Foxcatcher – Uma História Que Chocou o Mundo / Foxcatcher

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Nota: ★★★½

Foxcatcher é o relato cuidadoso, sério, sem enfeites, de uma história real – a da relação que se estabeleceu, nos anos 1980, entre o bilionário John DuPont e dois irmão desportistas, ambos medalhas de ouro na luta olímpica, Mark e David Schultz.

É uma história impressionante, impactante, apavorante, muitíssimo bem contada, e valorizada por interpretações impecáveis de grandes atores.

O processo de conseguir levar às telas essa história real durou nada menos que oito anos, segundo o diretor Bennett Miller, que, antes, havia feito apenas dois longa-metragens, os dois igualmente contando histórias reais – Capote (2005) e O Homem Que Mudou o Jogo/The Moneymaker (2011).

Interesssante, isso: três longas (ele fez também dois documentários de curta metragem), todos eles baseados em histórias reais, dois deles envolvendo o mundo do esporte.

Parece um sujeito sério, consciencioso, esse Bennett Miller, nascido em Nova York em 1966, que dirigiu seu primeiro filme quando tinha já 38 anos. Em um making of que acompanha Foxcatcher no DVD, ele diz que a história que resolveu contar é “uma história que nos deixa sóbrios”. Dizer isso assim em português não é usual – ao contrário do que acontece no inglês. Ele fala “It’s a sobering story”. Aí vai, com clareza, a coisa de forçar alguém a ficar sóbrio, ou de circunstâncias tão chocantes, atordoantes, que fazem a pessoa despertar do estado de embriaguez e/ou transe por outras drogas. To sober up tem também o significado mais amplo, figurativo, de tomar juízo. Passar o porre, deixar a inconsciência de lado, tomar juízo, enfrentar a realidade.

E então Bennett Miller insiste: – “I like sobering stories”.

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A colisão de dois mundos muito distantes um do outro

Depois que o filme acabou, e continuava pulando na minha cabeça, sem parar, fiquei pensando que ele poderia ter o mesmo título do romance de Theodore Dreiser publicado em 1925, que Sergei Mikhailovich Eisenstein pensou em filmar, e daria origem a Um Lugar ao Sol/A Place in the Sun, o clássico feito em 1951 por George Stevens com Montgomery Clift, Elizabeth Taylor e Shelley Winters – An American Tragedy.

A Tragédia Americana mostra dois mundos se colidindo: o mundo dos muito ricos, dos milionários, e os dos muito, muito pobres.

É exatamente o tema deste Foxcatcher: a colisão desses dois mundos.

John du Pont (o papel de Steve Carell) era o herdeiro dessa dinastia, uma das famílias mais ricas dos Estados Unidos. Foxcatcher abre com cenas de antigos filmes mostrando caçadas de raposas na imensa propriedade da família, feitos talvez no final do século XIX ou bem no início do XX.

Mark e David Schultz (interpretados respectivamente por Channing Tatum e Mark Ruffalo) já tinham ganhado cada um uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos em 1984, quando a narrativa começa – mas vinham de uma família muito pobre e, pior ainda, despedaçada cedo demais. Os pais haviam se separado quando Mark, o caçula, tinha apenas dois anos, e os dois garotos tinham tido uma vida quase de nômades, mudando de cidade para cidade. David tinha passado a ser o responsável pelo irmão mais novo quando ainda deveria estar brincando.

E o sucesso deles nos Jogos Olímpicos, a medalha de ouro que cada um havia ganho, não garantiu a eles uma vida mais confortável: muito diferentemente do beisebol, do futebol americano, do basquete, do tênis, do golfe, a luta olímpica não é um esporte que dê dinheiro, no país mais rico do mundo. “Existe a consciência de que o esporte em si não é tão reconhecido quanto qualquer outro neste país”, diz o diretor Bennett Miller no making of – e é exatamente isso o que ele mostra em seu filme.

E então a narrativa começa – após aquele intróito com as cenas reais nas caçadas da propriedade dos du Pont – mostrando que Mark e David levavam uma vida bem modesta, numa pequena cidade de Oaklahoma. Treinavam bastante, todos os dias, como se deve – mas num espaço bastante humilde, simples de tudo, pobre.

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O milionário John du Pont se oferece para treinar Mark Schultz

O filme escancara muito rapidamente para o espectador alguns fatos básicos sobre os dois irmãos.

David é casado, e as indicações são de que bem casado, com Nancy, moça bonita (interpretada por Sienna Miller). O casal tem dois filhinhos, Alexander e Danielle (Jackson Frazer e Samara Lee).

Mark é solteiro, solitário, fechado, trancado em si mesmo. Mora numa casa pequena, mínima. A grana é muito curta.

Mark é um gigante, uns 10 ou 15 centímetros mais alto que o irmão mais velho. É muito visivelmente o dos dois que tem mais chances de ganhar outros torneios, outras medalhas.

David é muitíssimo mais experiente que o irmão – tanto no esporte quanto em qualquer outro tema da vida. É ele que treina Mark, e Mark tem por ele todo o respeito do mundo. David é muito mais articulado, muito mais inteligente, safo, esperto que o caçula gigante.

Um dia qualquer, toca o telefone na casa de Mark. Alguém do outro lado da linha se identifica como um funcionário de John du Pont. Mr. John du Pont quer saber se Mark poderia ir se encontrar com ele em sua fazenda na Pensilvânia – a viagem seria na primeira classe, é claro.

A sequência em que Mark Schultz, medalha de ouro, futuro em aberto, pobretão, humilde, um tanto adolescente no corpanzil de quase 2 metros, entra pela primeira vez na bilionária, majestosa, aristocrática propriedade de 325 hectares dos du Pont na Pensilvânia, a Fazenda Foxcatcher, é impressionante.

Estamos, então, com 15 minutos de filme.

Eis o primeiro diálogo entre os dois:

John: – “Você parece bem. Parece forte. Firme.”

Mark: – “Obrigado, senhor.”

John: – “Sente-se confiante?”

Mark diz que sim com um meneio da cabeça.

John: – “Este é um dos mais importantes elementes quando se entra para uma partida, a sensação de confiança, saber que você vai vencer. Sentindo isso por dentro. Se você vai para uma partida sabendo que vai ganhar, as chances são de que você vai ganhar. Você está treinando com seu irmão Dave?

Mark: – “Sim, senhor.

John: – “O grande Dave Schultz?”

Mark: – “É.”

John: – “E eu estou falando com o grande Mark Schultz. Você tem idéia de por que eu pedi para você vir aqui?”

Mark: – ‘Não.”

John: – “Não. Bom, Mark, você – você tem alguma idéia de quem eu sou?

Mark: – “Não. Não.”

John: – “Algum sujeito rico chama você no telefone. Eu quero que o grande Mark Schultz venha me visitar. Bem, eu sou… eu sou um treinador de luta. E tenho um profundo amor pelo esporte de luta. E eu queria falar com você sobre o seu futuro. Sobre o que você espera alcançar. O que você espera alcançar, Mark?”

Mark: – “Bom, eu quero ser o melhor do mundo. Quero ir ao Mundial e ganhar ouro. Quero ir à Olimpíada de 88 e ganhar ouro.”

John: – “Ótimo. Tenho orgulho de você. Você está tendo toda a ajuda de que precisa?”

Mark: – “O que o senhor quer dizer?”

John: – “Bem, você sabe como os soviéticos ajudam os lutadores deles.”

Mark : – “Eu sei.”

John: – “Mark, nós, enquanto nação, falhamos em honrar você. E isso é um problema. Não apenas para você, mas para a nossa sociedade. Quando falhamos em honrar aquilo que deve ser honrado, é um problema. É um canário numa mina de carvão. Você observa pássaros?”

Mark: – “Não.”

John: – A gente aprende bastante com os pássaros. Sou ornitologista. Mas, mais importante, sou um patriota. E eu quero ver este país no alto de novo.”

Mark: – “Eu também quero isso.”

John: – “Dá para perceber.”

Em seguida, John du Pont leva Mark Schultz para conhecer o ginásio de treinamento que ele mantém ali em sua propriedade. A fazenda, a equipe de lutadores de John du Pont, o ginásio de treinamento, tudo aquilo tem o nome de Foxcatcher.

A visão do lugar deixa Mark chocado, estupefato. Diante do lugar em que Mark e seu irmão David treinam, é ouro comparado com lama.

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O filme não tem pressa alguma em chegar aos sinais de que haverá problema

O diretor Bennett Miller queria desde sempre que Steve Carell representasse o bilionário John du Pont – mas queria que os espectadores, ao olharem para Steve Carell no seu filme, não o reconhecessem, não pensassem no ator de tantas comédias, tantos filmes leves, gostosos.

O chefe do departamento de maquilagem do filme, Bill Corso, conta isso no making of. E diz que adorou o desafio de fazer Steve Carell não se parecer com Steve Carell, basicamente colocando uma armadura que remodelou completamente o nariz do ator e um corte de cabelo para deixa-lo com uma aparência bem mais velha. O resto ficou por conta do próprio talento do ator em personificar essa figura tremendamente complexa que é o herdeiro da dinastia du Pont.

Uma rápida passeada pela Wikipedia nos informa que a DuPont é a segunda maior empresa química do mundo em termos de volume de capital e a quarta em termos de receita. O império começou em 1802 quando o imigrante francês Eleuthère Irénée du Pont criou uma fábrica de pólvora. A Guerra da Secessão fez aumentar exponencialmente os lucros da empresa. Ao longo das décadas que se seguiram, o conglomerado industrial tornou-se líder no campo da pesquisa em ciência e tecnologia, e patenteou produtos como o nylon, o teflon e o kevlar.

O John du Pont que o filme mostra parece não ter interesse algum por qualquer uma das diversas atividades do conglomerado industrial que carrega seu nome. É, como se apresentou para Mark Schultz, um treinador de luta, dono de uma equipe e de um maravilhoso ginásio para treino de luta, a Foxcatcher. Escreveu um livro sobre ornitologia – vai se definir como, entre outras coisas, ornitólogo, filatelista, filantropo.

O diretor Bennett Miller e os roteiristas E. Max Frye e Dan Futterman não têm pressa alguma, não sentem qualquer necessidade de acelerar a narrativa. Já se passaram uns 30 minutos de filme quando Mark Schultz chega pela segunda vez à propriedade dos Du Pont, e desta vez de mudança – os outros membros do Foxcatcher também moravam em casas espalhadas pela fazenda sem fim.

Um dos funcionários de Du Pont, que levará Mark para o cottage em que ele ficará morando – cottage só no nome, na verdade uma casa ampla, umas 20 vezes maior que sua moradia anterior – dá algumas instruções básicas. Talvez ele seja convidado para entrar na mansão principal – nos demais momentos, não deve chegar perto dela. Não deve chegar perto dos cavalos e nunca, nunca deve se aproximar da sra. Du Pont, a mãe de John Du Pont.

A sra. Du Pont aparece pouquíssimo em cena, mas todas as poucas sequências em que aparece são fortes, importantes, impactantes. Ela é representada por Vanessa Redgrave, esse tesouro do cinema mundial.

O espectador vai demorar muito a perceber como é complexa a relação entre a matriarca e o filho único. Como a mãe não tem admiração alguma por ele, e pior ainda: como ela despreza tudo o que tem a ver com luta olímpica. Como ele tem da figura da mãe um medo pavoroso, absurdo, e ao mesmo tempo uma rejeição que precisaria de décadas de terapia intensiva cinco vezes por semana para tentar melhorar um pouco a cabeça.

O primeiro sinal de problema grave surge quando o filme está com uns 60 minutos. No total ele dura 134 – duas horas e 14 minutos.

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O filme teve todo o apoio da família Schultz; é uma biografia autorizada

Mark Schultz recebe o crédito de produtor associado, nos letreiros ao final do filme (não há créditos iniciais). Após o final da narrativa, e antes dos créditos, naqueles letreiros sempre comuns em filmes baseados em fatos reais, sobre o que aconteceu na vida dos protagonistas após os fatos mostrados, é dito que ele hoje trabalha como treinador de luta no distante Oregon.

Channing Tatum, o ator que fez o papel dele, se encontrou várias vezes com o lutador, à procura de dicas, ensinamentos.

Nancy Schultz, a mulher de David, também estabeleceu uma relação de amizade com Mark Ruffalo. Há uma sequência em que David Schultz-Mark Ruffalo aparece de óculos – são óculos do próprio David, emprestados por Nancy.

Ou seja: a produção do filme, assim como o diretor Bennett Miller, deixam muito claro que é uma cinebiografia que teve a aprovação da família Schultz.

Foxcatcher teve cinco indicações ao Oscar, nas categorias de diretor, ator para Steve Carell, ator coadjuvante para Mark Ruffalo, roteiro original e maquiagem.

Ao Globo de Ouro, foram três indicações: melhor filme, melhor ator para Steve Carell, melhor ator coadjuvante para Mark Rufallo. Ao Bafta, foram duas: Steve Carell e Mark Ruffalo, ambos na categoria ator coadjuvante.

O filme acabou não levando nenhum Oscar ou Globo de Ouro ou Bafta, mas teve 12 prêmios e um total de 77 indicações.

Eis aí algumas das informações da página de Trivia do IMDb sobre a produção:

* Mark Ruffalo e Channing Tatum treinaram luta durante mais de cinco semanas, preparando-se para as filmagens.

* Por seu lado, a preparação de Steve Carell para interpretar John du Pont incluiu ver e rever horas de fitas gravadas em que o bilionário aparecia. A cada dia, antes das filmagens, o ator se submetia a duas horas de preparação com a equipe de maquilagem, para a colocação do nariz protético, o arranjo dos cabelos, etc.

* Quem interpreta o homem contratado por John du Pont para filmar um documentário sobre ele e seus grandes feitos como treinador foi o próprio documentarista, David Bennett, conhecido como Doc. Impressionante!

* Uma primeira versão do filme tinha a duração de quatro horas. O diretor Bennett Miller trabalhou junto com os montadores Jay Cassidy, Stuart Levy e Conor O’Neill ao longo de vários meses, depois das filmagens terminadas, cortando parte do material, até chegar às 2 horas e 14 minutos da edição final.

* O roteiro é assinado por E. Max Frye e Dan Futterman, não por E. Max Frye & Dan Futterman, o que indica que não foi um trabalho a quatro mãos. Frye começou a escrever o roteiro, mas parou devido à greve dos roteiristas. Então o diretor Bennett Miller entregou o trabalho a seu velho amigo Dan Futterman, que havia escrito o roteiro de Capote. A versão final do roteiro é dele.

* No mesmo ano em que o filme foi lançado, 2014, saiu também um livro, assinado por Mark Schultz (em letras grandes) “com David Thomas” – o nome do escritor que escreveu o texto da história relatada pelo desportista em letras bem menores. O título é Foxcatcher, mas há um subtítulo longo que conta todo o final da história. Por razões óbvias, não vou transcrever o subtítulo aqui, mas se algum eventual leitor tiver curiosidade, bastar fazer uma busca. Está à venda na Amazon.

Creio que o grande Theodore Dreiser, tivesse nascido cem anos depois de seu tempo, teria gostado de escrever um romance com base nessa história tristíssima, mais uma tragédia americana.

Anotação em agosto de 2016

Foxcatcher – Uma História Que Chocou o Mundo/Foxcatcher

De Bennett Miller, EUA, 2014

Com Steve Carell (John du Pont), Channing Tatum (Mark Schultz), Mark Ruffalo (David Schultz)

e Sienna Miller (Nancy Schultz), Vanessa Redgrave (Jean du Pont), Anthony Michael Hall (Jack), Guy Boyd (Henry Beck), Brett Rice (Fred Cole), Jackson Frazer (Alexander Schultz), Samara Lee (Danielle Schultz), Francis J. Murphy III (Wayne Kendall), Jane Mowder (Rosie),

David ‘Doc’ Bennett (o director do documentário)

Roteiro E. Max Frye e Dan Futterman

Fotografia Greig Fraser

Música Rob Simonsen

Montagem Jay Cassidy, Stuart Levy e Conor O’Neill

Casting Jeanne McCarthy

Maquilagem Bill Corso

Produção Annapurna Pictures, Likely Story, Media Rights Capital. DVD Sony.

Cor, 134 min

***1/2

5 Comentários para “Foxcatcher – Uma História Que Chocou o Mundo / Foxcatcher”

  1. Steve é um dos jovens mais talentosos do cinema. Assisti esse filme atraída pelo elenco e saí com expectativas superadas. Muito bom.

  2. Apesar da grande atuação dos atores principais, o filme é lento, um pouco cansativo. Não ficou claro o real motivo do assassinato, bem como a relação entre Dupont e Mark. Poderia ter sido uma obra prima. Pena.

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