Lovelace

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Nota: ★★★☆

Lovelace é um filme muito bom, mas, além disso, é importante, necessário. Era mesmo preciso contar a história de Linda Lovelace.

Há personalidades importantes, nas mais diversas áreas, cujas vidas retratadas em filmes que, por mais bem realizados que sejam, não chegam a ser muito bons, ou são a rigor desnecessários, simplesmente porque suas vidas não têm nada de especial.

O caso mais flagrante talvez seja o do cantor e compositor Buddy Holly. Sua obra tem imensa importância na música popular; ele influenciou Bob Dylan, Beatles, Rolling Stones, Don McLean, Elvis Costello, Steve Winwood, Eric Clapton – mas sua vida curtíssima, até mesmo por ter sido tão absurdamente curta, não tem nada que justifique virar um filme. Faltam fatos, dramas, impactos – pathos, enfim. O único fato excepcional da vida de Buddy Holly – fora sua obra, repito – foi exatamente sua morte, aos 22 anos, num acidente aéreo em Iowa, em 1959.

Assim, o filme The Buddy Holly Story, de 1978, é desinteressante – e pouco acurado, segundo muita gente apontou na época e depois.

É completamente diferente, é o oposto da vida de Linda Lovelace.

Como tem drama, a vida dessa moça. Glória, muita glória, rápida e fulgurante – e muito drama. Drama demais.

Uma garota com uma mãe religiosa, extremamente conservadora

Não sei o que poderá achar do filme um espectador que conheça bastante sobre a vida de Linda Lovelace. Mas será há muita gente que conhece bastante?

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Confesso que sabia pouquíssimo, quase nada – só o básico do básico: Linda Lovelace foi a protagonista de Garganta Profunda/Deep Throat, de 1972, um dos filmes pornôs mais famosos de toda a história do cinema. O nome Garganta Profunda teria sua imensa fama tornada ainda maior por causa do escândalo Watergate, iniciado exatamente no ano de lançamento do filme, e que acabaria levando à renúncia o presidente Richard Nixon, em 1974. Um dos informantes da dupla de repórteres do Washington Post que acompanhou o caso desde o início, Bob Woodward e Carl Bernstein, foi chamado por eles de Deep Throat.

Isso era tudo o que eu sabia.

Watergate e o informante que passou para a história com o nome do filme não são citados em Lovelace, a cinebiografia de Linda Lovelace.

Mas a importância do filme Garganta Profunda, seu sucesso espetacular, a controvérsia nacional que ele desencadeou (sua exibição foi proibida no Estado de Nova York por um juiz), tudo isso é apresentado bem no início da narrativa, enquanto a câmara mostra uma Linda Lovelace (interpretada por Amanda Seyfried) angustiada, numa banheira, fumando um cigarro.

A imagem da atriz mergulhada em dura angústia é entremeada por cenas de programas de TV da época.

Há então um flashback; um letreiro informa que estamos em Davey, Flórida, em 1970. Linda está tomando banho de sol no quintal de sua casa, junto com a amiga Patsy (Juno Temple). Usam shorts e a parte de cima do biquíni. Conversam; Patsy deita-se de bruços, Linda também; a primeira desamarra o sutiã do biquíni, e incentiva Linda a fazer o mesmo, para não ficar com a marca nas costas.

lovelace d18 _143.NEFDorothy, a mãe de Linda (interpretada por uma Sharon Stone difícil de ser reconhecida), aparece na porta da cozinha para o quintal e dá uma tremenda bronca na filha.

Rapidamente, o filme mostra que Dorothy é uma católica fervorosa, conservadora, extremamente rígida, bem mais até que seu marido, o pai de Linda, John (Robert Patrick).

Naquele momento, Linda está com 21 anos; veremos que aos 20 ela tinha tido um namoro, uma trepada não segura, sem qualquer preventivo, e engravidara. A mãe deu a criança para adoção, e a família se mudou de Nova York para a Flórida para fugir do escândalo.

Na Flórida, Dorothy tratava a filha já maior de idade como se tivesse 14 ou 15 anos; ela jamis podia chegar em casa depois da 11 da noite.

Num bar-boate a que vai com Patsy, Linda conhece um sujeito chamado Chuck Traynor (Peter Sarsgaard), o dono do lugar. O Chuck que o espectador vê nesse início de narrativa é um apaixonado por maconha, simpático, boa prosa, capaz de causar boa impressão num jantar na casa dos conservadores pais da garota.

Os dois se apaixonam, trepam, casam-se. Ele a inicia na prática da felação – e ela se revela um talento assombroso.

Chuck a levará então para amigos da lucrativíssima indústria do cinema pornô.

Atenção: a partir daqui, spoilers. Revelam-se fatos que acontecem depois da metade do filme

O roteirista Andy Bellin construiu a narrativa em duas partes. É quase como se ele tivesse se informado bastante sobre a discussão travada em 2013, o ano de lançamento do filme, neste distante país tropical a respeito de biografias autorizadas x biografias não autorizadas.

Na primeira parte de Lovelace, temos assim uma espécie de biografia autorizada: conta-se a história oficial, os fatos que o público americano ficou conhecendo da vida da garota que virou da noite para o dia o que o IMDb chama de “a mais famosa estrela pornô de todos os tempos”

Lá pelo meio do filme de 93 minutos, um letreiro avisa: “Seis anos depois”. Mas não é apenas um corte no tempo que acontece. É um corte na forma de narrar a história.

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A partir daí, volta-se de novo no tempo, para mostrar então o lado escondido da relação entre Chuck Traynor e Linda, o lado feio, sujo, asqueroso, que incluía brutais maus tratos, abusos constantes.

É como se agora estivéssemos diante da biografia não autorizada, em que se vê a verdade sob o glamour do que se permitiu contar antes.

Fascinantemente, essa mudança se dá porque, seis anos depois de finalmente conseguir se separar do marido abusador, Linda resolveu escrever sua biografia contando o que antes não havia revelado, todo o lado violento, dramático, apavorante, de sua relação com Chuck.

Garganta Profunda rendeu US$ 600 milhões. A atriz recebeu US$ 1.250,00

Ao final do filme, como costuma acontecer em cinebiografias, letreiros dão ao leitor informações sobre o que aconteceu com aquelas pessoas depois do que é mostrado nas telas.

Como já avisei ao eventual leitor que há spoilers, e como são fatos históricos mesmo, acho que dá para registrar aqui o que dizem dois desses letreiros.

Um é chocante pelo que demonstra de falta de punição para um criminoso: depois que terminou seu casamento com Linda Lovelace, Chuck Traynor tornou-se empresário e marido de Marilyn Chambers, que veio a ser a segunda estrela pornô mais famosa dos anos 70.

Um é chocante por todos os aspectos possíveis e imagináveis: consta que Deep Throat rendeu mais de US$ 600 milhões. Linda Lovelace recebeu US$ 1.250,00.

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Uma tragédia: como é difícil as mulheres abusadas se livrarem de seu abusador

Lovelace faz lembrar – pelo tema, garota novinha que vira objeto de desejo de milhões de homens, garota novinha que é manipulada pelo marido, e até pela presença nas duas histórias de Hugh Heffner, o criador do império Playboy, aqui interpretado por James Franco – Star 80, de 1983, o último dos únicos cinco filmes que o genial Bob Fosse dirigiu na vida.

Star 80 também se baseia em história real, a história de Dorothy Stratten, que foi coelhinha da Playboy, playmate do ano de 1980, e teve vida trágica como a da Linda Lovelace. Como sempre há coincidências na vida, Eric Roberts trabalha nos dois filmes.

Lovelace também faz lembrar outra cinebiografia, Bettie Page, de Mary Harron, de 2005, um filme extremamente bem realizado em todos os aspectos, em que a deslumbrante Gretchen Mol interpreta a mulher que ficou conhecida como um dos maiores símbolos sexuais da história dos Estados Unidos, “a maior pin-up do universo”, “a rainha das curvas”, “o anjo escuro”.

Esses três filmes fazem importantes considerações sobre essa coisa de moças belas virarem símbolos sexuais, numa civilização ainda machista e em que o sexo é um dos temas mais permanentes. Gente séria, estudada, sociólogos, antropólogos, têm nesses filmes extraordinário material de análise. Não vou me aventurar a fazer considerações mais sérias, profundas, amplas; não tenho perfil para isso.

Apenas registro que Lovelace mostra muito bem essa realidade – absurda, inaceitável, inacreditável – de como é difícil as mulheres abusadas se livrarem de seu abusador.

Claro: o certo seria, diante do primeiro leve tapa, a mulher cascar fora – e pronto.

Mas as coisas não são tão simples. Na realidade, na vida real, é tudo mais complexo. Há o medo profundo que a mulher tem do abusador; há o simples fato de que muitas mulheres abusadas não têm para onde fugir, não têm o dinheiro necessário para escapar e tentar recomeçar.

Já caminhamos muito. As coisas já melhoraram demais. Basta pensar que há apenas meio século as mulheres adquiriram o direito de votar. Mas ainda estamos muito, muito longe de um mundo em que, para citar o verso maravilhoso, a tigresa possa mais do que o leão.

Ou possa tanto – o que, claro, é o ideal.

Lovelace passa muito longe da apelação: é um filme extremamente sóbrio

É impressionante como Lovelace consegue ser pouco apelativo. Como consegue ser sóbrio, sem apelar para cenas que beirem a pornografia – mesmo sendo a história de uma das atrizes de filmes pornográficos mais famosas do cinema.

Nada contra a pornografia, pelamordedeus. Não sou moralista, e muito menos fundamentalista. Se não houver criança envolvida, não há qualquer problema com a pornografia. Quem quiser, que mergulhe nela. Quem não quiser, que não mexa com ela, e pronto.

Não gosto do que chamo de quasepornô: as obras que fingem que não são pornô, mas na verdade são, ou gostariam de ser. Tipo Instinto Selvagem/Basic Instinct, ou Diário Proibido/Diario de una Ninfómana. Não gosto de hipocrisia.

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Lovelace poderia perfeitamente ter umas ousadas cenas de sexo – seguramente teria uma bilheteria maior.

Mas os realizadores do filme, a dupla Rob Epstein e Jeffrey Friedman, preferiram a sobriedade. Falam de filme de sacanagem sem ser sacanas, safados.

Ao contrário de tantas atrizes, Linda Lovelace morreu cedo

Incrível essa garotinha Amanda Seyfried. Nasceu em 1985 – credo em cruz, tem dez anos menos que minha filha! –, e já tem 38 títulos na filmografia. Mas não é tanto o número absurdo que espanta, mas a quantidade de filmes bons e/ou importantes em que ela já trabalhou.

Tem beleza, talento – e sorte para ser chamada para bons papéis.

Está muito, muito bem, no papel dessa trágica Linda Lovelace. Para interpretar a atriz de fama tão imediata quanto imensa, escondeu um de seus predicados, os olhos de um faiscante azul. Botaram neles lentes para transformá-los no castanho da verdadeira Linda Lovelace.

zzlovelace7Lá em cima, quando citei o filme sobre a vida curtíssima e sem pathos de Buddy Holly, mencionei que The Buddy Holly Story foi muito criticado por conter erros factuais.

Lovelace, belo filme, contém erros factuais. Talvez por pretender fazer uma defesa da verdadeira Linda Lovelace (na foto), por respeito à luta que ela empreendeu mais tarde contra a indústria da pornografia e os abusadores, Lovelace afirma que ela fez um único filme, o Deep Throat original. Não é verdade. Ao contrário do que Lovelace afirma mais de uma vez, Linda aceitou fazer Deep Throat Part II, de 1974. E ainda fez, em 1975, Linda Lovelace para Presidente.

As cinebiografias não se obrigam a ser extremamente fiéis à verdade dos fatos. É permitida alguma licença poética. Mas acho que nisso o filme cometeu um pecadinho. Admitir que a moça topou fazer mais dois filmes não diminuiria a importância da luta que ela travou depois, nem a transformaria num ser desprezível, menor.

Diversas atrizes do cinema americano são longevas, vivem até os 80 e muitos, às vezes 90 e muitos anos. Poucos dias antes de vermos Lovelace, morreu Eleanor Parker, aos 91. Bela Eleanor Parker. Pouca gente se lembrou dela.

Linda Lovelace morreu cedo. Não tão cedo quanto Buddy Holly, mas muitíssimo mais cedo do que tantas atrizes e atores e diretores. Nascida um ano antes de mim, em 1949, morreu – em consequência de um acidente de carro – em 2002, quando tinha apenas 53 anos. Haviam-se passado apenas 22 anos que ela publicara seu livro de memórias, Ordeal (provação), e começara uma nova vida, de ativista contra o abuso doméstico.

A nova vida de Linda Lovelace, que então se assinava Linda Marchiano, após novo casamento, durou exatamente os anos que deram para Buddy Holly viver.

Anotação em dezembro de 2013

Lovelace

De Rob Epstein e Jeffrey Friedman, EUA, 2013.

Com Amanda Seyfried (Linda),

e Peter Sarsgaard (Chuck), Sharon Stone (Dorothy Boreman), Robert Patrick (John Boreman), Juno Temple (Patsy), Chris Noth (Anthony Romano), Bobby Cannavale (Butchie Peraino), Hank Azaria (Gerry Damiano), Adam Brody (Harry Reems), Chloë Sevigny (jornalista feminista), James Franco (Hugh Hefner), Debi Mazar (Dolly), Eric Roberts (Nat Laurendi)

Roteiro Andy Bellin

Fotografia Eric Alan Edwards

Música Stephen Trask

Montagem Robert Dalva e Matthew London)

Produção Animus Films, Eclectic Pictures, Millennium Films, Telling Pictures. DVD Paris Filmes

Cor, 93 min

***

8 Comentários para “Lovelace”

  1. Não gostei do filme.
    Achei muito superficial e tendencioso.
    Há grandes dúvidas se Linda realmente sofria abusos, ou, se participou livremente do filme. Aliás, assistindo ao filme “Garganta profunda” é díficil imaginar que ela estava fazendo aquilo de modo forçado… Quando ao desempenho dos atores, foi realmente formidável. Melhor do que o filme “Lovelace”, é o documentário “Inside Deep Throat”, onde pessoas que participaram do filme dão depoimentos sobre o que de fato ocorreu.

  2. Embora eu não veja pornôs e não tenha o menor interesse pelo assunto, nem pela vida dos atores (sabia da existência do filme Garganta Profunda por causa da minha cultura inútil), fiquei com vontade de ver o filme. Gosto de biografias e cinebiografias, e histórias sobre abuso e violência contra a mulher sempre me interessam.
    Ótimo texto, como sempre.

  3. Linda sofreu abuso, e fez o filme força. Dizer que ela estava gostando de fazer o filme é de muito mau gosto, vi algumas cenas do filme, e percebi de cara como a mulher estava distante do que estava fazendo, do que estava “atuando”. Primeiro achei ser falta de talento, depois com algumas pesquisas achei o motivo. Poxa, tem cenas do filme que aparece os hematomas dela. As controvérsias vêm daqueles que lucraram com o filme e o abuso que ela sofreu. Ela poderia não ser uma santa, mártir ou alguém exemplar, mas era vitima, principalmente do seu marido. O documentário the real linda lovelace deixa bem claro isso, já que o próprio Chuck deu entrevista e confirma algumas das acusações de Linda.

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