Sem Evidências / Devil’s Knot

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Nota: ★★★☆

Em 2013, o canadense de origem armênia Atom Egoyan, conhecido como realizador independente, de filmes pessoais e do circuito de salas “de arte”, fez seu primeiro filme nos Estados Unidos. Devil’s Knot, no Brasil Sem Evidências, se baseia em uma história real – um crime bárbaro acontecido em West Memphis, no Estado de Arkansas, no dia 5 de maio de 1993.

O crime é pavoroso: três garotos aí de uns oito anos de idade saíram para passear de bicicleta num bosque próximo da cidade numa tarde – e nunca mais foram vistos com vida. Foi montada uma grande operação policial para examinar cada centímetro do bosque, e, após alguns dias, os corpos foram encontrados dentro de um riacho do lugar, com marcas de tortura, como se tivessem sido vítimas de um ritual macabro, satânico.

Ao crime pavoroso, seguiu-se muito mais pavor.

O caso todo teve grande publicidade nos Estados Unidos, e deu origem a três documentários e a mais um filme de não ficção antes deste aqui, West of Memphis, de 2012.

Para quem não conhece a história (e acredito que pouca gente no Brasil sabe dos detalhes do caso e seus trágicos desdobramentos), Devil’s Knot pode ser visto como um thriller de mistério, suspense. Assim, é fundamental fazer desde já o aviso de spoiler: quem ainda não viu o filme não deveria continuar lendo esta anotação, porque ela forçosamente terá que adiantar informações que só vão ficar muito claras ao longo da narrativa, que não é curtinha – são 114 minutos.

A narrativa começa um tanto confusa, torta; leva um tempinho para engrenar

O começo do filme nos pareceu, tanto a mim quanto a Mary, um tanto confuso, com um ritmo estranho, manco, torto. Demora um pouco para engrenar, para a narrativa tomar forma, e para ficar claro para onde o filme vai se encaminhar.

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Começa com a câmara passeando por um bosque, onde há um rio. Está ficando escuro. Não há música. Vemos o nome do filme, Devil’s Knot, e as informações sobre onde e quando – West Memphis, Arkansas, 5 de maio de 1993.

(West Memphis, eu não sabia disso, fica ao lado da mais que lendária Memphis, Tennessee, exatamente a Oeste da cidade de Elvis Presley, do outro lado do Rio Mississipi, que faz a divisa entre os dois Estados. Duas cidades vizinhas, separadas por água, como Rio e Niterói, Juazeiro e Petrolina.)

Não há créditos iniciais – e vimos o filme sem saber quem é o diretor. Só nos créditos finais vimos o nome de Atom Egoyan – e foi interessante, isso, porque nos dez, 15 primeiros minutos, nos pareceu que era um diretor iniciante, sem experiência.

Uma mãe está indo pegar o filho na escola. Chama-se Pam Hobbs, e é interpretada por Reese Witherspoon; na volta da escola, seu filho Stevie (Jet Jurgensmeyer), garoto aí entre 7 e 8 anos, canta um trechinho de “That’s all right”, de Arthur Crudup, uma das primeiras músicas gravadas pelo jovem Elvis na outra Memphis, do outro lado do Mississipi. A mãe brinca que ele canta bem, e o garoto diz alguma coisa sobre Graceland, a mansão de Elvis.

Pam vai sair para o trabalho às 5 da tarde – é garçonete. Um amiguinho de Stevie, Michael, vem chamá-lo para andar de bicicleta. Pam diz que ele pode sair, mas tem que voltar às 16h30 ou então ficará de castigo por duas semanas.

zzdevil3a(Detalhinho mínimo, coisa de quem é ligado em música: no rádio da cozinha de Pam, está tocando “Wade in the Water”, cantado por Eva Casssidy. “Wade in the Water” é uma das versões de um canção folk gravada por muita gente boa com o nome de “The Water is Wide”.)

Paralelamente às sequências de Pam e seu filho, vemos uma outra em que se realiza um leilão de uma escrivaninha estilo Napoleão, cujo lance inicial é de US$ 15 mil. Estranho uma escrivaninha estilo Napoleão estar sendo leiloada numa pequena cidade do Arkansas, mas, pois é. Quem leva a escrivaninha, pagando por ela US$ 25 mil, é um sujeito de terno, gravata e uma barba bem cuidada – o papel do inglesérrimo Colin Firth, e o espectador teria todo o direito de perguntar o que faz num leilão numa cidadezinha do Arkansas um personagem interpretado pelo inglesérrimo Colin Firth.

Vai demorar uns 15 minutos para o filme mostrar quem é esse personagem.

O garoto Stevie, seu amigo Michael e mais um terceiro amiguinho vão passear no tal bosque que tem o diabo no nome – Devil’s Knot.

O marido de Pam, Terry (Alessandro Nivola), a leva para a lanchonete em que ela trabalha. Stevie ainda não havia voltado para casa. Terry promete que vai procurá-lo. Pam pede que ele diga ao filho que está de castigo por não ter voltado na hora.

Os garotos não são mais vistos com vida.

Naquela noite do desaparecimento dos meninos, um negro muito ferido é visto num bar num lugar afastado do centro da cidade. O gerente do bar – que tem o nome de Bojangles, como a canção – chama a polícia, mas, quando uma patrulheira chega lá, o desconhecido já havia ido embora, deixando um rastro de sangue nas paredes próximas ao banheiro.

Três rapazes são presos e acusados pelo crime – e é ai que o filme se apruma

Acompanhamos o desespero dos pais dos três garotos – a narrativa se concentra mais sobre em Pam e Terry. Começa a caçada em toda a região. A imprensa chega, arma-se o circo que em geral se arma em casos assim.

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O personagem interpretado por Colin Firth aparece várias vezes observando o noticiário da TV.

Os corpos são encontrados dentro do rio.

A pressão para que a polícia encontre logo os culpados é imensa. Muito rapidamente, bastante rapidamente, então, a polícia local, chefiada por um inspetor chamado Gitchell (Rex Linn), prende três jovens, Damien Echols (James Hamrick), Jason Baldwin (Seth Meriwether) e Jessie Misskelley (Kristopher Higgins).

E é a partir daí, quando estamos com cerca de 20 minutos de filme, que começa a ficar clara a intenção dos realizadores, ao mesmo tempo em que aqueles problemas de ritmo que observei nos momentos iniciais desaparecem.

Devil’s Knot se apruma assim que são feitas as prisões dos três jovens e nos é enfim apresentada a identidade do personagem de Colin Firth. Ele se chama Ron Lax, e é um investigador, uma espécie de detetive particular. Tem seu próprio escritório, e a clientela deve ser boa, já que, enfrentando naquele momento um processo de divórcio (amigável, é verdade), tem bala para comprar uma antiguidade por US$ 25 mil.

Ron Lax diz para sua secretária, quando estamos aí com uns 20, talvez 25 minutos de filme, que ele vai trabalhar para os advogados de defesa dos três adolescentes acusados e presos. Vai trabalhar para obter provas, evidências, de que eles são inocentes – ou, no mínimo, para contestar os indícios que a polícia usou para apontá-los como responsáveis pelo crime horroroso.

Um homem de crenças firmes, um batalhador contra a pena de morte

Assim que Ron Lax nos é propriamente apresentado como investigador que trabalhará para a defesa, os roteiristas deixam claro que ele é uma pessoa de convicções firmes: é um ativista contra a pena de morte – e o Arkansas havia, pouco antes dos brutais crimes acontecerem, aprovado a volta da pena de morte.

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O roteiro cria logo uma situação em que Ron tem um encontro com Margaret, a mulher de quem ele está se divorciando, tudo indica que por vontade dela. Margaret é interpretada por Amy Ryan, e aparece apenas na sequência do encontro, no bar que Ron tem frequentado muito, agora que mora sozinho e não tem comida em casa.

O diálogo foi criado para deixar claro quem é Ron, o que ele pensa, qual é seu caráter.

Margaret: – “A polícia parece ter tanta certeza. Você está certo de que quer fazer isso?”

Ron: – “Sim. Tenho.”

Margaret: – “É que às vezes você leva as coisas para o lado pessoal. Sabe, você perde a perspectiva. Fica obcecado.”

Ron: – “Tá certo, Maggie. Quando eu        vejo uma coisa dessas acontecendo, quando eu vejo uma cidade perder três crianças, e quer sacrificar mais três por vingança, então eu levo as coisas para o lado pessoal.”

O filme defende claramente a tese de que a Polícia fez um trabalho sujo

A partir daí, o filme vai afirmar, com absoluta firmeza, segurança, que a Polícia fez um trabalho sujo. Forçou a barra, deixou-se levar por aparências, circunstâncias. Ignorou evidências, deixou de fazer exames periciais que seriam necessários. Baseou-se numa confissão arrancada a fórceps de Jessie Misskelley, um jovem evidentemente doente, com desenvolvimento mental de uma criança de sete anos, e em um depoimento de uma criança – que mais tarde se comprovará inteiramente inventado, uma peça de ficção criada pela mãe, Vicki Hutcheson (Mireille Enos), uma bandidinha interessada em ficar bem com um policial para se livrar de acusações de fraude.

É tudo circunstancial, não há prova alguma, como bem diz o título brasileiro.

Ajuda as circunstâncias o fato de o principal suspeito, Damien Echols, ser um adolescente de modos e comportamento estranho, bizarro. Damien tinha um aspecto todo dark, usava só roupas negras, tinha cabelo longo e rosto absurdamente pálido, adorava hard metal e histórias envolvendo crimes e satanismo. E dizia frases fortes para espantar as pessoas a seu redor.

Adolescente chegado a ritos satânicos, circunstâncias, uma confissão de jovem retardado obtida à força, uma história de ficção contada pelo filho de uma bandidinha. Mais a indignação da comunidade com os crimes brutais – e está montado o cenário de uma nova tragédia, como temia o investigador Ron Lax.

Completa-se o quadro com um juiz injusto (interpretado por Bruce Greenwood), que não aceita argumentações e pedidos da defesa.

O filme não é um berro emocional – é a demonstração racional de uma verdade

Os roteiristas Paul Harris Boardman e Scott Derrickson se basearam no livro Devil’s Knot: The True Story of the West Memphis Three, de autoria de uma jornalista, Mara Leveritt.

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Devil’s Knot é um filme que toma partido. Não pretende dar a impressão de procurar uma postura objetiva, mostrando que talvez os jovens fossem inocentes, talvez não. De forma alguma. O filme afirma que houve uma sequência absurda de erros. Faz a defesa firme da inocência dos três acusados.

Naqueles letreiros que em geral são apresentados ao final dos filmes baseados em histórias verdadeiras, mostrando o que aconteceu com os personagens reais depois da época enfocada, chega-se a afirmar que foram encontradas provas que incriminam uma pessoa de quem a polícia jamais desconfiou.

O espectador que prestar atenção poderá ver, nos créditos finais, que, entre os diversos nomes dos produtores executivos, estão os de dois dos acusados, Jason Baldwin e Jessie Misskelley.

É, portanto, um filme corajoso, e que luta pelos valores que sempre me pareceram corretos: a pena de morte é um crime absurdo por diversos motivos, entre os quais a sempre possível existência de erro de investigação e de julgamento.

O que me pareceu interessante é que o filme de Atom Egoyan faz essa defesa dos valores corretos de uma forma até mesmo suave. É firme, sim – mas não é, de maneira alguma, nervosa, escandalosa. Não é um berro emocional – é uma afirmação racional, em tom firme mas sereno, de uma verdade que se pretende provar com fatos.

Anotação em março de 2015

Sem Evidências/Devil’s Knot

De Atom Egoyan, EUA, 2013.

Com Colin Firth (Ron Lax), Reese Witherspoon (Pam Hobbs), Alessandro Nivola (Terry Hobbs), James Hamrick (Damien Echols), Seth Meriwether (Jason Baldwin), Kristopher Higgins (Jessie Misskelley), Amy Ryan (Margaret Lax), Robert Baker (Detetive Bryn Ridge), Collette Wolfe (Glori Shettles), Rex Linn (inspector chefe Gitchell), Bruce Greenwood (juiz Burnett), Mireille Enos (Vicki Hutcheson), Jet Jurgensmeyer (Stevie)

Roteiro Paul Harris Boardman & Scott Derrickson

Baseado no livro Devil’s Knot: The True Story of the West Memphis Three, de Mara Leveritt

Fotografia Paul Sarossy

Música Mychael Danna

Montagem Susan Shipton

ProduçãoWorldview Entertainment.

Cor, 114 min

***

5 Comentários para “Sem Evidências / Devil’s Knot”

  1. oi, Sérgio! Vou rever hj ainda esse também!Suspense, policial + história real e está completo o pacote!!! Gosto muito de filmes assim, me lembro que fui pesquisar sobre esse caso quando vi o filme e, como em muitos casos, o certo é que a “justiça” condena quem ela quer. Aqui na minha cidade, houve um caso em que o rapaz foi condenado pela morte de uma garota de programa, arrastada presa no cinto de seu carrão… nem a perícia provou a culpa, o jovem rico jurava inocência, foi condenado preso, a família perdeu tudo em busca de provar a inocência e, nem precisou de pena de morte, pois o pai do jovem morreu de desgosto pela situação. Tudo literal mesmo… Dramas de quem vive numa terra de ninguém, onde há interesses maiores que a vida humana!
    abraço

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