Vocês Ainda Não Viram Nada! / Vous n’avez encore rien vu

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Nota: ★★★½

Aos 90 anos de idade, 57 anos depois de Nuit et Brouillard, 53 anos depois de Hiroshima, Mon Amour, mestre Alain Resnais demonstra que está lépido, fagueiro, em plena forma: Vocês Ainda Não Viram Nada!, de 2012, é um estupor, um encanto, uma beleza.

É uma celebração da arte, do cinema, do teatro, da literatura, do amor, da vida.

É uma peça de teatro dentro de uma peça de teatro dentro de um filme.

Um imenso grupo de grandes, veteranos atores do cinema francês, vários deles habitués dos filmes do mestre, fazendo o papel deles mesmos, se reúne para reinterpretar – juntamente com uma companhia de teatro formada por jovens muito jovens – a lenda de Orfeu e Eurídice, uma história de amor tão forte, tão grande, que continua mesmo após a morte.

Uma maravilha.

Grandes atores recebem o convite para as últimas homenagens a um escritor

A primeira tomada do filme, após os créditos iniciais, é um close-up do ator Lambert Wilson atendendo ao telefone. Não vemos o rosto dele – a câmara está de lado, um pouco por trás do ator, de tal maneira que vemos em primeiro plano sua mão segurando o telefone e um pouco do seu perfil.

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Uma voz pergunta se é Lambert Wilson (na foto acima) que está falando e, depois que ele confirma, recita o seguinte:

– “Estou ligando para comunicar uma notícia lamentável. Seu amigo Antoine d’Anthac morreu agora há pouco. Antes de morrer, ele me deixou instruções precisas a seu respeito. Ele pede que você vá com urgência até a casa dele em Pellon, para que esteja presente na abertura do testamento e à cerimônia fúnebre que acontecerá em seguida. Tenho certeza de que você vai atender a seu último desejo.”

A imagem de Lambert Wilson de perfil ainda está na tela, à esquerda, quando, à direita, surge uma imagem bem semelhante de outro ator, Pierre Arditi. O som do telefone tocando, a voz pergunta se é Pierre Arditi que está no aparelho, e em seguida o mesmo texto é dito a ele.

E o mesmo texto é dito em seguida a Sabine Azéma, Anne Consigny, Anny Duperey, Michel Piccoli, Mathieu Amalric, Hippolyte Girardot, Jean-Noël Brouté, Gérard Lartigau, Michel Robin.

E em seguida todos esses atores chegam à mansão de Antoine d’Anthac – gigantesca, estranha, cheio de amplíssimos salões. Ali são recebidos, um a um, por Marcellin, o mordomo (interpretado por Andrzej Seweryn). Ao se reencontrarem, se reverem, abraçam-se, fazem festa uns para os outros.

E depois se reúnem em um dos grandes salões da espetacular mansão (cujos interiores foram totalmente projetados por Jacques Saulnier, o desenhista de produção que trabalha há muitos anos com Resnais); sentam-se em confortabilíssimas poltronas.

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Os atores assistem a um filme com os ensaios de uma versão moderníssima de Eurídice

Marcellin, o mordomo, anuncia que vai mostrar aos convidados um filme em que o morto falará com eles.

E então põe para rolar numa bela tela do salão um filme em que Antoine d’Antach (interpretado por Denis Podalydès) senta-se numa cadeira de seu escritório, um monte de livros atrás, e se dirige exatamente àquela pequena, especial audiência:

– “Meus caros amigos, muito obrigado por terem aceitado meu convite. Todos vocês, no passado, em idades e momentos diferentes de suas vidas, encenaram minha peça Eurídice. (Eurydice, na grafia francesa.) E, com o passar dos anos, alguns fizeram vários papéis. Fantasmas misteriosos… Obrigado, Sabine Azéma, minha primeira Eurídice. Eu ainda a vejo, muito jovem, um pouco pálida, tremendo e vibrando. Sei que deve estar triste, mas o preto lhe cai bem.”

(Detalhinho: Sabine Azéma, na foto acima, nascida em Paris em 1949, é desde 1998 a Madame Alain Resnais.)

Enquanto Antoine d’Antach vai falando a seus convidados no filme, vemos ora o filme que os convidados vêem, ora os rostos dos próprios convidados. A grande maioria veste preto. Uma das raras exceções é Annie Consigny, belíssima, um pouco mais jovem que os demais atores que representam a si próprios – ela está de vermelho, com um vestido longo, um pouquinho decotado.

– “Obrigado, Anne Consigny, minha outra Eurídice.”

E d’Antach vai agradecendo a um por um de seus convidados, enquanto a câmara do diretor de fotografia Eric Gautier vai focalizando o rosto de cada um citado pelo morto.

– “Obrigado por terem vindo a essa reunião bizarra, na qual não estarei.”

E aí d’Antach revela o propósito do convite àqueles atores que haviam encenado sua peça Eurídice:

– “Há algumas semanas, um grupo de jovens atores, a Compagnie de la Colombe, me pediu autorização para montar Eurídice. O diretor me enviou uma gravação dos ensaios. Porém, devido às circunstâncias, peço a vocês que avaliem o mérito desse pedido. (Uma pausa, e então ele se dirige ao mordomo.) Marcellin, prossiga.

Que coisa mais antiga, a vanguarda!

Marcellin aciona uma tecla do controle remoto. E então aquele grupo excelso de atores – assim como o espectador – começa a ver um filme do ensaio dos garotos da Compagnie de la Colombe de uma encenação moderna, ousada, diferente, da peça sobre os personagens da mitologia grega.

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Eles começam empurrando para o centro do que seria o palco diversos tambores de óleo, de variadas cores. Como é um grupo jovem, extremamente jovem, vai fazer uma transcriação vanguardista da peça original – uma dessas coisas de vanguarda que todo mundo já viu desde os anos 60, ou muitíssimo antes.

(E aqui me permito rapidíssima digressão. Que coisa mais antiga, a vanguarda. Me lembrei agora de Cemitério de Automóveis, de Fernando Arrabal, que um grupo vanguardista apresentou em São Paulo ali por 1968, 1969, num teatro improvisado no Bixiga, acho que na 13 de Maio. Era tudo muito parecido com a transcriação vanguardista da peça Eurídice que a Compagnie de la Colombe apresenta para os atores reunidos para o funeral de Antoine d’Antach e o espectador de Vocês Ainda Não Viram Nada! Isso porque não vivi na Paris dos anos 20, onde tudo era vanguarda.)

Os ensaios do grupo jovem foram filmados por Denis Podalydès, de la Comédie Française

Quando os jovenzíssimos atores da moderníssima Compagnie de la Colombe começam a nos mostrar sua vanguardística versão de Eurídice, estamos com exatos 14 minutos deste filme deslumbrante que dura 115.

O que acontece a partir daí é que, enquanto assistem ao ensaio dos garotos, aquele grupo de veteranos atores passa também a interpretar o texto da peça Eurídice. E então vemos, alternadamente, três pares de Orfeus e Eurídices: Pierre Arditi e Sabine Azéma, Lambert Wilson e Anne Consigny, e os garotos da Colombe, Sylvain Dieuaide e Vimala Pons.

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Anny Duperey (na foto acima) interpreta a mãe; o veteraníssimo Michel Piccoli (87 anos em 2012, o ano de lançamento do filme), faz o pai de Orfeu.

Os demais grandes atores fazem os outros personagens da peça Eurídice que, no filme, é de autoria de Antoine d’Antach.

Antoine d’Antach, claro, não é uma pessoa real, ao contrário de Pierre Arditi, Sabine Azéma, Lambert Wilson, Anne Consigny, Anny Duperey, Michel Piccoli e os demais atores que fazem o papel de si mesmos em Vocês Ainda Não Viram Nada!

Na verdade, a peça Eurídice que é interpretada por vários atores – os veteranos do cinema francês e os jovens de um grupo de teatro que de fato existe – é de autoria de Jean Anouilh. Os créditos iniciais haviam avisado isso ao espectador. Lá está dito que o roteiro do filme se baseia nas peças Eurydice e Cher Antoine ou l’amour raté, de autoria de Jean Anouilh (1910-1987).

Um dos detalhes fantásticos deste filme que vai fundo na metalinguagem – uma peça de teatro dentro de uma peça de teatro dentro de um filme – é que as cenas interpretadas pela trupe Compagnie de la Colombe foram filmadas por Denis Podalydès, o ator que interpreta o fictício Antoine d’Antach.

Denis Podalydès, ator, diretor e roteirista, é membro da augusta Comédie Française, a academia francesa de atores de teatro. Desde sempre, pelo menos desde os anos 30, quando aparece nos créditos iniciais o nome de um ator que pertence à Comédie Française, abaixo de seu nome tem que estar escrito: “de la Comédie Française”.

Os créditos de Vocês Ainda Não Viram Nada! informam que Denis Podalydès, Andrzej Seweryn (que faz o mordomo Marcellin) e também Michel Vuillermoz são de la Comédie Française.

O próprio Resnais é um dos dois autores do roteiro original – mas usa pseudônimo

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A idéia da trama desse filme maravilhoso – que mistura várias formas de interpretar uma peça de teatro que trata de um mito fascinante de um amor que sobrevive à morte – é creditada a Alex Reval e Laurent Herbiet.

Segundo o IMDb, Laurent Herbiet, nascido em 1961 (o ano em que Alain Resnais realizou O Ano Passado em Marienbad, um filme tão de vanguarda que continuará sendo vanguarda em 3961, se não tivermos destruído a Terra até lá), é autor ou co-autor de sete roteiros, inclusive de Meu Coronel, de 2006, dirigido por ele mesmo e baseado em história de Costa-Gavras, e de Ervas Daninhas, o filme de Resnais de 2009.

O roteiro de Ervas Daninhas é assinado pela mesma dupla que assina o roteiro deste filme aqui: Alex Reval e Laurent Herbiet.

Alex Reval – eu não sabia disso – é um pseudônimo de Alain Resnais!

Uma figura, mestre Resnais!

Um dos maiores realizadores da História do cinema. Já seria um dos maiores realizadores do cinema mesmo se não tivesse feito filme algum a partir de, digamos, 1970. Depois de muito velhinho, nos agraciou com pérolas especiais, como On Connaît la Chanson, de 1997, um filme colorido e alegre como os de Jacques Demy, Os Guarda-Chuvas do Amor e Duas Garotas Românticas, e ainda Medos Privados em Lugares Públicos/Coeurs, de 2006, um delicioso mosaico, reunião de várias histórias entrecruzadas, tão absolutamente magnífico que até em São Paulo, esta megalópole incrustrada num país atrasadão do Thiers Monde, fez sucesso, tendo permanecido mais de um ano em cartaz.

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Como em geral filmou histórias criadas por outras pessoas – imprimindo em todas elas sua marca registrada, pessoal, intransferível –, mestre Resnais parece se envergonhar de dizer que ele mesmo cria suas próprias histórias. O IMDb registra apenas seis filmes como tendo sido escritos por ele, em geral em colaboração com outros artistas. Três desses seis têm o roteiro assinado por Alex Reval, seu pseudônimo: o já citado Ervas Daninhas, este aqui e mais Aimer, Boire et Chanter, que, em dezembro de 2013, estava em fase de pós-produção, para lançamento em 2014. A direção de Aimer, Boire et Chanter é dele mesmo, Alain Resnais. Em 2014, quando o filme for lançado, o jovem, lépido, fagueiro mestre estará com 92 anos!

Parece que quanto mais velho fica mais alegre Resnais se torna

Amar, Beber e Cantar.

Alain Resnais é a prova viva de que envelhecer não significa necessariamente ficar rabugento.

Parece que, quanto mais velho ele fica, mais alegre se torna.

Nuits e Brouillards, seu filme de 1955, que o tornou mundialmente famoso entre os cinéfilos mais espertos e os críticos, era um documentário sobre os campos de concentração nazistas, filmado neles mesmos – um choque, um estupor, apenas dez anos depois do fim da Segunda Guerra.

Hiroshima, Mon Amour é uma história de amor adúltero entre uma atriz francesa (Emmanuelle Riva, que faria babar os cinéfilos do mundo inteiro com Amour, de Michael Haneke, de 2012) e um arquiteto japonês casado; o filme mostrava o horror da cidade japonesa destruída pela primeira bomba atômica usada em guerra e o horror da mesma Segunda Guerra na França ocupada pelos nazistas.

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Com O Ano Passado em Marienbad, desestruturou para todo o sempre a narrativa, misturando passado, presente, imaginação, sonho, realidade.

Com A Guerra Acabou, de 1966, com argumento e roteiro de Jorge Semprun, fez um dos mais sérios, profundos, inquietantes filmes políticos da História do cinema. A Guerra Acabou não teve, creio, todo o reconhecimento que merecia – mas isso é facilmente explicável. Semprun e seu amigo Yves Montand, que faz o protagonista do filme extraordinário, insurgiam-se com vigor contra o stalinismo, e em 1966 a crítica, a intelectualidade, a intelligentzia ainda não estava preparada para isso.

Ser contra o stalinismo não significa defender a toda prova o capitalismo, e em 1980, com Meu Tio da América, baseado nas teorias comportamentalistas do filósofo Henri Laborit, Resnais fez um espetacular filme sobre os males da competitividade nos locais de trabalho.

Velhas, clássicas canções estão nos filmes recentes do mestre

Ser sério, consciente, inteligente, não significa ser contra a alegria, e então, em On Connaît la Chanson, Resnais fez seus atores cantaram algumas das canções francesas mais conhecidas, mais clássicas.

As canções clássicas, perfeitas, parecem ser do gosto do velhinho. O trailer deste Vocês Ainda Não Viram Nada! já é uma obra de arte, nesta época em que os trailers dos filmes são looooongos e contam toda a história do filme. Ao som de “Les Comédiens”, de e com Charles Aznavour, mostram-se os rostos daquele grupo de grandes atores. Só isso: uma bela canção ao fundo, falando sobre atores, músicos, e o rosto de uma penca de belos atores.

A canção “Les Comédiens”, fundamental no trailer, não aparece no filme.

Nos créditos finais, o que ouvimos é uma canção cantada por Frank Sinatra em uma época um tanto menor de sua carreira, seus anos na Reprise, década de 80, em que já não era mais a voz tão perfeita quanto havia sido. A música é “It was a very good year” – uma canção com letra que fala lindamente de coisas importantes, o passar dos anos, o amadurecimento.

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Depois de velho, mestre Resnais expôs sua paixão pelas belas canções.

E então seu novo filme se chama Amar, Beber e Cantar.

Claro que o título parece uma gozação de Comer, Rezar, Amar.

Amar, beber, cantar.

“O que se leva desta vida é o que se come, é o que se bebe, é o que se brinca, ai, ai”, diz a canção de Pedro Caetano.

Do lado de lá, para onde foi jovem demais (não acho que seja necessário viver mais de 90 anos, mas é um absurdo um gênio morrer aos 52), François Truffaut deve ter aplaudido de pé Vocês Ainda Não Viram Nada!, do realizador que começou alguns anos antes dele mesmo.

Interessante: me lembrei de Truffaut ao ver o filme do mestre Resnais.

Vocês Ainda Não Viram Nada! faz lembrar O Último Metrô. São, ambos, uma celebração da arte, do cinema, do teatro, da literatura, do amor, da vida.

Anotação em dezembro de 2013

Vocês Ainda Não Viram Nada!/Vous n’avez encore rien vu

De Alain Resnais, França-Alemanha, 2012

Com Pierre Arditi (ele mesmo/Orfeu nº 1), Sabine Azéma (ela mesma/Eurídice nº 1), Lambert Wilson (ele mesmo/Orfeu nº 2), Anne Consigny (ela mesa/Eurídice nº 2), Anny Duperey (ela mesma/a mãe), Michel Piccoli (ele mesmo/o pai), Mathieu Amalric (ele mesmo/M. Henri), Hippolyte Girardot (ele mesmo/Dulac), Jean-Noël Brouté (ele mesmo/Mathias), Gérard Lartigau (ele mesmo/o pequeno diretor), Denis Podalydès (Antoine d’Anthac), Michel Robin (ele mesmo/o rapaz do café), Andrzej Seweryn (Marcellin, o mordomo), Jean-Chrétien Sibertin-Blanc (ele mesmo/o secretário do comissário), Michel Vuillermoz (ele mesmo/Vincent),

e os atores da Compagnie de la Colombe: Vimala Pons (Eurídice), Sylvain Dieuaide (Orfeu), Fulvia Collongues (a mãe), Vincent Chatraix (o pai), Jean-Christophe Folly (M. Henri), Vladimir Consigny (Mathias), Laurent Ménoret (Vincent), Lyn Thibault (a jovem e o garçom do café), Gabriel Dufay (o garçom do hotel)

Roteiro Alain Resnais (sob o pseudônimo de Alex Reval) e Laurent Herbiet

Baseado nas peças Eurydice e Cher Antoine ou l’amour raté, de Jean Anouilh

Fotografia Eric Gautier

Música Mark Snow

Montagem Hervé de Luze e Sylvie Lager

Produção F Comme Film, StudioCanal, France 2 Cinéma, Alamode Film, Christmas In July, Canal+, Ciné+. DVD Imovision.

Cor, 115 min.

***1/2

6 Comentários para “Vocês Ainda Não Viram Nada! / Vous n’avez encore rien vu”

  1. Belíssima e rica resenha, Sérgio. E sua lembrança da peça “Cemitério de Automóveis”, ao falar da antiguidade da vanguarda, está correta: a convite da grande atriz e empresária Ruth Escobar, o encenador argentino Victor García(1934-1982), radicado em Paris, veio ao Brasil e dirigiu dois espetáculos que na época tiveram grande sucesso: Cemitério de Automóveis, em 1968, do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal e, depois, O Balcão, do escritor francês Jean Genet. Ambos, se minha memória não falha, no teatro que ganhou o nome da própria atriz e empresária: Ruth Escobar.

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