O Amor em Fuga / L’Amour en Fuite

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Nota: ★★★★

Depois que terminou Domicílio Conjugal, o quarto filme da saga Antoine Doinel, François Truffaut chegou a dizer que não tinha vontade de fazer mais uma obra com o personagem. “Penso que eu terminei com Antoine Doinel”, disse ele à revista Cinéma 70.

Ainda bem que mudou der idéia e, nove anos após Domicílio Conjugal, lançou este O Amor em Fuga/L’Amour en Fuite. Como já haviam sido os anteriores, o filme é uma absoluta maravilha, um encanto, uma felicidade.

É um perfeito final de saga, de série, de conjunto de obras. Com uma inteligência, um brilhantismo incrível, Truffaut e seus co-roteiristas Marie-France Pisier, Jean Aurel e Suzanne Schiffman conseguiram enlaçar com perfeição todos os fios que haviam sido colocados nos quatro filmes anteriores.

Como já havia feito nos tomos anteriores, aqui Truffaut repete algumas tomadas, algumas seqüências que já havíamos visto. Como é o encerramento, e como há essa fantástica reunião de situações, personagens, fatos do passado de Antoine Doinel, a presença de sequências já conhecidas é bem maior do que havia sido antes.

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Os dois primeiros, Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups (1959, quando Antoine tinha 15 anos) e Antoine et Colette (1962, Antoine aos 18), foram realizados em esplendoroso preto-e-branco. Os três seguintes são em cores – Beijos Proibidos (1968, Antoine aos 24 anos), Domicílio Conjugal (1970, Antoine aos 26) e este aqui (1979, Antoine aos 35 anos).

Mas são tantas as citações dos dois primeiros filmes que, em diversos momentos, sequências em preto-e-branco invadem o mundo agora colorido de Antoine Doinel e suas mulheres.

Então, Antoine está 35 anos! (Truffaut, seu criador, estava com 47.)

Alphonse, seu filho com Christine (Claude Jade), já está com 9 anos, é um menino bonitão, cabelão comprido, como se usava na época. Mas Antoine continua o mesmo garotão que não cresceu, não amadureceu, sempre foi mais imaturo que as mulheres por quem se apaixonou, inclusive e talvez principalmente Christine, que, embora uns três anos mais jovem que ele, é uma mulher “digna, madura e responsável de uma forma que Antoine nunca será”, como dizem Robert Ingram e Paul Duncan em seu livro François Truffaut.

Antoine e Christine são o primeiro casal francês a fazer um divórcio amigável

Depois de ter sido operário na fábrica de discos da Philips, se alistado no exército, tido uma experiência como porteiro noturno de hotel, depois de aprendiz de detetive particular, vendedor de uma sapataria para senhoras, técnico de oficina de conserto de televisores, florista, manobrista de barquinhos de controle remoto em empresa de engenharia hidráulica, Antoine está agora trabalhando em uma gráfica, como revisor de originais.

E está namorando uma gracinha de garota, Sabine (Dorothée, uma linda atriz que estava então com 26 aninhos, nove a menos portanto que Antoine Doinel-Jean-Pierre Léaud). Alegre, jovial, Sabine, que trabalha numa loja de discos, é uma amante incansável, conforme já se mostra na primeira sequência do filme.

Por ela, morariam juntos. Mas Antoine faz questão de que cada um tenha a sua casa, embora passem quase todas as noites juntos.

zzfuite6No dia em que a ação começa, Antoine tinha um compromisso importante – do qual, naturalmente, cabeça de vento como é, havia se esquecido: é o dia em que ele e Christine comparecerão diante de um juiz (na verdade, uma bela juíza, interpretada por Marie Henriau) para formalizar o divórcio.

Já estão separados há algum tempinho, Antoine e Christine, mas não estão brigados – civilizadamente, maduramente (com certeza graças a ela), se dão bem, dividem as responsabilidade pela criação de Alphonse. Na verdade, eles vão ser o primeiro casal francês a fazer um divórcio amigável, após recente mudança na legislação que, até então, só admitia divórcio caso houvesse motivação forte provada em juízo, tipo adultério ou maus tratos.

É portanto um acontecimento marcante, e assim, quando saem do prédio do tribunal, são abordados por um pequeno batalhão de repórteres. Enquanto estão ali na escada diante do tribunal, o advogado que cuidou do caso (interpretado por Jean-Pierre Ducos) afasta-se do grupo e, na calçada, se encontra com uma colega – os dois vestidos de beca preta, como se exigia dos maîtres, como são chamados os advogados franceses.

A jovem e linda advogada vem a ser Colette Tazzi, ela mesma, a adolescente por quem Antoine teve profunda paixão quando ambos tinham 18 anos de idade, conforme mostra Antoine et Colette, o segundo tomo da saga.

O colega conta que aquele é o primeiro casal a fazer o divórcio amigável – e Colette, naturalmente, reconhece o antigo amigo que fazia anos ela não revia.

A Marie-France Pisier que interpreta essa Colette advogada se parece bem pouco com a adolescente de Antoine et Colette. Aos 18 anos, a atriz era linda, sim – mas tinha todo um jeito de mocinha muito nova, acentuado pelo cabelo cortado bem curto. Agora, aos 35 anos de idade, a atriz está com uma beleza esplêndida, resplandescente. Os cabelos negros um pouco mais longos realçam o belíssimo rosto muito claro, os faiscantes olhos azuis.

Artista múltipla, Marie-France – que faria mais de 90 filmes como atriz, e dirigiria dois longa-metragens – é também uma das quatro pessoas que assinam o roteiro deste L’Amour en Fuite.

Antoine conseguiu terminar seu livro autobiográfico – e o livro foi publicado

Em Domicílio Conjugal, Antoine estava escrevendo um livro, um romance bastante autobiográfico – tão autobiográfico quanto havia sido o primeiro filme desta série, Les Quatre-Cents Coups, que mostra a adolescência atribulada, a distância imensa entre Antoine e sua mãe, a ausência em sua vida do pai biológico que ele jamais conhecera, tudo igualzinho à adolescência de François Truffaut.

Christine, com sua maturidade, até havia dito para ele: – “Não gosto muito dessa idéia de contar sua adolescência, criticando seus pais, sujando a imagem deles. (…) Uma obra de arte não pode ser um acerto de contas, senão não é arte.”

“Uma obra de arte não pode ser um acerto de contas, senão não é arte.” Que bela frase para aparecer em um filme cujo autor fez seu primeiro longa-metragem como um acerto de contas com sua juventude infeliz e a ausência de afeto entre ele e a mãe!

Pois neste O Amor em Fuga ficamos sabendo que Antoine Doinel conseguiu concluir o livro e publicá-lo.

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Depois de ver de longe Antoine saindo do tribunal após ser o primeiro francês a fazer um divórcio amigável, Colette fica curiosa e vai atrás do livro – que encontra na livraria pertencente ao sujeito pelo qual ela está naquele momento apaixonada, um tal Xavier Barnerias (Daniel Mesguich).

Mais tarde ficaremos sabendo que, numa dessas coincidências de que a vida é cheia, e que são a matéria-prima de muitas histórias de Claude Lelouch, Krzysztof Kieslowski, Jacques Demy, além, é claro, do próprio Truffaut, esse tal Xavier vem a ser irmão de Sabine, a garotinha linda que está namorando Antoine.

Numa viagem de trem, a trabalho, Colette vai devorar o livro de Antoine – rindo muito ao ver os trechos em que o autor edulcorou a realidade para se mostrar melhor do que de fato foi. Por exemplo: conforme vemos em Antoine et Colette, Antoine se mudou para um hotel que ficava bem em frente ao apartamento de Colette e sua família. Era uma forçação de barra, a vontade de ficar mais perto da amada. No livro, ele inverteu: escreveu que, por uma grande coincidência, a família de Colette se mudou para o prédio em frente ao apartamento dele!

Detalhinho: o romance autobiográfico de Antoine se chama “Les Salades de l’Amour”. A legenda do DVD traduziu por “As Confusões do Amor”. Pode ser, mas Le Robert de Poche diz que salades significa histoires, mensonges. Portanto, “As Histórias do Amor” ou “As Mentiras do Amor” seria mais exato.

“Para você, a aventura da vida termina quando o casal vai viver junto”

Sem que Colette soubesse, Antoine havia entrado naquele trem em que ela viajava para Aix-en-Provence, onde pretendia entrevistar um homem acusado de espancar até a morte seu próprio filho de 3 anos de idade. Finalmente se encontram no trem, e, pela primeira vez em muitos, muitos anos, conversam, e conversam longamente.

(Rápida digressão: uma das boas coisas da vida é quando a gente reencontra um antigo amor e conversa, conversa longamente.)

Colette cobra dele as mentiras, as trapaças que ele fez com a realidade em seu livro. E diz para ele uma frase dura, porém verdadeira: – “Você tem mesmo uma idéia estranha sobre relacionamentos. Parece que você só se interessa pelo primeiro encontro. Para você, a aventura da vida termina quando o casal vai viver junto e nada dá certo”.

Colette diz que ele deveria escrever um romance de verdade, uma peça de ficção, e não uma reprodução de fatos acontecidos com ele mesmo. Antoine diz que tem uma idéia para um romance, uma história de ficção. É assim (ele vai contando a história para Colette e vamos vendo na tela ele próprio, Antoine, no papel do narrador):

O narrador do livro, o personagem central, o herói, vai à cabine telefônica de um restaurante, mas ela está ocupada por um homem. Apesar de a cabine estar com a porta de vidro fechada, nosso herói consegue ouvir o que o homem está dizendo. Ele está enfurecido, e tudo indica que está terminando um caso de amor com a mulher do outro lado da linha. Em determinado momento, ainda falando ao telefone, o sujeito tira a carteira do bolso, tira da carteira uma foto, corta-a em picadinho e joga os pedacinhos no chão. Daí a pouco, bate o telefone no gancho e sai da cabine, furioso.

zzfuite7Nosso herói então entra na cabine, recolhe os pedaços picotados da foto. Em casa, junta-os como um quebra-cabeças, reconstitui toda a foto, cola os pedacinhos com fita durex – e se apaixona perdidamente pela moça da foto. Passará, a partir daí, a procurá-la por Paris inteira, tendo como primeira a única pista o nome do estúdio fotográfico onde a foto foi tirada.

Colette fica impressionada com a história fantástica – e não é para menos, porque a história de fato é fantástica. Acho que não seria errado dizer que muito provavelmente Jean-Pierre Jeunet pensou bastante nessa história criada por Truffaut e seus três companheiros, na hora de criar a igualmente fantástica, fascinante história de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain.

Mas tem mais, diz Antoine. Então, depois de muito procurar, nosso herói consegue enfim localizar a moça da foto. Dá um jeito de se apresentar a ela, como quem não quer nada, por mero acaso, e não demonstra sua imensa paixão.

Colette pergunta o que vem depois: a moça vai amar o nosso herói? E Antoine responde: – “Francamente, estou parado nesse ponto. Provavelmente ele vai conquistá-la, mas, a partir daí, quando estiverem juntos, eles poderão encontrar a decepção, a desilusão, a separação, e, francamente, receio falar sobre a mesma tristeza sentimental que já descrevi no meu primeiro livro.”

É nesse momento que Colette diz a frase maravilhosa: “Você tem mesmo uma idéia estranha sobre relacionamentos. Parece que você só se interessa pelo primeiro encontro. Para você, a aventura da vida termina quando o casal vai viver junto e nada dá certo”.

“Antoine precisa de esposa, amante, irmãzinha, babá e enfermeira”

Nessa longa conversa com a velha amiga no trem, Antoine fala para Colette a respeito de Liliane. Liliane, um mulherão (interpretada por Dani, à esquerda na foto abaixo, por coincidência outra atriz de um único nome artístico, como a Dorothée que interpreta Sabine), havia surgido na vida dele e de Christine através do violino. Soube que Christine dava aulas de violino e apareceu na casa deles. As duas rapidamente se tornaram amicíssimas, a tal ponto que aquilo passou a incomodar Antoine.

Ele pára por aí, não conta o que aconteceu depois. O que aconteceu depois saberemos através da própria Christine, quando ela ficará finalmente conhecendo Colette, de quem, é claro, tinha ouvido falar muito no passado.

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É Colette que se apresenta a Christine, dizendo que são do mesmo clube – as ex de Antoine Doinel. Conversam bastante, e então Christine conta que, um belo dia, surpreendeu o marido e a grande amiga Liliane na cama! A relação entre ela e Antoine já estava mesmo desgastada, e eles acabaram se separando. Liliane e Antoine continuaram juntos por um tempo, mas logo ela se encheu o saco dele. Foi quando se deu um diálogo sensacional, que até já transcrevi ao falar dos filmes anteriores, porque traz a frase que define com perfeição o caráter de Antoine.

Christine para Liliane: – “Se você o abandonar, ele vai ficar num estado terrível”.

E Liliane: – “Antoine está sempre num estado terrível. Ele precisa de esposa, amante, irmãzinha, babá e enfermeira. Não consigo intepretar todos esses papéis de uma vez.”

“Um final deliberadamente, descaradamente, desesperadamente FELIZ!”

No dossiê para a imprensa sobre O Amor em Fuga, Truffaut disse que quis, para este último filme com Antoine Doinel, um final feliz. E historia que o final dos quatro filmes anteriores era em aberto. O primeiro, Les Quatre-Cents Coups, terminava com Antoine diante do mar, tendo fugido do reformatório de menores, e olhando para a câmara, para os espectadores, como se estivesse se perguntando: “O que vocês fizeram de mim? O que vocês vão fazer de mim? O que eu vou me tornar?”

zzfuite99O final de Antoine et Colette, diz ele, é amargo.

O final de Baisers Volés é um talvez – pode ser que sim, pode ser que não.

O final de Domicílio Conjugal mostra uma situação provisória.

Em O Amor em Fuga, prossegue ele, em que se mescla todo um material melancólico (trata-se praticamente de uma biografia filmada), Truffaut quis “um final deliberadamente, descaradamente, ou, se você preferir, desesperadamente FELIZ!”

Assim, com a palavra hereuse em caixa alta, com ponto de exclamação no fim.

E prossegue: “Ao mesmo tempo, o final marca bem que não voltaremos mais (a falar de Antoine Doinel): o filme é ‘recapitulativo’ e seu final é ‘conclusivo’.”

Uma vez ele escreveu: “Deus abençoe John Ford”. Pois eu digo: Deus abençoe Truffaut

Para não deixar solto fio algum da história de Antoine Doinel, há, neste O Amor em Fuga, até mesmo o reencontro com o agora velho senhor que, em Les Quatre-Cents Coups, era o amante mais frequente dos muitos da mãe do rapaz. É um reencontro emocional e emocionante, é claro. O senhor idoso tenta convencer Antoine de que sua mãe, ao contrário do que ele achava, era uma boa pessoa, uma boa alma.

De fato, Truffaut queria desesperadamente um final feliz para a saga de seu alter-ego.

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E que final brilhante, que encanto, que preciosidade. Antoine Doinel de fato não era um romancista, um criador de histórias fictícias, a partir apenas de sua imaginação. Assim como o próprio Truffaut ao longo destes cinco filmes preciosos contou muito da sua verdadeira história, Antoine não conseguia criar ficção – só era capaz de contar histórias escritas pela própria vida, la vie, cette chienne, como diz a canção da jovem Coralie Clément.

Então, aquela história incrível, tão fabulosa quanto o destino de Amélie Poulain, sobre a foto que um sujeito rasga em pedacinhos, e o herói reconstitui a foto como um quebra-cabeças e começa uma busca tenaz, infindável pela moça ali retratada… aconteceu de fato!

E então um casal entra na loja de discos de Sabine à procura do último disco de Alain Souchon, que tinha acabado de sair, e o casal entra na cabine para ouvir a canção que o espectador passa a ouvir, “L’Amour en Fuite”, uma delícia, uma graça, alegre, pra cima – e vão entrando os créditos finais enquanto vemos, alternadamente, imagens de Antoine Doinel hoje, aos 35 anos, e de Antoine Doinel em Les Quatre-Cents Coups, quando tinha 15 anos uma encruzilhada pela frente – ou o mergulho na marginalidade, ou uma vida simples, como a da imensa maioria das pessoas.

É como se o próprio cineasta, o autor de toda essa maravilhosa saga, soubesse então, aos 47 anos de idade, que não é apenas o mundo, a sociedade, os outros que definem o futuro de cada um, que definem se alguém vai ser bandido ou não – “O que vocês fizeram de mim? O que vocês vão fazer de mim?” Também conta o que cada pessoa quer, suas opções, seu esforço.

***

Obrigado, François Truffaut.

Num artigo de 1974, ele escreveu: “Como John Ford acreditava em Deus, Deus abençoe John Ford”.

Creio que Truffaut não acreditava em Deus. Mas eu digo mesmo assim: Deus abençoe François Truffaut.

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Anotação em abril de 2015

O Amor em Fuga/L’Amour en Fuite

De François Truffaut, França, 1979.

Com Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel), Marie-France Pisier (Colette Tazzi), Claude Jade (Christine Doinel), Dorothée (Sabine Barnerias), Dani (Liliane), Daniel Mesguich (Xavier Barnerias), Julien Bertheau (Monsieur Lucien), Jean-Pierre Ducos (o advogado de Christine no divórcio), Marie Henriau (a juíza do divórcio), Rosy Varte (a mãe de Colette), Pierre Dios (Renard), Julien Dubois (Alphonse Doinel)

Argumento, roteiro e diálogos François Truffaut, Marie-France Pisier, Jean Aurel e Suzanne Schiffman

Fotografia Néstor Almendros

Música Georges Delerue

Montagem Martine Barraqué

Produção François Truffaut, Les Films du Carrosse. DVD Versátil e MK2, Fox Lorber.

Cor e P&B, 94 min

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7 Comentários para “O Amor em Fuga / L’Amour en Fuite”

  1. Valeu a pena esperar esse texto. Um dos melhores que eu já li. Espetacular como o filme, como François, como Jean-Pierre e Antoine. E você não esqueceu do mago Alain Souchon. Foule Sentimentale!
    Obrigada.
    Parabéns.

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