O Último Amor de Mr. Morgan / Mr. Morgan’s Last Love

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Nota: ★★★☆

O Último Amor de Mr. Morgan é um desses filmes absolutamente multinacionais. O personagem central, o Mr. Morgan do título, é um americano que vive em Paris, embora não fale mais que uma ou duas palavras em francês – e é interpretado por um inglês, Michael Caine, esse monumento do cinema.

É uma co-produção Alemanha-Bélgica-EUA-França, inteiramente passado na França mas filmado nesses três países europeus, com um elenco que reúne americanos e franceses. Os diálogos são em inglês – a maior parte deles, já que o protagonista, como tantos americanos, faz questão de ser monoglota – e em francês.

Tem um viés feminino: são mulheres a autora do romance em que o filme se baseia e a diretora. As duas juntas – respectivamente a francesa Françoise Dorner e a alemã Sandra Nettelbeck – assinam o roteiro. O viés, além de feminino, é maduro: a atriz, roteirista e escritora Françoise Dorner é de 1949, e a realizadora Sandra Nettebeck, bem mais nova do que ela, é de 1966.

Como é obra de mulheres, é delicado, sensível, sério.

É um drama delicado, sensível, sério sobre perda, velhice, morte digna, encontros, voltar a ter prazer na vida e, sobretudo, vida em família, relações pais-filhos.

Após perder a mulher, o protagonista vira um zumbi, um morto-vivo

Na primeira sequência do filme, Joan Morgan (Jane Alexander, na foto abaixo) acabou de morrer, e Matthew, o marido (o papel de Michael Caine, que estava com 80 anos quando o filme foi lançado, em 2013), se recusa a sair de perto do corpo dela, a deixar que os estranhos que entraram em seu apartamento cheguem perto dela.

Depois da morte de Joan, Matthew vira uma espécie de zumbi, morto-vivo. Anda, até sai de casa, caminha pelas ruas – mas na verdade não está lá, não está em lugar nenhum.

Às vezes conversa com Joan. Vê Joan ao lado dele, em casa, num banco de parque, em qualquer lugar.

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Um encontro fortuito, num ônibus, com uma garotinha que tem bem menos da metade da idade dele, vai começar a mudar aquele estado quase catatônico em que ele havia mergulhado.

Ele estava de pé no ônibus; há uma freada, e ele perde o equilíbrio, avança sobre um outro homem, que se irrita, reclama. A garota de cabelos louros que estava por perto se dirige a ele, ajuda-o a se reequilibrar. Percebe que ele não fala francês, e se dirige a ele em bom inglês. Desce do ônibus com ele, se oferece para caminhar com ele até a casa dele.

Chama-se Pauline, Pauline Laubie, e é interpretada por Clémence Poésy.

Não conhecia a jovem atriz. Nasceu em 1982 – estava, portanto, 31 anos quando o filme foi lançado. Estudou no Conservatoire National Supérieur d’Art Dramatique, começou a carreira em séries de TV a partir de 1999, já tinha quase 40 títulos em sua filmografia em dezembro de 2015, inclusive três títulos da série Harry Potter entre 2005 e 2011. Já até interpretou Natasha Rostova numa versão em minissérie da TV francesa de Guerra e Paz, de Liev Tolstói.

O filho acha que a jovem francesa quer sugar dinheiro do pai

O velho viúvo quase zumbi vai encontrar a jovem Pauline de novo no ônibus. Ela o convida então para ir até o lugar onde ela dá aula de danças de salão – inclusive para idosos.

Pauline é uma moça sozinha na vida – o pai morreu cedo, da mãe não se tem notícia. Não tem família. Tem uns namoros, mas eles não duram muito.

Vão ficando amigos, ela e o velho americano. Ela vai fazendo com o coração dele descongele. Vai aprendendo coisas com ele, enfim uma figura paterna a que possa se apegar.

Várias vezes ele diz a ela a mesma frase: “There’s a crack in everything, that’s how the light gets in”. Há uma fenda em tudo, é assim que a luz penetra. Não identifiquei a frase – só depois, lendo sobre o filme no IMDb, vi que é um verso da canção “Anthem”, de Leonard Cohen, do disco The Future, de 1992. Está no estribilho.

Foto: Pauline (Clémence Poésy)

Não há absolutamente nada de imoral, tortuoso, aproveitador no afeto que ela sente pelo velho – mas, quando o filho dele, Miles (Justin Kirk), chega a Paris com a irmã Karen (Gillian Anderson) para visitar o pai, após ele ter tentado o suicídio com barbitúricos, e vê a garota abraçada a Matthew na cama de hospital, a imagem que se forma imediatamente é de uma jovem que está ali para sugar dinheiro.

Matthew foi professor universitário de Filosofia; chegou a dar aulas em Princeton, uma das mais conceituadas universidades do mundo. Tem um belo patrimônio – o apartamento em que vive em Saint-Germain-de –Prés é imenso, fantástico, e há também uma bela casa em Saint-Malo, na Bretanha.

Karen ficará bem pouco em Paris, mas Miles permanece lá. Sequer tenta esconder sua hostilidade pela moça que carimba de interesseira, usurpadora.

A relação entre Matthew e os filhos nunca foi boa. Ele conta isso com toda clareza para Pauline: só teve filhos porque Joan queria, e nunca foi um bom pai, um pai presente, afetuoso.

Uma interpretação extraordinária de Michael Caine

Michael Caine está extraordinário neste filme em que seu personagem aparece em praticamente todas as tomadas. Ele consegue expressar toda a dor, o desencanto, o vazio de um velho que perde a companhia da vida inteira e, junto com ela, qualquer razão para continuar vivendo – e depois, à medida em que a amizade com aquela garota que caiu de pára-quedas em sua vida vai se aprofundando, ele mostra no rosto como a alegria está voltando ao personagem. É fantástico.

E essa moça Clémence Poésy enfrenta a dura batalha de contracenar com esse imenso ator com maestria.

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Sandra Nettelbeck dirige com absoluta segurança e total maturidade. Sua narrativa é absolutamente sem firulas, sem fogos de artifício. A presença da morta Joan em várias cenas é mostrada de forma tão tranquila que o espectador a vê com imensa naturalidade.

Em um site americano chamado Blu-ray.com, Michael Reuben escreveu uma longa e interessante crítica sobre o filme. Transcrevo o início:

“Sir Michael Caine completou 80 anos em 2013. Com dois prêmios da Academia e um currículo cheio de projetos de prestígio (e uns poucos embaraços), a maioria das pessoas estaria diminuindo o ritmo, mas Caine tem feito o posto. Além de permanecer um membro do grupo de atores preferidos do diretor Christopher Nolan (seu último projeto, Interstellar, estava em fase de pós-produção em dezembro de 2013), e de contribuir com sua voz para animações (como Gnomeo & Juliet), Caine continua aceitando papéis que exploram os vários aspectos de um tema que os filmes comerciais quase abandonaram e que a maioria dos atores tenta evitar: a velhice. Conhecido como uma pessoa que gosta de reuniões sociais e diversão, que nunca teve qualquer problema por ter sucesso, Caine parece especialmente atraído por personagens de temperamento oposto: homens que não gostam do mundo a seu redor, como o soldado aposentado em Harry Brown, ou que se arrepende da vida que escolheu, como o Clarence, o mágico cheio de culpas de Is Anybody There?, ou aqueles que se perguntam por que ainda estão vivos, como Matthew Morgan em Last Love.

“Originalmente intitulado Mr. Morgan’s Last Love, Last Love foi escrito e dirigido pela cineasta alemã Sandra Nettelbeck, mais conhecida nos Estados Unidos pelo seu drama romântico Mostly Martha, de 2001 (no Brasil, Simplesmente Marta), que foi refeito em inglês como No Reservations (2007). Nettelbeck adaptou uma novela francesa intitulada La Doucer Assassine, de Françoise Dorner, mas ela escreveu o roteiro expressamente para Caine, o que significava que o personagem central não poderia mais ser francês. Ainda assim, em vez de fazer com que Mr. Morgan fosse um inglês, ela o fez americano, e construiu toda uma série de piadas sobre como ele vivia em Paris por anos sem nunca ter se incomodado em aprender a língua. A falta de comunicação aumenta a sensação de isolamento de Mr. Morgan.”

Uma gozação sobre a mania dos americanos de serem monoglotas

É interessante saber que a diretora e co-roteirista escreveu o roteiro já pensando em Michael Caine – assim como é fascinante a observação do crítico americano de que o ator gosta de personagens diferentes do que ele é na vida real.

Eu me perguntei por que Sandra Nettelbeck escolheu fazer de Mr. Morgan um americano, em vez de um inglês como é Michael Caine. Mary deu uma resposta um tanto irônica, mas nem por isso distante da realidade: um inglês não viveria vários anos na França sem ao menos tentar aprender francês – já para um americano isso parece normal.

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Há uma sequência, bem no início do filme, em que Matthew Morgan vai a uma lanchonete e pede determinado sanduíche com tal e tal ingrediente – com o picles separado –, tudo em inglês. A garçonete diz que não compreende o que ele está dizendo, e uma colega dela, que sabe inglês, a socorre. Diz para a colega que conhece a figura, ele sempre vem à lanchonete às quartas-feiras e sempre pede exatamente o mesmo sanduíche. E aí ela se dirige a ele em francês, sabendo não vai mesmo entender o que ela diz:

– “Por que vocês americanos vão para os outros países e sempre acham que todo mundo tem que falar inglês? Não seja tão arrogante. Faça um esforço!”

Ela diz isso sorrindo para ele, e ele agradece.

É o único momento mais leve, quase cômico, do filme.

Gostaria de registrar, para concluir, que não é bem verdade a afirmação feita pelo crítico Michael Reuben, de que o cinemão comercial abandonou o tema velhice. Nos últimos anos, o tema tem aparecido em diversos filmes – até criei, neste site, a tag Velhice. E lá estão, por exemplo, Um Fim de Semana em Paris/Le Week-End, Os Belos Dias/Les Beaux Jours, O Casamento do Ano/The Big Wedding (todos de 2013), Sejam Muito Bem-Vindos/Bienvenue Parmi Nous, Eu, Anna / I, Anna, Amigos Inseparáveis/Stand Up Guys, O Quarteto/Quartet (de 2012), E Se Vivêssemos Todos Juntos?/Et Si On Vivait Tous Ensemble?O Exótico Hotel Marigold/The Best Exotic Marigold Hotel (de 2011), RED – Aposentados e Perigosos / RED (de 2010) – sendo que os dois últimos tiveram continuações, o que por si só já é uma demonstração que o tema velhice não é mais um veneno contra a boa bilheteria.

De todos esses citados aí, creio que este Mr. Morgan’s Last Love é o mais triste.

Anotação em dezembro de 2015

O Último Amor de Mr. Morgan/Mr. Morgan’s Last Love

De Sandra Nettelbeck, Alemanha-Bélgica-EUA-França, 2013.

Com Michael Caine (Matthew Morgan), Clémence Poésy (Pauline Laubie)

e Justin Kirk (Miles Morgan), Jane Alexander (Joan Morgan), Michèle Goddet (Mme. Dune), Anne Alvaro (Colette Léry), Gillian Anderson (Karen Morgan), Yannick Choirat (Lucien)

Roteiro Sandra Nettelbeck e Françoise Dorner

Baseado no romance La Douceur assassine, de Françoise Dorner

Fotografia Michel Berti

Música Hans Zimmer

Montagem Christoph Strothjohann

Produção Kaminski.Stiehm.Film GmbH, Bavaria Pictures, Senator Film,

Scope Pictures, Sidney Kimmel Entertainment.

Cor, 116 min

***

4 Comentários para “O Último Amor de Mr. Morgan / Mr. Morgan’s Last Love”

  1. Gostei do filme, que como você bem disse, é sério, sensível e delicado. Mas o final foi decepcionante, e a relação fulminante da moça com o filho, uma saída meio fácil demais. Eu até compraria o relacionamento dos dois, se Matthew tivesse continuado vivo.
    Sem falar que ele tinha uma vida muito boa e confortável. Tudo bem que havia ficado solitário e estava sofrendo, mas não havia reencontrado um pouco da alegria de viver? Sou absolutamente contra suicídio, “morte assistida”, ou coisa que o valha.
    Apesar disso, no geral me agradou, e acho que chorei em boa parte do filme. Além de ser uma história triste, estava bem sensível no dia; lembro que não fiz minhas leituras usuais, porque não conseguia me concentrar (ver filmes é mais fácil que ler, verdade seja dita). E como não derramar uma lágrima vendo o sofrimento de Matthew, a indiferença das pessoas? É triste como a sociedade trata os idosos, e olha que a França é considerada mais evoluída que o Brasil (já observei que os idosos na Europa são mais solitários, embora mais independentes; parece que as famílias meio que os “abandonam”). Aliás, um outro filme excelente e tocante sobre a velhice é o “La Demora”, dos nossos hermanos uruguaios.

    Importante que as roteiristas mostram que também há solidão quando se é jovem, mesmo e ainda que numa metrópole (Billy Wilder já nos mostrava isso nos anos 1960.).

    A relação pais-filhos é um dos pontos mais interessantes: ter coragem de falar com todas as letras que não queria ter tido filhos, e que não foi um bom pai, não é pra qualquer um. De todo modo, depois de adulto, muita coisa pode ser trabalhada com terapia. Achei o filho muito mimadinho e mal resolvido, além de chato. A filha, apesar de aparentar ser mais “vida loca”, ao menos convidou o pai para ir morar na mesma cidade, ainda que por desencargo de consciência. (Tive um professor mexicano de espanhol, que me disse que só teve a filha por causa da mulher. Ela fez um ultimato, e ele falou algo como: por que não fazer feliz a pessoa que eu amo? Achei tão bonito quando ele me contou isso. Só que diferente de Matthew, ele é um bom pai).

    Fazia tempo que eu não via personagens fumando em filmes atuais, mas acho que tem tudo a ver colocar fumantes e Paris na mesma história.
    Foi um pouco estranho ver Gillian Anderson fora da pele de Stella Gibson, depois de ter feito maratona de “The Fall”. Achei as duas personagens um pouco parecidas na frieza.
    Clémence Poésy está muito bem no papel, mas seu personagem poderia ter sido melhor construído. Acaba-se sabendo muito pouco sobre ela, o que corta um pouco da empatia que o espectador chega a sentir por Pauline. Pessoas misteriosas só pegam bem em contos de suspense.
    Justin Kirk eu não conhecia, ou ao menos não me lembro de ter visto antes. Personagem babaca o dele, mas o cara é bem gato, hein?!
    Por fim, foi muito bom assistir a Michael Caine atuando, do alto dos seus anos 80 anos; fazia um bocado de tempo que eu não o via.
    Que se façam mais bons filmes sobre velhice, pois quem não chegar lá é porque ficou pelo caminho.

  2. Sobre a piadinha de que americanos não falam outra língua, Mary sempre certeira em seus apontamentos (ri alto quando li a resposta dela no texto), mas apesar de tudo, e de acharem que o mundo gira em torno do umbigo deles, justiça seja feita: já encontrei alguns americanos que falavam uma segunda língua (geralmente espanhol), e falavam muito bem. Conheci pelo menos dois americanos que decidiram aprender espanhol para ajudar e conseguir se comunicar com pessoas com quem trabalhavam nos EUA, e não sabiam falar inglês.

    Não era o caso do filme, visto que o personagem era morador, e não turista, mas vamos inverter a situação: por que os franceses acham que todo turista é obrigado a falar francês? Logo eles, que moram anos em outro país e não aprendem a falar corretamente a língua, sempre com aquele sotaque horroroso, sem saber fazer concordância? Um povo que claramente não saber receber turistas estrangeiros, tanto que precisou de uma campanha do governo. Não foi à toa que Londres ultrapassou Paris e está em primeiro lugar no quesito cidade mais visitada (e povo mais educado, mas esse quesito é por minha conta).

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