Cinderella

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Nota: ★★★☆

Tá certo: tudo o que Kenneth Branagh faz é ótimo, e este Cinderella de 2015, caprichada, sutuosa produção da Disney com direção do inglês shakespeariano, é uma belezinha de filme. Só não dá para evitar a pergunta: precisava?

Para que filmar de novo a história manjadíssima que já tinha tido uma ótima versão em 1998, com a gracinha Drew Barrymore no papel central e até uma participação especial de Jeanne Moreau, em Para Sempre Cinderela/Ever After: A Cinderella Story?

É verdade que no filme de 1998 há vários floreios que se afastam da história que todos nós conhecemos desde criança, e que já lemos e relemos para os filhos e eu ainda espero ler e reler várias vezes para minha neta. Os roteiristas tiveram uma sacada, e então o filme pretende contar a história verdadeira da Cinderela, da Gata Borralheira – a história “verdadeira”, e não a versão criada ainda em 1697 por Charles Perrault, nem a versão escrita muitos anos mais tarde pelos Irmãos Grimm, já no século XIX. A história “verdadeira” toma muitas liberdades, e até bota Leonardo da Vinci no meio da trama.

Já a história contada neste filme de 2015 parece ser bastante fiel à versão de Charles Perrault – aquela que inclui todas os elementos mais fantasiosos, mais conto de fadas, como a fada madrinha, a carruagem feita partir da abóbora, o sapatinho de cristal. (A versão dos alemães Grimm tirou fora essa coisa de fada madrinha.)

Sim, é isso. Se não estou bem enganado, o roteiro deste filme aqui, de autoria de Chris Weitz – que escreveu os roteiros de Formiguinhaz (1998), Um Grande Garoto (2002) e A Bússola de Ouro (2007), ou seja, sabe falar de e para jovens – é bastante fiel à versão de Perrault, e portanto à versão mais manjada da história manjadérrima, que os próprios Estúdios Disney já haviam contado na animação absolutamente clássica de 1950.

Era uma vez, num reino muito distante, um casal perfeito e perfeitamente feliz, com uma filha perfeitamente linda e feliz. A linda mamãe morre, papai casa-se de novo com uma mulher má, má, má, que tem duas filhas horrendas. O papai morre e a pobre garotinha é transformada pela madrasta cruel em escrava, e etc, etc, etc, etc.

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Felizes escolhas das atrizes e atores para os papéis centrais

No filme de 1998, tinha havido um grande acerto do pessoal de casting: no papel de Cinderela estava a gracinha absoluta da Drew Barrymore, creio eu que já bastante livre do pantanal de drogas em que havia se metido, e tão bonitinha quanto era aos 7 aninhos, quando recebeu em sua casa num subúrbio californiano o E.T. de Steven Spielberg. E, no papel da madrasta má que nem a fome estava Anjelica Huston, perfeita para o papel, a melhor Morticia Addams que alguém poderia interpretar.

O casting deste Cinderella 2015 também acertou em cheio. Para o papel de Cinderela, foi escolhida a inglesinha Lily James, nascida em 1989, no Surrey, e que estava portanto na época de lançamento do filme com 26 aninhos, mas aparentava perfeitamente uns 18. Lily James é a jovem atriz que faz o papel de Lady Rose MacClare em quatro das seis temporadas de Downton Abbey, e em 2016 foi escolhida para ser a Natasha Rostova em minissérie da BBC que tenta recontar, pela décima bilionésima vez, o Guerra e Paz de Liev Tolstói.

Lily James tem o físico perfeito para fazer Cinderela. É bela – mas não é assim um estrondo de beleza tipo Ingrid Bergman ou Elizabeth Taylor. Tem um rostinho extremamente simpático, agradável, de gente boa, de gente interessante. E tem talento de sobra. Está maravilhosa – até porque o diretor é Kenneth Branagh, e ninguém, absolutamente ninguém trabalha mal sob a direção de Kenneth Branagh.

E, para o papel da madrasta má que nem a peste, o capeta, a fome, Cate Blanchett. Outra escolha perfeita. A moça é uma grande atriz – e faz uma madrasta que qualquer espectador, até mesmo algum frade de pedra que for colocado diante da tela, odiará com todo o seu fígado.

Há ainda duas presenças interessantes no elenco, que merecem registro. Uma das duas filhas da madrasta, duas figuras pestilentas, nojentas, é interpretada por Sophie McShera. Essa moça foi colega de elenco de Lily James em Downton Abbey: lá, ela fez Daisy, a auxiliar de cozinha que começa bem tímida, bem bobinha, e vai ganhando importância à medida que as temporadas vão se sucedendo. Interessante ter duas atrizes da série maravilhosa reunidas neste filme aqui.

Derek Jacobi faz o rei, o monarca que está velho e doente, e gostaria de ver o filho se casar com uma princesa que trouxesse um grande dote ao reino, como a bela princesa Chelina de Zaragosa (Jana Perez). Derek Jacobi é um velho colaborador de Kenneth Branagh: faz um papel fundamental em Voltar a Morrer/Dead Again (1991), o segundo dos até agora 15 filmes do diretor, e participou de vários outros filmes seus.

Holliday Grainger is Anastasia, Cate Blanchett is the Stepmother and Sophie McShera is Drisella in Disney's live-action feature CINDERELLA which brings to life the timeless images from Disney's 1950 animated masterpiece as fully-realized characters in a visually dazzling spectacle for a whole new generation.

Um ator brilhante, um diretor que passa pelos mais diversos gêneros

E aqui é o caso de registrar alguma coisa sobre esse senhor de talento descomunal.

Kenneth Charles Branagh é de 1960, de Belfast, Irlanda do Norte. Com apenas 23 anos, entrou para a Royal Shakespeare Company – nada mais, nada menos. Aos 29, fez a adaptação da peça de Shakespeare e dirigiu seu primeiro filme, Henrique V (1989), em que interpretava o papel do rei, tendo ao lado uma das atrizes mais talentosas do cinema da segunda metade do século XX, Emma Thompson – não por acaso, sua mulher à época.

E aí, depois dessa bela estréia num drama de William Shakespeare, Branagh fez seu segundo filme, de novo com Emma Thompson, Voltar a Morrer/Dead Again, nos Estados Unidos – um thriller extraordinário, passado em duas épocas diferentes, meio filme preto-e-branco, meio em cores, com um pé no sobrenatural e outro nas explicações psiquiátricas para as coisas que nos andam pela mente.

De lá para cá, Kenneth Branagh tem feito de tudo, no cinema e no teatro. Como ator, fez série de TV, Wallander, aquela maravilha; interpretou Franklin D. Roosevelt em Warm Springs (2005), Sir Laurence Olivier em Sete Dias com Marilyn (2011), um oficial nazista em Operação Valquíria (2008).

Como cineasta, só faz belezas, nos mais diferentes estilos. Em 2007, por exemplo, resolveu refilmar uma peça de Anthony Shaffer que já havia dado origem a um filme em tudo por tudo clássico, Jogo Mortal/Sleuth (1972), dirigido por Joseph L. Mankiewicz e com nada menos que Sir Laurence Olivier e o então quase jovem Michael Caine. Na refilmagem, botou Michael Caine fazendo o papel que antes tinha sido de Olivier, e Jude Law no papel do mais jovem. O filme de Mankiewicz é uma obra-prima. A refilmagem de Branagh talvez, a rigor, fosse dispensável – mas é um filmaço.

Um ano antes de dirigir, para a Disney, este conto de fadas, dirigiu Operação Sombra – Jack Ryan, um soturno, pesado, sombrio filme de espionagem em que, tantos anos após o fim da Guerra Fria, Estados Unidos e Rússia estão em guerra. Além de dirigir, ele mesmo faz o papel do bandidão, do bad guy, do sujeito cuja maldade deixaria a madrasta da Cinderela parecendo uma abençoada voluntária que trata de crianças com doença terminal.

Helena Bonham Carter is the Fairy Godmother in Disney's live-action feature inspired by the classic fairy tale, CINDERELLA, directed by Kenneth Branagh.

A sequência da fada madrinha é brilhante, sensacional

Este Cinderella é um bom filme do começo ao fim: tudo funciona, nada dá errado.

Mas há um momento em que o brilho do filme sobe uma oitava e quase explode. É exatamente quando a fada madrinha aparece pela primeira e única vez, para preparar Cinderela para o baile, e transformar a abóbora em carruagem, os ratinhos em cavalos, os lagartos em criados.

A fada madrinha vem na pele de uma Helena Bonham Carter de cabelos louros – e Helena Bonham Carter nunca é menos que estrondosamente fascinante.

Imagino que Kenneth Branagh, homem de mil instrumentos, tenha se colocado um desafio: agora vou fazer um filme usando todas as técnicas modernas possíveis e imagináveis para mostrar, com toda a explicitude, a transformação dos ratinhos em cavalos, da abóbora em carruagem, dos lagartos em criados.

A sequência é esplêndida, maravilhosa.

(Fico torcendo para que Marina cresça logo para eu mostrar para ela – embora, é claro, eu torça mesmo é para que Marina não cresça tão depressa quanto está crescendo, para que cresça mais devagarinho pra gente curtir o processo com um pouquinho de calma…)

Gosto de gente que ama e respeita os ex.

Aplaudo de pé a cena de A Era do Rádio/Radio Days, filme da Era Mia Farrow, em que Woody Allen bota para cantar, numa sequência que é uma extraordinária declaração de amor, sua ex-mulher Diane Keaton.

A fada madrinha Helena Bonhan Carter foi senhora Kenneth Branagh durante alguns anos.

É uma maravilha que a sequência mais fenomenal do filme seja também uma homenagem à ex-mulher do diretor.

Como dizia aquele outro English lad, in the end, the love you take is equal to the love you make.

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Anotação fevereiro de 2016

Cinderella

De Kenneth Branagh, EUA-Inglaterra, 2015

Com Lily James (Cinderella)

e Cate Blanchett (a madrasta), Richard Madden (o príncipe), Helena Bonham Carter (a fada madrinha), Nonso Anozie (o capitão), Stellan Skarsgård (o grão-duque), Sophie McShera (Drisella, filha da madrasta), Holliday Grainger (Anastasia, a outra filha da madrasta), Derek Jacobi (o rei), Ben Chaplin (o pai de Ella), Hayley Atwell (a mãe de Ella), Rob Brydon (mestre Phineus), Jana Perez (princesa Chelina de Zaragosa)

Roteiro Chris Weitz

Fotografia Haris Zambarloukos

Música Patrick Doyle

Montagem Martin Walsh

Casting Lucy Bevan

Produção Allison Shearmur Productions, Beagle Pug Films, Genre Films, Walt Disney Pictures.

Cor, 105 minutos

***

10 Comentários para “Cinderella”

  1. Cara, finalmente alguém de responsa pra defender a segunda versão de “Sleuth”. Amo Kenneth da mesma forma que amo Laurence, pelos mesmos motivos: talento shakespeariano escorrendo pelos poros.

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