, essa convivência entre o estilo documental frio e o tom caloroso, emocionado e emocionante, me impressionou muito.

A direção de Paula van der Oest – autora de 26 obras, entre curtas, longas e episódios de séries para a TV – é absolutamente segura. A narrativa é clara, linear, sem invencionices; letreiros vão informando para o espectador as datas dos acontecimentos – começa em 8 de setembro de 2001, e vai até 14 de abril de 2010.

E, para conseguir esse resultado que alterna e mistura frieza documental com emoção, é fundamental a interpretação da atriz que faz Lucia, Ariane Schluter. Meu Deus, que interpretação!

O filme faz com que o espectador se simpatize com aquela pobre mulher

Ao longo da primeira meia hora de filme, em especial, o roteiro vai apresentando para o espectador, paralelamente, simultaneamente, duas mulheres, em tudo por tudo diferentes uma da outra: Lucia de Berk e Judith Jansen, a assistente de promotoria que a rigor será a principal responsável por montar a acusação contra a enfermeira.

Lucia é uma mulher mais velha, de uns 40 e tantos anos, talvez 50. Judith (interpretada por Sallie Harmsen, na foto abaixo) está no esplendor dos 28, talvez 30 anos. Lucia não é especialmente bela, sua aparência não tem glamour algum. Judith é uma moça muito bonita, veste-se bem, com bom gosto.

Lucia é uma mulher sofrida, tem um passado pesado, traumático, Judith é jovial. Lucia vem de uma família pobre, humilde, e despedaçada, Judith teve meios para frequentar boas escolas e formou-se em Direito com especial destaque. Veremos que escreveu uma tese – “Perfis e encadeamento argumentativo” – aprovada com todo louvor.

Lucia sofreu abuso na adolescência: a mãe a obrigou a se prostituir. Judith viveu num mar de rosas e começa a carreira na promotoria com conhecimento, garra e ambição.

O filme nos mostra essas duas mulheres tão díspares com a óbvia intenção de nos fazer simpatizar com Lucia, uma vítima, e antipatizar com Judith, que aparece na vida da outra para ser seu carrasco.

E funciona. Duvido que alguém consiga não simpatizar com aquela mulher que obviamente é inocente.

Tudo é podre, falho: o hospital, a polícia, a promotoria, os juízes…

O filme não esconde que toma partido. Demonstra, mostra, escancara para o espectador que Lucia é inocente, e tudo conspira contra ela, tudo é podre, falho: o hospital, a polícia, a promotoria, os juízes, o sistema judiciário todo, a imprensa – que rapidamente transforma a acusada numa megera, bruxa, “o anjo da morte”. Até os guardas dos presídios são cruéis. As enfermeiras depõem contra Lucia dizendo que ela se julga superior, dá ordens às colegas, é fria, insensível – e além de tudo foi puta.

O que o espectador vê é uma mulher trabalhadora, esforçada, que trata os bebês com muito carinho, que fica mais tempo no trabalho que todas as colegas, que assume para si as responsabilidades maiores – ela trabalha, quando a narrativa começa, no berçário de um grande hospital de Haia, em que há bebês bem doentes.

A câmara mostra o caso que irá deflagrar as acusações contra Lucia. O bebê, Timo, nasceu com diversos problemas graves. Numa determinada noite, Lucia percebe que ele está piorando, e pede que as colegas chamem a médica encarregada. A médica chega reclamando por ter sido interrompida durante um concerto; mal examina o menino, e escreve na ficha que ele está estável.

Pouco depois, os monitores alertam para a situação do coração do bebê; Lucia faz todo esforço para reanimar o coração – mas o menino morre.

E não era a primeira vez que um bebê morria com Lucia num  momento em que Lucia estava presente no berçário.

A jovem assistente da promotoria caça todos os indícios possíveis contra Lucia

A princípio, a promotora Ernestine Johansson (Annet Malherbe) não vê elementos suficientes para levar o caso a julgamento. É Judith, cheia de garra e vontade de se demonstrar competente, que vai atrás de indícios, de algum testemunho que demonstre que Lucia tem problemas de caráter, de comportamento.

Conseguem autorização para revistar o apartamento em que ela vive com o namorado, Peter (Bas Keijzer). Encontram diversos livros policiais e de terror, e o diário de Lucia, em que ela fala de seus medos, pavores, obsessões.

É Judith que junta uma série de indícios soltos, que a rigor não provam coisa alguma, e convence a promotora Ernestine de que têm um bom caso.

Mas será a própria Judith que, numa reviravolta completamente inesperada, passará a duvidar da acusação que ela mesma montou. E, a partir de um certo ponto, começará a caçar provas, evidências da inocência de Lucia.

Judith Jansen é um personagem fictício, um compósito de pessoas reais

Como filme, como relato dramático, ficou muito bom. A jovem assistente da promotoria, cheia de garra, ambiciosa, monta um caso contra uma inocente. Mas ela não é uma pessoa de mau caráter, uma irresponsável. Percebe que há falhas no próprio caso que montou – e aí muda inteiramente de lado.

A questão é que Judith Jansen nunca existiu. É um personagem fictício. É, na verdade, a rigor, o que chamam de compósito – um personagem fictício, mas baseado em pessoas que existiram de fato. O resultado da reunião de características de personagens reais em um único personagem, para melhor efeito dramático.

Ao final do filme, naqueles letreiros muito comuns nas obras que relatam histórias reais, contando o que aconteceu com os personagens após a época focalizada na narrativa, é dito que Metta de Noon e Tom Dersken lutaram durante anos para provar a inocência de Lucia de Berk.

Dá para depreender, assim, que Judith Jansen é um compósito dessas duas pessoas reais, Metta de Noon e Tom Dersken.

Acho absolutamente válido criar um personagem que faça as vezes de pessoas reais – desde, é claro, que se preserve o sentido da história real. É um artifício usado em muitos filmes – praticamente todos os que recontam histórias que de fato aconteceram. Se o eventual leitor reparar bem, é absolutamente comum que nos créditos finais haja o aviso: algumas situações, nomes e personagens foram modificados para atender aos propósitos de dramatização.

O IMDb informa que Metta de Noo deu entrevistas demonstrando que ficou desapontado ao ver o filme. Disse que o caso todo foi muito mais complexo do que mostra o filme.

O próprio colaborador do IMDb que escreveu essa nota pondera que, infelizmente, um filme tem apenas 90 minutos para contar uma história, e é natural que alguns dos elementos de um caso complexo sejam perdidos para que a história seja contada de uma maneira dramaticamente satisfatória.

Na Variety, a tradicionalíssima publicação sobre cinema dos Estados Unidos, o crítico Peter Debruge escreveu em seu belo texto sobre o filme: “Jansen é uma invenção dos realizadores, mas uma invenção inteligente, que provê um arco narrativo.”

Lucia de B. foi o escolhido pelas autoridades da Holanda para representar o país na disputa por uma das indicações ao Oscar de 2015 e, segundo o IMDb, ficou na lista dos 9 finalistas, mas não chegou a estar entre os 5 finalmente indicados.

Corajosa atitude das autoridades da Holanda. Porque o espectador de Lucia de B. fica absolutamente chocado com os absurdos erros das instituições holandesas envolvidas nesse caso escandaloso.

Anotação em abril de 2017

A Acusada/Lucia de B.

De Paula van der Oest, Holanda-Suécia, 2014

Com Ariane Schluter (Lucia de Berk), Sallie Harmsen (Judith Jansen)

e Annet Malherbe (Ernestine Johansson, a promotora), Fedja van Huêt (Quirijn Herzberg, o advogado), Barry Atsma (Jaap van Hoensbroeck, o diretor do hospital), Marcel Musters (detetive Henk Bos), Maartje Remmers (Antoinette, assistente da promotoria), Bas Keijzer (Peter, o namorado de Lucia), Isis Cabolet (Fabiënne, a filha de Lucia), Marwan Kenzari (detetive Ron Leeflang), Amanda Ooms (Jenny, a colega de cela), Jochum ten Haaf (o patologista)

Roteiro Moniek Kramer e Tijs van Marle

Fotografia Guido van Gennep

Música Adam Nordén

Montagem Marcel Wijninga

Produção Rinkel Film,

Nederlandse Christelijke Radio-Vereniging (NCRV), Living Stone, Filmkreatörerna Prah och Björk, Lucil Film.

Cor, 97 min (1h37min)

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Título nos EUA: Accused.

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