Calvário / Calvary

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Nota: ★★★½

Calvário, co-produção Irlanda-Inglaterra de 2014, dirigida pelo inglês descendente de irlandeses John Michael McDonagh, é um soco no estômago. Um drama duro, denso, pesado.

A ação se passa num lugar de extrema beleza – uma região litorânea da Irlanda, com belíssimas montanhas, vegetação verdejante, mar agitado, belíssimo, promontórios. No pequeno vilarejo situado naquele lugar de beleza esplêndida, no entanto, as pessoas são terrivelmente tristes, algumas abertamente desajustadas, loucas, depressivas, autodestrutivas.

A pessoa mais sã, mais ajustada, e de absoluto bom caráter é o velho padre James (Brendan Gleeson).

Na primeira sequência do filme, ele é avisado de que será assassinado.

É uma abertura de imenso impacto, uma das mais fortes, surpreendentes e exemplarmente executadas que tenho visto nos últimos muitos e muitos anos.

É um longo plano-seqüência, mas ao contrário do usual nos planos-sequências, a câmara não se move em travellings. Fica parada, mostrando o padre James em close-up, dos ombros até o alto da cabeça; ele está na penumbra, obviamente sentado no confessionário. É um belo homem, de cabelos e barba longos, grisalhos.

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O diálogo é apavorante, e, como a câmara não desgruda do rosto do padre, e não há corte, estamos diante de um tour-de-force para o ator. Sabe-se lá quantas vezes essa mesma longa tomada não terá sido feita e repetida e repetida até que diretor e ator chegassem a essa que o espectador vê – absolutamente brilhante.

O padre vê a pessoa que está ajoelhada junto dele, do outro lado da janela do confessionário, e aguarda o que ele tem a dizer.

– “Provei o gosto de sêmen pela primeira vez aos 7 anos. (A voz é de homem, e faz uma pausa.) Não vai dizer nada?”

– “Sem dúvida é uma espantosa abertura de confissão.”

– “O quê? Isso foi uma ironia?”

– “Desculpe. Vamos começar de novo. (Agora é o padre James que faz uma pausa, como que à procura das palavras, do tom certo.) O que você quer me contar? Estou aqui para ouvir o que você tiver para dizer.”

– “Fui violentado por um padre quando eu tinha sete anos de idade. Oralmente e analmente, como dizem nos laudos periciais. Isso se prolongou por cinco anos. Dia sim, dia não, por cinco anos. Sangrei muito, como o senhor pode imaginar. Sangrei demais.”

– “Conversou com alguém sobre isso?”

– “Estou conversando com o senhor. Agora.”

– “Quero dizer, procurou alguma ajuda profissional?”

– “Por quê? Para aguentar a barra? Aprender a conviver com isso? Talvez eu não queira aguentar a barra. Talvez eu não queira aprender a conviver com isso.”

– “Por que não apresenta uma queixa formal? Você pode depor.”

– “O padre está morto.”

Uma pausa. O padre diz: – “Não sei o que dizer. Não tenho resposta, sinto muito.”

– “Serviria para que se ele ainda estivesse vivo? De que valeria matar o canalha? Não causaria nenhum espanto. Não vale a pena matar um mau padre. Mas matar um bom! Isso seria um choque. Não saberiam o que pensar. Vou matar o senhor, padre. Vou matá-lo porque o senhor não fez nada de errado. Vou matá-lo porque é inocente. Mas não vai ser agora. Vou lhe dar tempo suficiente para pôr sua vida em ordem. Ficar em paz com Deus. No domingo da semana que vem, digamos. Vou encontrá-lo na praia. Matar um padre num domingo. Essa vai ser boa. (Pausa.) Não tem nada para me dizer, padre?”

– “Não neste momento. Não. Mas certamente pensarei em algo até o próximo domingo.”

O espectador não sabe quem fez a ameaça – mas o padre sabe, o tempo todo

E então há o primeiro corte do filme, entram tomadas gerais da paisagem magnífica e os créditos iniciais – versão curtíssima, só os nomes das empresas produtoras e do filme, Calvário.

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Corta de novo ao fim dos créditos iniciais rápidos, e o padre James está dando a comunhão. Vemos uns cinco ou seis fiéis – em close-up – abrindo a boca para receber a hóstia, o corpo de Cristo, como repete o padre para cada um.

Um letreiro avisa que é domingo. Letreiros com os dias da semana irão aparecer ao longo da narrativa, que começa num domingo e termina no domingo seguinte. Do domingo da ameaça de morte até o domingo em que a ameaça seria cumprida.

Na segunda-feira, o padre está diante do bispo (David McSavage), homem um pouco mais novo que ele.

Vale a pena transcrever o diálogo. O bispo diz: – “Então você sabe quem foi.”

– “Sim, eu sei quem foi.”

O espectador verá, ao longo do filme que está começando, o padre James convivendo com diversos dos seus paroquianos. O espectador não sabe quem prometeu matar o padre, mas ele sabe. O tempo todo ele sabe. A câmara não mostrou o homem que fez a ameaça, mas o padre, é claro, o viu perfeitamente.

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O bispo: – “Obviamente, você não concedeu a ele a absolvição.”

– “Ele não pediu.”

– “Bem, aí está. O homem não é um penitente. Não há contrição. Ele está ameaçando cometer um crime. Não está pedindo perdão. A inviolabilidade da confissão não se aplica a esse caso.”

– “Está dizendo que eu deveria ir à Polícia?”

– “Não estou dizendo nada, James. A escolha é sua.”

A escolha é do padre James.

A escolha é sempre de cada pessoa. Chama-se livre arbítrio. A vida é feita de escolhas, a cada momento – algumas pequeninas, insignificantes, outras gigantescas.

O padre James é um homem bom, de um caráter impecável. Não vai fazer as escolhas mais fáceis.

Entre os moradores do vilarejo, há um monte de pessoas repugnantes, repulsivas

O padre James divide a paróquia com um colega, o padre Leary (David Wilmot), homem bem mais jovem do que ele. Na primeira conversa entre os dois, o diretor e autor do argumento e do roteiro, John Michael McDonagh, demonstra cabalmente que o padre Leary, bem diferentemente do colega mais velho, é uma pessoa bastante limitada, para dizer o menos. Demonstra ter preconceito racial, não saber o mínimo de Geografia (achando que sabe).

O espectador conhecerá alguns dos moradores do vilarejo. Não são pessoas assim que a gente, numa tarde especialmente agradável de sábado, gostaria de convidar para tomar um chopinho e bater papo furado.

* Milo (Killian Scott) tem tendências suicidas e homicidas. E é tremendamente antipático.

* Brendan (Pat Shortt), o dono do pub local, é absolutamente antipático, um chato de galocha. Mais tarde veremos também que é violento.

* Frank (Aidan Gillen), o jovem médico, é cínico, cruel, e ofensivamente antipático.

* Simon (Iaach De Bankolé), um imigrante que veio da Costa do Marfim, é insolente, cheio de si, agressivo, repulsivo.

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* Jack (Chris O’Dowd, na foto), o açougueiro, é agressivo, antipático. Há indícios de que bate na mulher, Veronica.

* Veronica (Orla O’Rourke), casada com Jack, trai o marido ostensivamente com Simon – e, segundo o próprio Simon, com diversos outros homens. Não se queixa de apanhar, seja quem for o agressor, o marido ou um dos amantes.

* Michael Fitzgerald (Dylan Moran), o milionário que comprou a mais rica propriedade do lugar, fez a fortuna em transações –provavelmente não muito lícitas, ou morais – no mercado financeiro. Nunca deu a menor importância à mulher, ao filho e à amante, e agora foi abandonado por todos. É um poço de soberba, um sujeito nojento, repugnante.

* Stanton (Gary Lydon), o inspetor de polícia, parece tão perverso quanto os piores bandidos. Paga um pivete agressivo e metido a besta por favores sexuais.

* Freddie (Domhnall Gleeson – filho do ator Brendan Gleeson) assassinou duas garotinhas e comeu um pouco da carne delas.

Gente nada fina.

Há um personagem que foge a essa regra geral de antipatia, repugnância. É um velhinho, um escritor, que está terminando de escrever o que acredita será seu último livro. O nome dele não é falado em momento algum. Ele pede ao padre James uma arma: pretende se matar assim que sentir que sua vida passará a ser insuportável devido à idade. Ele é interpretado pelo veterano ator americano M. Emmet Walsh.

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Há uma bela jovem na vida do padre – mas não vai aí nenhuma incorreção

Várias dessas pessoas desprezíveis ficarão surpresas ao ver o padre James acompanhado por Fionna (o papel da linda, fascinante Kelly Reilly, da trilogia de Cedric Klapisch, de Senhora Henderson Apresenta, de O Vôo), que chega ao lugarejo vinda de Londres, com ataduras nos pulsos que indicam o óbvio. Aos olhares espantados que procuram alguma sacanagem, alguma infração, alguma incorreção, o padre James explica que Fionna é sua filha. Ele foi casado, ele e a mulher tiveram Fionna, a mulher morreu, ele escolheu o sacerdócio.

Gostam-se muito, pai e filha, mas estiveram distantes por muito tempo na vida, e então se estranham – ou ao menos ela não se abre para ele como poderia, como até deveria.

Me pergunto o que esse autor e diretor quis dizer com sua história tristíssima

O que será que esse rapaz John Michael McDonagh quis dizer com essa sua história tristíssima, tão povoada por personagens desprezíveis, repugnantes, pobres, miseráveis, perdidos?

O pano de fundo, sim, o pano de fundo são os muitos crimes cometidos por padres católicos no passado. A Irlanda é um país profundamente católico – e os casos de pedofilia, de abusos sexuais cometidos por padres são muitos. Assim como houve também crimes cometidos por freiras – instituições católicas são acusadas de terem vendido órfãos ou filhos de mães solteiras para famílias ricas de estrangeiros, em especial americanos, como mostra por exemplo o belo Philomena, que Stephen Frears lançou em 2013, baseado em uma história real.

Mas por que uma pessoa que foi abusada na infância por um padre canalha iria querer se vingar exatamente contra um padre bom, que não cometeu crime algum?

Bem, o próprio homem que ameaça matar o padre dá a explicação para isso no primeiro diálogo: – “Não vale a pena matar um mau padre. Mas matar um bom! Isso seria um choque. Não saberiam o que pensar.”

Tá. Dá para entender. Uma vingança não contra o padre canalha específico, que até já morreu – mas contra o que os padres representam, a instituição, a Igreja como um todo. Mesmo sabendo que aquele padre especificamente é bom, não cometeu crime algum.

Mas por que povoar aquele lugarejo – premiado por Deus, ou pela sorte, com uma paisagem tão absolutamente bela – com tanta gente desagradável, abjeta, repulsiva?

Para isso eu realmente gostaria de ter uma resposta.

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O realizador diz que fez o filme sob a influência de Robert Bresson

Não se fala, em momento algum do filme, qual é aquele lugarejo que está sendo focalizado. São citadas duas cidades nos diálogos – Sligo e Wicklow. As duas são mais ou menos tipo Oiapoque e Chuí. Sligo fica no litoral ocidental, bem no Norte da ilha. Wicklow fica no litoral oriental, mais para o Sul.

Claro: a intenção é exatamente não identificar um lugar específico, ficando absolutamente claro que o realizador quer dizer que poderia ser qualquer pequenina cidade irlandesa.

As filmagens, de qualquer forma, foram, em sua maior parte, na região de Sligo. Eta lugar bonito, siô.

Brendan Gleeson havia feito o principal papel no primeiro longa-metragem do diretor John Michael McDonagh, O Guarda/The Guard (2011), um thriller cômico envolvendo o policial irlandês do título, sujeito bastante heterodoxo em seus métodos, drogas e um agente todo certinho do FBI americano (interpretado por Don Cheadle).

Ainda durante as filmagens de O Guarda, diretor e seu ator principal começaram a combinar de fazer um filme sobre um padre. Segundo o IMDb, Brendan Gleeson coloborou ativamente com o roteirista-diretor no desenvolvimento da personalidade do padre James.

Está também no IMDb: John Michael McDonagh tem citado o cineaste francês Robert Bresson como uma importante influência na criação deste Calvário.

Faz sentido. Católico, assumidissimamente católico, Bresson (1901-1999), autor de Um Condenado à Morte Escapou e A Grande Testemunha, era um realizador preocupado com fé, religião, valores morais. A morte era um de seus temas recorrentes – em especial a morte provocada pelo suicídio, tema que, como já foi dito, está muito presente neste Calvário.

Outra informação do IMDb, que não tem nem de longe a importância dessa coisa de McDonagh citar Bresson, mas é interessante: o livro que Fionna está lendo, numa tarde em que ela e o pai vão passear, e o pai adormece, encostado a uma grande pedra, é do escritor americano de ficção e terror H.P. Lovecraft.

Quando acorda da soneca, o padre James pergunta à filha quanto tempo ele dormiu, e ela responde: “For ages… aeons”. Por eras… eternidades. A palavra aeons é extremamente usada por Lovecraft.

Adoro um detalhinho que não tem importância mas tem sabor.

Então, para encerrar. Calvário é um filme extremamente bem realizado em todos os aspectos. As interpretações são soberbas.

É duro demais, é pesado demais. Mas é assim porque escolheu falar de temas importantes. É um belíssimo filme.

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Anotação em junho de 2015

E aqui vai um P.S., em outubro de 2015: no momento de reler o texto para pôr no ar o post, vejo um cartaz do filme em que há a citação de uma crítica, creio que da Time Out: “Wickedly funny!” Malvadamente engraçado. Perversamente, ou travessamente engraçado. Fiquei chocado.

Como assim, engraçado?

Eu de fato tenho problema com humor negro – eu não consigo entender humor negro. Então, de tão chocado que fiquei, cheguei a pensar: será que o filme é, ou pode ser entendido como uma comédia de humor negro?

Não! Mary não tem esse problema que eu tenho, e ficou chocada com o quão sério, pesado, é esse drama.

Fui conferir no IMDb, e o maior site sobre cinema que existe define o filme como drama, e apenas drama.

Mas alguém da Time Out achou perversamente engraçado. Faz tempo que acho as sinopses e resenhas do guia da Time Out chatos, metidos, mal humorados, desagradáveis. O estranho, no entanto, é que produtores do filme gostaram da definição, e puseram no cartaz!

Meu Deus do céu e também da terra.

Calvário/Calvary

De John Michael McDonagh, Irlanda-Inglaterra, 2014

Com Brendan Gleeson (padre James),

e Kelly Reilly (Fiona Lavelle), Chris O’Dowd (Jack Brennan), Aidan Gillen (Dr. Frank Harte), Dylan Moran (Michael Fitzgerald), Isaach De Bankolé (Simon), M. Emmet Walsh (o escritor), Orla O’Rourke (Veronica Brennan), Marie-Josée Croze (Teresa), Domhnall Gleeson (Freddie Joyce), David Wilmot (padre Leary), Pat Shortt (Brendan Lynch), Gary Lydon (inspetor Stanton), Killian Scott (Milo Herlihy), Owen Sharpe (Leo), David McSavage (bispo Garret Montgomery), Michael Og Lane (Mícheál)

Argumento e roteiro John Michael McDonagh

Fotografia Larry Smity

Música Patrick Cassidy

Montagem Chris Gill

Casting Jina Jay

Produção Fox Searchlight Pictures, Irish Film Board, BFI, Lipsync Productions, Reprisal Films, Octagon Films.

Cor, 102 min

***1/2

6 Comentários para “Calvário / Calvary”

  1. Assisti o filme hoje à tarde e tive as mesmas impressões. Sua análise foi a melhor que li na Internet. De fato, o filme aborda temas muito importantes e, naturalmente, um filme sério teria de ser pesado. Assim como você, também vi uma crítica em que colocava o filme na categoria de comédia e fiquei alarmado. Como assim? O filme me fez refletir sobre várias coisas e sua análise detalhada da primeira cena (que gostei muito) me fez ir ainda mais longe na reflexão. Abraço.

  2. Gostei muito da crítica! Sou fã de Brendan Gleeson e quero assistir este filme!

  3. Vi o filme hoje com minha esposa, aliás foi ela que o escolheu, entre muitas outras opções da NET. Achei fantástico, tanto como arte cinematográfica, quanto pelo tema escolhido. Sou ateu, educado em uma escola luterana preparatória para a faculdade de teologia, o que pode explicar a minha atração ao tema. A sua avaliação do filme coincide com a minha em quase tudo. Quanto à sua dúvida sobre o motivo de retratar tanta gente de mau caráter no vilarejo, penso que talvez se justifique para embaralhar o espectador sobre quem seria o assassino. Ou para simbolizar que qualquer pessoa teria motivo para reagir de forma violenta contra os crimes de pedofilia. O autor deixa isso bastante claro no diálogo final, quando o assassino pergunta porque o padre não tomou nenhuma ação em relação a isso. Este seria o verdadeiro crime cometido por todas as pessoas indiferentes.

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