O Delator / The Informer

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Nota: ★★☆☆

Deus e religião têm presença forte em O Delator/The Informer, o filme de 1935 de John Ford unanimemente considerado uma grande obra-prima. Não poderia ser diferente, já que é um filme passado na Irlanda, sobre acontecimentos da Irlanda, um país extremamente religioso.

Logo de cara, após os créditos iniciais, há um primeiro letreiro: “Uma certa noite, em uma Dublin dilacerada pelos conflitos – 1922”. E, logo depois, um segundo letreiro: “Então Judas se arrependeu – e jogou fora as 30 moedas de prata – e partiu”.

Antes mesmo que a ação comece, o filme de mestre Ford já compara o delator, o informer do título original, a Judas, o apóstolo que, por 30 dinheiros, 30 moedas de prata, traiu Jesus Cristo, entregando-o, com um beijo, à soldadesca do invasor romano.

Quando a narrativa já se aproxima do fim, Katie (Margot Grahame, na foto abaixo), uma espécie assim de Maria Madalena, usa praticamente todas as palavras da frase dita por Jesus Cristo na cruz: “Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem”. Katie suplica ao comandante Gallagher (Preston Foster) e sua noiva, a imaculada Mary (Heather Angel): “Perdoem, ele não sabia o que estava fazendo”.

Nesse mesmo diálogo, Katie se define como pecadora, e apela para a misericórdia de Mary, a que não é pecadora: “Não sou do tipo de mulher que você é, mas houve um tempo em que fui.”

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Kate consegue fazer com que Mary se ponha em seu lugar, e Mary está claramente inclinada a perdoar o delator por seu pecado gravíssimo, mas o comandante Gallagher entra com o que parece a ele racionalidade naquela discussão em que as duas mulheres se emocionavam:

– “Kate, não é hora de sentimentalismo! Isto é guerra!”

Dentro da igreja, Gypo, o protagonista da história (Victor McLaglen), se vê diante da mãe de Mary e do heróico Frankie. A mãe, a sra. McPhillips (Una O’Connor), imaculadíssima, toda de branco, faz o que os homens em guerra não conseguem fazer: perdoa.

Se não perdoasse, não seria cristã.

John Ford, bom descendente de irlandeses, era cristão.

Em 1974, quase 30 anos após o lançamento deste O Delator, François Truffaut escreveu: “Com real desenvoltura, John Ford sabia fazer o público rir e chorar; a única coisa que não sabia fazer era entediá-lo. E como John Ford acreditava em Deus, Deus abençoe John Ford.”

O comandante da resistência é apresentado como um herói, um grande homem

“A certain night in strife torn Dublin…” Uma Dublin dilacerada pelos conflitos.

Duvido um tanto que o público americano em 1935 – com exceção, talvez, da imensa comunidade irlandesa – compreendesse bem os conflitos que dilaceravam Dublin em 1922. O processo que levou a República da Irlanda a se tornar independente da Grã-Bretanha foi longo e conturbado. Após uma guerra entre forças irlandesas e britânicas no início do século passado, houve uma trégua em 1921, e, após duras negociações, chegou-se a um tratado criando o Estado Livre Irlandês, mas as forças políticas irlandesas estavam divididas e parte delas não apoiava o tratado. Haveria nova guerra civil, e apenas em 1937 a República da Irlanda teria eleições para a presidência.

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A Dublin de 1922 que o filme mostra tem patrulhas do exército britânico circulando pelas ruas, revistando cidadãos, e um movimento nacionalista que luta nas sombras contra o que considerava o império colonialista inimigo e estrangeiro.

Não se usa no filme, hora alguma, o nome IRA, Irish Republic Army, embora ele já existisse.

Veremos que Gallagher é o comandante dessa resistência contra o império estrangeiro – e ele será apresentado ao respeitável público como um herói, um homem do bem, um estadista acima de qualquer suspeita. Uma espécie assim de Victor Laszlo (Paul Henreid) de Casablanca.

Mas o herói só aparece lá pela metade dos 91 minutos do filme. Primeiro vemos o fraco, o pobre coitado, o imbecil, o delator, Gypo Nolan.

Não foi pelo bem da namorada que Gypo resolve delatar o amigo

No seu amor genuíno por Gypo, a pobre Katie – que, para poder sobreviver, pagar o quartinho em que vive, anda pelas calçadas de Dublin à noite, à espera de encontros com homens que lhe paguem algum dinheiro – dirá ao comandante Gallagher e sua noiva Mary que ele não sabia o que fazia, que fez por ela, pensando nela, pelo bem dela.

Não é verdade – e as primeiras sequências do filme mostram isso. Nelas, vemos Gypo caminhando por ruas de Dublin à noite, e vemos quando ele pára diante de um grande cartaz com a foto de Frankie McPhillip (Wallace Ford), a palavra gigantesca “procura-se” e a informação “recompensa 20 libras”.

Gypo fica longo tempo olhando o cartaz em que se oferecem 20 libras – uma fortuna – para quem informar sobre o paradeiro de Frankie, seu grande amigo.

Finalmente arranca a cartaz da parede, amassa-o, joga-o no chão. Caminha um pouco pela calçada, até parar perto de um rapaz que, irlandesíssimamente, canta com bela voz uma suave balada folk. Gypo ouve a música, mergulha nela – mas um vento traiçoeiro joga na sua perna exatamente o cartaz que mostra o amigo e a fortuna que pode ser dada a quem o dedurar.

Depois disso é que Gypo vai ver Katie numa calçada, ao lado de um senhor vestido como quem pode pagar por alguns momentos de intimidade. Sujeito imenso, grandalhão, que mais parece um gigantesco gorila (Victor McLaglen tinha 1 metro e 91, e era pesado, sólido, cheio), Gypo pega o sujeito, levanta-o como se fosse uma bola de basquete e o arremessa para o meio da rua.

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O diálogo que se segue entre ele e Katie, num filme hollywoodiano de 1935, época de absoluta sujeição ao Código Hays, o código de auto-censura dos grandes estúdios, me deixou absolutamente impressionado. Não, não era nada comum se mostrar uma prostituta trabalhando na rua, como o filme de John Ford mostra, sem subterfúgios.

Katie sai de cena após comentar com Gypo que uma passagem para a América custava 10 libras, e portanto com 20 libras eles poderiam começar vida nova. A conversa termina com Katie dizendo que, já que ele não podia sustentá-la, ela precisava dar um jeito de ganhar a vida. Ele poderia ser angelical com seus princípios sagrados – ela não tinha condições de custear tais princípios.

Gypo, o protagonista, tem a força de um touro, mas nenhuma inteligência

O espectador vê, logo em seguida, nesses primeiros 15, 20 minutos de filme, que Gypo, assim como seu grande amigo Frankie, já havia pertencido a esse exército das sombras, os resistentes nacionalistas na luta subterrânea contra os imperialistas britânicos. No entanto, havia falhado numa missão: mandaram que ele executasse um soldado inglês, ele ficou com uma certa pena, o soldado prometeu não retaliar, Gypo o deixou ir – e por causa disso foi julgado e expulso da organização.

Expulso, tinha virado um ser perdido no limbo, fora da sociedade. Não tinha emprego, não tinha nada, passava privações de todos os tipos, e sua namorada tinha que se prostituir.

O espectador vê também que Gypo não apenas não é inteligente como é bastante próximo da idiotice total. O próprio Frankie, quando os dois se encontram, diz para ele que os dois faziam um bom par: Frankie entrava com a cabeça e Gypo, com a força bruta.

Por que será que a recompensa por entregar Frankie foi de 20 libras, e não de 30 libras, o que aproximaria Gypo ainda mais de Judas Iscariote? Será que 30 libras eram uma fortuna grande demais?

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O filme mostra uma visão maniqueísta do mundo

Delator, dedo-duro, alcaguete, informante. A noção é coberta de vergonha. Para muita gente, não existe crime maior do que ser delator.

Na verdade, há diferentes, bem diferentes tipos de delação. Pelo menos três tipos.

No Brasil do lulo-petismo, os donos do poder procuravam jogar na mesma vala comum o criminoso de colarinho branco que decide colaborar com a Justiça em troca de uma pena menor (algo perfeitamente defensável, sob todos os aspectos), o sujeito que defende uma ideologia diferente da vigente e confessa sob tortura, e o que decide entregar um outro à sanha de um regime ditatorial para obter ganhos materiais.

São coisas bem diferentes. Esse terceiro tipo – o que dedura por dinheiro, por vantagem – é o que passou para o imaginário comum como o traidor filho da mãe. Mesmo que na verdade não tenha sido exatamente assim, na história do Brasil são considerados traidores desprezíveis Joaquim Silvério dos Reis e Calabar; na história sagrada, Judas Iscariotes.

Gypo, coitado, é um traidor desse pior tipo, um Judas. Delata o amigo por desespero, porque a tentação da pequena fortuna é forte demais, e ele não tem lá um grande caráter, é apenas um gorila que não foi dotado de cérebro algum, e não tem plena consciência de suas ações.

Toda a área do showbusiness americano – mas em especial o cinema e a TV –, enfrentaria um terremoto, um tsunami apavorante, uns 15 anos depois do lançamento deste The Informer, quando um congressista fanático, Joseph McCarthy, deu início a um movimento que viraria uma inimaginável bola de neve, uma louca caça às bruxas, em que direitistas radicais enxergavam comunistas comendo criancinhas até mesmo embaixo das camas da Casa Branca.

Nos anos 50, durante o macarthismo das listas negras, das audiências no subcomitê de atividades anti-americanas, a comunidade de Hollywood se dividiu entre os Bons e os Maus. Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Elia Kazan, virou pária porque pregaram na testa dele o rótulo de dedo-duro.

Não dá para ver The Informer sem pensar em tudo isso, em toda a loucura, a insanidade que é definir as pessoas como Boas ou Más porque foram, em algum momento, dentro daquele ou daquele outro ponto de vista, delatoras ou não.

De qualquer forma, a visão do filme sobre tudo isso é absolutamente clara, transparente. The Informer não é um filme que convida o espectador a ver diferenças, sutilezas, especificidades. A rigor, a rigor, o filme mostra uma visão maniqueísta do mundo.

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“Um dos maiores filmes de John Ford, tecnicamente correto em cada detalhe”

Leonard Maltin dá 4 estrelas, a cotação máxima: “Obra-prima, estudo da natureza humana conta sobre o bebedor McLaglen, que informa sobre colega para ganhar recompensa durante Rebelião Irlandesa. Drama poderoso, baseado na novela de Liam O’Flaherty, com uma trilha memorável de Max Steiner. McLaglen ganhou o Oscar de melhor ator, assim como Ford, Steiner e Dudley Nichols pelo melhor roteiro. Filmado antes na Inglaterra em 1929.”

Dame Pauline Kael diz: “Este filme de John Ford, extraído do belo romance de Liam O’Flaherty, talvez seja por demais puro e esquemático para o paladar atual – Gypo gastando freneticamente, desesperadamente o dinheiro da recompensa, seus espasmos de fúria, prazer, terror são mais detalhados do que seriam hoje.”

Eis parte do longo texto sobre o filme do CineBooks’ Motion Picture Guide, que, naturalmente, dá a cotação máxima de 5 estrelas:

“Um grande filme. Feito por meros US$ 243 mil, The Informer é um dos maiores filmes de John Dord, tecnicamente correto em cada detalhe. A fotografia de Joseph August é soberba, com suas sombras e luzes que criam o clima; os sets construídos em estúdio são uma representação brilhante de Dublin coberta pelo nevoeiro nos anos 1920, com o calçamento de pedras molhado, paredes úmidas, trevas, pobreza e desesperança. Através desse cenário mítico, Ford move seus personagens estoicamente rumo a seus destinos sombrios. Sua escolha de Victor McLaglen, que havia estrelado outro de seus memoráveis filmes da era do cinema falado, The Lost Patrol (A Patrulha Perdida, 1934), foi um golpe de mestre. Corpulento, com uma voz de trovão e ombros de touro, McLaglen era o perfeito Gypo, tosco, rosto marcado, seu rosto maltratado sobressaindo em direção às câmaras de Ford (ele havia sido campeão de pesos pesados na Grã-Bretanha). McLaglen nunca voltaria a atingir tal estatura, embora tenha trabalhado em 150 filmes.”

“O primeiro dos três filmes que Ford fez para a RKO, The Informer se transformou na produção mais prestigiada do estúdio durante anos. Ford havia dirigido muitos filmes antes deste, mas eles não foram excepcionais, com a exceção do épico da era muda The Iron Horse (O Cavalo de Ferro, 1924) e The Lost Patrol. Ele procurou a RKO em 1930, pedindo para filmar a novela de O’Flaherty. Os chefões do estúdio achavam a história muito negra e depressiva, e seu protagonista completamente sem empatia – um bêbado, mentiroso, capaz de trair qualquer um e fazer qualquer coisa para salvar a pele. Ford continuou tentando convencer o estúdio, prometendo ficar firme no orçamento apertado – um compromisso que honrou. O escritor Dudley Nichols, um dos colaboradores favoritos de Ford, escreveu o roteiro em seis dias, e Ford fez todo o filme à velocidade da luz, completando o trabalho em 17 dias.

“Muitas histórias a respeito da filmagem tornam especialmente impressionante a velocidade com que o filme foi feito. Depois das filmagens, comentou-se que McLaglen, um grande beberrão, estava bêbado durante a maior parte da filmagem, e que Ford incentivava esse estado de embriaguez como a única maneira de conseguir uma atuação crua. Embora muitas dessas histórias sejam boatos, sabe-se que, antes da sequência na igreja, Ford levou McLaglen para um canto e os dois tomaram uns goles antes de começar a filmagem.

“Para Ford, foi um momento decisivo em sua carreira majestosa. Em seguida ele iria fazer The Hurricane (O Furacão, 1937), Stagecoach (No Tempo das Diligências, 1939), The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira (1940), How Green Was My Valley (Como Era Verde o Meu Vale, 1941), e uma série de outras obras-primas que dariam a ele a reputação gigantesca que teria durante os anos 30 e 40. Este também foi um marco na carreira do compositor Max Steiner, cuja maravilhosa trilha se encaixa perfeitamente em cada cena, de cadências patrióticas tempestuosas a motivos líricos e evocativos.”

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Tudo é muito esquemático – e as atuações são exageradas, circenses

O longo texto do Cinebooks’ informa ainda que a história seria refilmada em 1968 por Jules Dassin com o título de Up Tight – no Brasil, O Poder Negro.

Me permito fazer aqui dois comentários sobre o que diz o Cinebooks’. De fato, a fotografia do filme é esplêndida, belíssima, assim como toda a direção de arte. Nisso eu concordo plenamente. É difícil acreditar que tudo aquilo tenho sido filmado num estúdio em Hollywood, e não nas ruas de Dublin.

Na minha opinião, McLaglen teve, sim, outro momento de glória – dirigido pelo mesmo John Ford, no extraordinário Depois do Vendaval/The Quiet Man (1952).

Bem, mas e a minha opinião sobre o filme?

Nunca tinha visto O Delator – era uma das muitas falhas de meu conhecimento sobre filmes.

Não gostei do filme.

Tudo, neste filme aclamadérrimo, me pareceu esquemático, maniqueísta. Tudo preto x branco demais, sem qualquer nuance, sem qualquer tom de cinza.

E é exagerado, over, circensemente mal interpretado.

Ao contrário do mundo inteiro, não acho que a interpretação de Victor McLaglen seja um brilho. Muito ao contrário, acho que a interpretação dele é grotesca, pavorosa, horrorosa, exagero do exagero do exagero. Ele atua como se estivesse no picadeiro de circo, tendo que fazer uma absurda quantidade de caretas para ser enxergado pelas pessoas das fileiras de trás.

Não digo isso sem uma certa tremedeira. Falar mal de um John Ford endeusado por 11 de cada 10 cinéfilos veteranos não é algo propriamente fácil. Mas estou velho demais para preferir as facilidades.

Anotação em janeiro de 2016

O Delator/The Informer

De John Ford, EUA, 1935

Com Victor McLaglen (Gypo Nolan)

e Heather Angel (Mary McPhillip), Preston Foster (Dan Gallagher), Margot Grahame (Katie Madden), Wallace Ford (Frankie McPhillip), Una O’Connor (Mrs. McPhillip), J.M. Kerrigan (Terry), Joseph Sawyer (Bartley Mulholland), Neil Fitzgerald (Tommy Conner), Donald Meek (Pat Mulligan), D’Arcy Corrigan (o cego), Leo McCabe (Donahue), Gaylord Pendleton (Daley), Francis Ford (Flynn), May Boley (Mrs. Betty), Denis O’Dea (o cantor de rua)

Roteiro Dudley Nichols

Baseado no livro de Liam O’Flaherty

Fotografia Joseph H. August

Música Max Steiner

Montagem George Hively

Produção John Ford, RKO Radio Pictures.

P&B, 91 min

**

Título na França: Le Mouchard. Na Itália: Il Traditore.

5 Comentários para “O Delator / The Informer”

  1. “Depois do Vendaval” é A GLÓRIA do Victor, é a glória de todos os envolvidos, é a glória do cinema.

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