Meu Filho é Meu Rival / Come and get it

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Nota: ★★★☆

Come and get it, lançado em 1936, tem diversas características para fazer a felicidade dos cinéfilos, em especial os que gostam dos filmes da época de ouro de Hollywood. Os créditos iniciais dizem que o filme é dirigido por Howard Hawks e William Wyler – um caso raríssimo, quase único, de obra dirigida por dois dos grandes realizadores do cinema americano.

Dois grandes realizadores, por incrível coincidência de iniciais dobradas e com carreiras entre 1925 e 1970. HH dirigiu 47 filmes, diversos deles obras-primas, como Levada da Breca/Bringing up Baby (1938), Jejum do Amor/His Girl Friday (1940), Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959). WW dirigiu 72 títulos, diversos deles obras-primas, como Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946), A Princesa e o Plebeu/Roman Holiday (1953), Ben-Hur (1959), Infâmia/The Children’s Hour (1961).

Dois grandes realizadores – e dois grandes diretores de fotografia, algo que também não é nada usual. Assinam a fotografia do filme nada menos que Rudolph Maté e Gregg Toland. O primeiro teve 5 indicações ao Oscar, o segundo teve 6 indicações e levou o prêmio por O Morro dos Ventos Uivantes (1941). O primeiro é o responsável pela fotografia de O Martírio de Joana d’Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer. O segundo, pela de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles.

Além de levar a assinatura de dois grandes cineastas e dois dos maiores diretores de fotografia da História, o filme ainda teve um terceiro realizador, Richard Rosson, que foi o responsável pelas sequências – extraordinárias, impressionantes, acachapantes – do trabalho dos madeireiros na região gelada do Norte de Wisconsin, no Meio-Oeste americano, junto dos Grandes Lagos que ali separam Estados Unidos e Canadá.

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Frances Farmer no auge da beleza e da fama, antes de despencar do estrelato

Uma outra característica: é um filme que mostra com clareza total e critica com ênfase e veemência o desmatamento perpetrado pelos americanos em vastíssimas áreas de suas florestas virgens, na segunda metade do século XIX. Um filme americano dos anos 30 que denuncia o crime ambiental e fala sobre o absurdo de ter havido replantio não é algo propriamente comum. De forma alguma.

Muito à frente de seu tempo também no aspecto comportamental, moral, o filme fala, com uma clareza pouquíssimo usual naquela época de submissão ao Código Hays, o manual de autocensura dos estúdios, sobre infidelidade conjugal.

Por último, mas não menos importante: o filme é estrelado por Frances Farmer, a belíssima atriz de vida absolutamente trágica. É um imenso prazer ver Frances Farmer no auge da beleza e da fama, aos 23 anos de idade, antes de despencar do estrelato devido ao espírito excessivamente rebelde, ao alcoolismo e às internações em clínicas psiquiátricas.

“Milhares de milhas de árvores arrancadas por piratas, e ninguém para os impedir”

zzcome3 - 520Come and get it é baseado em romance de Edna Ferber, a mesma autora dos livros que deram origem a Assim Caminha a Humanidade/Giant (1956), Cimarron (que teve uma versão em 1931 e outra em 1960) e Show Boat (1951), entre muitos outros.

Edna Ferber (1885-1968) escreveu umas duas dezenas de obras, entre romances e peças de teatro – e diversas delas tiveram imenso sucesso popular. Alguns de seus romances eram grandes épicos, cobrindo ações ao longo de dezenas e dezenas de anos, e mostrando a ascensão de grandes empreendedores que partem do zero e se tornam bilionários. É o caso de Jett Rink, o inesquecível personagem interpretado por James Dean em Giant, e é exatamente o caso de Barney Glasgow, o personagem principal desta história aqui.

Assim como também acontece em Giant – cuja ação se passa ao longo de 25 anos, “um quarto de século”, como diz Leslie, a personagem de Elizabeth Taylor, já com vários fios de cabelo branco ao também grisalho Bick Benedict interpretado por Rock Hudson –, este Come and get it se passa em duas épocas bem diferentes, indicadas em grandes letreiros. Começa em 1884, para, quando a narrativa está aí com uns 40 minutos, pular para 1907, 23 anos depois, portanto.

Os roteiristas Jane Murfin e Jules Furthman incluíram letreiros no início da narrativa, logo após vermos a data 1884, e também depois do salto no tempo, depois que vemos o número 1907.

Este é o texto de abertura do filme: “1884, Norte de Wisconsin. Um lugar frio e duro, de madeira e minério. As terras de madeira… centenas de milhares de hectares de madeira… ficaram virgens até que os homens da indústria do papel da Nova Inglaterra chegaram. Eles cortaram as toras e as arrancaram – e as árvores jamais foram substituídas. Milhares de milhas delas, e ninguém para os impedir. Um desses piratas era Barney Glasgow.”

É de chorar de pura tristeza ou raiva ver aquela devastação da floresta

Barney Glasgow é interpretado por Edward Arnold; quem já viu algum filme de Frank Capra seguramente se lembra de Edward Arnold. É um ator gordo, imenso, não apenas barrigudo, mas inteiriçamente grande. Fez com mestre Capra três vezes a mesma persona: o empresário milionário que tem no lugar do coração uma dura pedra de gelo, o egoísta que só pensa em ganhar mais e mais dinheiro – até que, no finalzinho da história, o amor, a solidariedade, a amizade derretem o gelo que cobria seu coração. Arnold esteve em Do Mundo Nada se Leva (1938), A Mulher Faz o Homem (1939) e Adorável Vagabundo (1941).

Num dos primeiros planos do filme – um plano geral de num lugar inteiramente coberto pela neve –, Barney Glasgow toca com um pequeno bastão um triângulo de aço e dá o grito tradicional de chamada dos trabalhadores para a hora da bóia que dá o nome do livro de Edna Ferber e do filme de Howard Hawks e William Wyler: “Come and get it”. Venham e peguem, antes que a comida seja dada aos cachorros.

A tomada é impressionante, épica, um afresco: do que ainda resta de floresta, de todos os cantos da tela, vão surgindo pessoas, dezenas, centenas, todas indo feito manada em disparada rumo ao refeitório.

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Barney é uma espécie de capataz, de feitor, que cuida de uma grande área de terra pertencente a um milionário, Mr. Hewitt (Charles Halton). As primeiras sequências do filme mostram como ele domina aquela multidão de trabalhadores como se fosse um absoluto déspota, um tirano impiedoso. Exige trabalho, trabalho, trabalho, trabalho – e vemos então uns cinco, talvez até dez minutos do que parece ser um documentário muitíssimo bem feito sobre o trabalho dos madeireiros nos Estados Unidos da América na segunda metade do século XIX.

Uma devastação absurda, inimaginável, imoral.

As imagens dirigidas por Richard Rosson são absolutamente impressionantes. Qualquer pessoa de caráter razoável, que tenha um pouco de noção de que este é o único planeta que temos, e não existe plano B, corre o risco de chorar de pura tristeza ou raiva ao ver aquelas cenas.

Barney se apaixona pela dama do saloon – mas se casa com a filha do patrão

Cortadas dezenas, centenas de milhares de árvores, os troncos eram empurrados, com a ajuda da gravidade, até os riachos e depois rios que descongelavam ao final do inverno, início da primavera – e viajavam pelos cursos d’água, dirigidos por funcionários da madeireira como se fossem cowboys tangendo boiadas, até mais abaixo, onde se localizavam as indústrias madeireiras e de industrialização do papel.

Ao final dessa colheita, no início da primavera, o próprio Barney Glasgow e seu maior amigo e braço direito Swan Bostrom (o papel de Walter Brennan, à esquerda na foto acima) lideravam a ida da massa de trabalhadores para os bares-night clubs da cidade de Iron Ridge, onde tinham direito a encher a cara e comer as carnes – os dois tipos.

É no gigantesco saloon de Sid LeMaire (Edwin Maxwell) que Barney e Swan ficam conhece Lotta Morgan – o papel da maravilhosa Frances Farmer. O primeiro dos dois que ela desempenha nessa história épica.

Lotta é assim como a abelha-rainha do saloon, a preferida do dono Sid, sua mais recente aquisição, a mais bela das damas que ali estão para tratar bem de homens que há muito não viam mulher pela frente.

O grandalhão Barney não resistirá, e fará a Lotta a pergunta de sempre, presente em tantas histórias, em tantos filmes, que Bob Dylan, aliás natural ali daquelas bandas, da vizinha Minnesota, muitas décadas depois resumiria no estribilho de uma canção: “What is a sweetheart like you doing in a dump like this?” O que é uma doçura como você está fazendo num lugar de merda como este aqui?

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Lotta se mostra irritada, diz que todo mundo faz essa pergunta, mas Barney insiste: por que você não volta para a casa dos seus pais? Lotta responde, com uma voz belíssima, rouca, cheia, que há uns 165 motivos. Barney pergunta se esse é o preço da passagem, e se oferece para dar a ela o dinheiro.

Na verdade, Lotta havia sido instruída pelo patrão, o dono do saloon, a jogar um sonífero fortíssimo num copo de Barney, de tal maneira que eles pudessem recuperar os US$ 500,00 que o gordão havia ganho num jogo logo ao chegar, no momento exato em que a bela moça apareceu. E Lotta chega a aproveitar um momento de distração de Barney e de Swan para jogar o veneno no copo do primeiro. Mas, arrependida,  sensibilizada com a forma com que ele oferece o dinheiro para ela sem pedir nada em troca, acaba derrubando o copo – e aí será iniciada uma daquelas brigas que destroem todo o bar, muito comum nos westerns.

Creio que não tem muito sentido adiantar muito mais fatos que virão a partir daí. Num resumo bem sumário, dá-se que Barney se apaixona profundamente pela bela do saloon, e é correspondido – mas logo a abandona para se casar com Emma Louise (Mary Nash), a filha do patrão, Mr. Hewitt. Troca o amor da sua vida pelo golpe do baú.

Lotte se casará com outro homem, terá uma filha, a quem dará seu mesmo nome. Quando a ação dá o salto no tempo e pula para 1907, Lotte mãe está morta, e Lotte filha tem a mesma idade que a mãe tinha quando conheceu Barney e Swan.

Além disso, é o que o título brasileiro revela. Eta título ridículo, esse Meu Filho é Meu Rival. Ridículo – mas não mentiroso. O “meu filho” do título brasileiro é interpretado por Joel McCrea, bom ator, boa pinta.

Não é muito fácil encontrar hoje os filmes com a bela Frances Farmer

Era extremamente jovem e bela Frances Farmer, e tinha talento, além de estudo: fez jornalismo e artes dramáticas na Universidade de Washington, em Seattle, onde nascera, em 1913. Interpreta, com sensibilidade, apuro – e uma pequena ajuda das equipes de maquiadores e cabeleireiros –, duas mulheres fisicamente bem parecidas, mas com personalidades, jeitos, comportamentos diferentes.

Consta que Howard Hawks uma vez afirmou que Frances Farmer foi a melhor atriz com quem ele trabalhou – e olha que ele trabalhou com todas, absolutamente todas as grandes atrizes de Hollywood ao longo de sua carreira gloriosa.

Após cursar artes dramáticas em Seattle, em 1934, Frances ganhou uma viagem à União Soviética, onde conheceu o Teatro de Arte de Moscou. Nos anos 30, não era incomum gente de teatro e cinema visitar o paraíso da classe trabalhadora que a propaganda de Josef Stálin divulgava com ardor. Lillian Hellmann, por exemplo, esteve lá, como conta em um dos capítulos de seu livro Pentimento, que deu origem ao filme Julia (1977), de Fred Zinnemann, com Jane Fonda e Vanessa Redgrave. Assim como John Steinbeck e diversos outros artistas e intelectuais de esquerda.

zzcome7 - 520Na volta de Moscou, Frances mudou-se para Hollywood e rapidamente foi convidada pela Paramount para assinar um contrato de sete anos. Em 1936, o ano de lançamento deste filme aqui, era uma das mais faladas novas estrelas do estúdio. Mas Come and get it não foi feito pela Paramount, e sim pela produtora de Samuel Goldwyn, que obteve a participação de Frances Farmer como um empréstimo.

No ano seguinte, 1937, a atriz conseguiu realizar o sonho de trabalhar no teatro, na produção, pelo Group Theatre Broadway, da peça Golden Boy, do jovem e bem sucedido dramaturgo Clifford Odets – com quem, consta, ela teve um caso.

A partir de 1939 começaram seus problemas com o estúdio. Bebia demais, tinha comportamento errático, e, em 1942, a Paramount cancelou seu contrato. Foi presa por dirigir com faróis ligados em local de blecaute por causa do estado de guerra, foi processada pelo cabeleireiro do estúdio – e acabou sendo internada em hospital para doentes mentais.

Após sua morte – por câncer, em 1970, aos 57 anos de idade –, surgiram muitas lendas a respeito de episódios da vida de Frances Farmer, Em 1972 foi publicada sua “autobiografia”, Will There Really Be A Morning?, na verdade escrita por uma amiga muito próxima dela em seus últimos anos, Jean Ratcliffe. E em 1978 saiu uma biografia “ficcionalizada”, Shadowland – que seria a base principal do roteiro do filme Frances (1982), em que a então bem jovem Jessica Lange interpretou a atriz – e recebeu pelo papel uma indicação ao Oscar.

Grupos de rock e pop compuseram músicas em homenagem a ela. Uma das várias lendas divulgadas foi de que, numa das internações, ela teria sido submetido a uma lobotomia. Parentes e pessoas próximas a ela negam peremptoriamente essa história.

Não é muito fácil ver os filmes que Frances Farmer fez – cerca de 15, no total. Sou um fuçador atrás de filmes do período de ouro de Hollywood, tanto na TV quanto nas locadoras de filmes, e só consegui ver, além deste Come and get it, que revi agora em DVD (foi lançado naquela coleção ClassicLine), Ódio no Coração/Son of Fury (1942), de John Cromwell, em que ela contracena com Tyrone Power, Gene Tierney e George Sanders. Esse último esteve na programação do Telecine em 2001.

Hawks se desentendeu com o produtor, que então o substituiu por Wyler

Há versões conflitantes sobre quanto do filme foi dirigido por Hawks, quanto foi dirigido por Wyler. Mas há algumas certezas: eles não trabalharam juntos em momento algum. Hawks começou a dirigir o filme, e aparentemente foi o responsável pela maior parte das sequências. Aí ele teria se desentendido com Samuel Goldwyn – dizem que o produtor exigia que o filme fosse o mais fiel possível ao romance de Edna Ferber, e não concordava de forma alguma com mudanças feitas pelos roteiristas a pedido do diretor.

Hawks, então, foi substituído por Wyler, que, segundo algumas fontes, foi o responsável por cerca de 30 dos 99 minutos de duração do filme.

zzcome8Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Arnold interpreta um construtor de império que luta para chegar ao topo do negócio de madeira em Wisconsin e sacrifica o grande amor de sua vida. Farmer tem a melhor performance de sua carreira, num papel duplo, como uma moça de saloon e (anos depois) sua própria filha; Brennan ganhou seu primeiro Oscar de melhor ator coadjuvante fazendo o papel do companheiro sueco de Arnald. Uma saga típica de Edna Ferber, sobre duas gerações.”

Ah, sim, Walter Brennan. Que figura. O sujeito ganhou nada menos que três Oscars como melhor coadjuvante – este aqui foi o primeiro deles. Nasceu em 1894, e portanto estava aqui com 42 anos. Como é mostrado em 1884 e em 1907, teve que ser maquiado para parecer mais velho na segunda parte da história. Ele aqui é um sujeito magérrimo, e, em Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959), ele parecia não muito mais velho que neste filme feito mais de 20 anos antes – só estava bem mais gordo.

É um filme muito à frente de seu tempo, uma firme denúncia do desmatamento

Come and get it não chega a ser um grande filme, conclui, ao revê-lo agora. Envelheceu um tanto: aquele tom épico, típico das histórias de Edna Ferber, parece um tanto antiquado hoje, mesmo para mim, um velhinho acostumado há muitas décadas com os filmes dos anos 30.

As tentativas de fazer graça acabam resvalando para o simplesmente ridículo, como, por exemplo, a banda formada pelos funcionários da empresa Glasgow, quando o filme se aproxima do fim. Mas são poucos esses momentos, felizmente.

Pequenos defeitos impedem que seja um grande filme – mas é um filme importante, que deve ser visto por quem gosta do cinema clássico de Hollywood. Tem todas aquelas características importantes que citei no começo deste texto.

E tem muitas qualidades – desde a importância que dá à questão ambiental, muitas décadas antes de o ambiente se tornar um tema fundamental, até a forma como trata da questão da infidelidade conjugal. Tem as sequências do corte de árvores – fabulosas, marcantes, impactantes. E tem o talento e a beleza de Frances Farmer. É mais do que suficiente.

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Anotação em janeiro de 2016

Meu Filho é meu Rival/Come and get it

De Howard Hawks e William Wyler, EUA, 1936

Com Edward Arnold (Barney Glasgow), Joel McCrea (Richard Glasgow), Frances Farmer (Lotta Morgan / Lotta Bostrom), Walter Brennan (Swan Bostrom), Mady Christians (Karie), Mary Nash (Emma Louise), Andrea Leeds (Evvie Glasgow), Frank Shields (Tony Schwerke), Edwin Maxwell (Sid LeMaire), Cecil Cunningham (Josie), Charles Halton (Mr. Hewitt)

Roteiro Jane Murfin e Jules Furthman

Baseado  no romance de Edna Ferber

Fotografia Rudolph Maté e Gregg Toland

Música Alfred Newman

Montagem Edward Curtiss

Produção Howard Productions, Inc, Samuel Goldwyn. DVD ClassicLine.

P&B, 99 min

R, ***

10 Comentários para “Meu Filho é Meu Rival / Come and get it”

  1. William Wyler parece que nunca errou a mão!
    Fiquei curiosa para ver um filme em que o nome do Edward aparece antes dos demais.

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