Adeus, Minha Rainha / Les Adieux à la Reine

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Nota: ★★★☆

A idéia básica é um brilho: acompanhamos a intimidade de um dos personagens mais famosos da História ao longo de quatro dias que – dá para dizer sem medo de errar – mudaram o mundo. A personagem é Maria Antonieta; praticamente toda a ação do filme se passa no Palácio de Versalhes. Começa exatamente no dia 14 de julho de 1789, o dia da queda da Bastilha, o marco do início da Revolução Francesa.

Mas a história é contada através dos olhos não da rainha, nem de um aristocrata da corte de Luís XVI, e sim de uma pessoa comum, uma moça do povo, Sidonie Laborde, uma das empregadas da corte, que tinha a função de ler para a soberana. Uma leitora – de romances, peças de teatro, ensaios, informações da imprensa sobre moda, o que fosse.

A realização é gloriosa. As três atrizes que fazem os papéis principais são belas e talentosas, e se encaixam à perfeição na pele de seus personagens: a garotinha Léa Seydoux (na foto abaixo), que explodiu como uma estrela no cinema francês mais ou menos como Jennifer Lawrence no de Hollywood, faz a protagonista Sidonie. Parece um vulcão de sensualidade até então guardada a sete chaves, prestes a explodir.

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A belíssima Diane Kruger faz Maria Antonieta – com as vantagens adicionais de falar francês com ligeiro sotaque alemão, como a rainha, e estar com a mesma idade do personagem à época dos fatos, cerca de 35 anos. E Virginie Ledoyen brilha também como a duquesa Gabrielle de Polignac, a protegida, a maior amiga e – segundo o filme mostra – a grande paixão da rainha.

Em torno das três atrizes principais, há todo um elenco soberbo.

E a câmara do realizador e co-roteirista Benoît Jacquot e seu diretor de fotografia Romain Winding é não menos que estupenda. É uma câmara que se move (cinema, sempre é bom lembrar, vem da palavra grega para movimento). Move-se com suavidade numa das primeiras sequências, em que se encontram a rainha e a mulher do povo que lê para ela; aproxima-se do colo da rainha em um grande ultra espetacular close-up. Move-se em direção ao colo da jovem leitora. Faz um super hiper close-up das mãos da rainha segurando as mãos da moça pobre, acariciando o braço da moça.

Bem mais tarde, num momento de clímax, em que a rainha recebe em seus aposentos a duquesa amada, a câmara se move do rosto de uma para outra, em super close-up. Dá para ver os poros da pele da rainha loura e da duquesa morena, dá para sentir explodindo na tela a tensão sensual das duas mulheres.

Mas, sobretudo, a câmara brilha quando persegue a jovem Sidonie Laborde enquanto ela caminha pelos longos corredores apinhados de gente nas alas pobres do Palácio de Versalhes, as alas dos empregados, dos servos. Sidonie percorre quase correndo os corredores, passando em meio a servos e aristocratas que andam feito barata tonta segurando velas naquele Titanic à beira da viagem para o fundo do Atlântico – e lá vai a câmara atrás dela, em velocidade estonteante.

Adeus, Minha Rainha tem alguns dos mais belos travellings que o cinema nos deu nos últimos muitos anos.

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Versalhes como o Titanic, o 14 de julho de 1789 como o 11 de setembro de 2001

A menção ao Titanic não é à toa, ao acaso – nem é uma sacada minha. A comparação entre o Palácio de Versalhes naqueles dias de julho de 1789 com a tragédia do transatlântico foi feita pelo próprio Benoît Jacquot, em entrevistas sobre o filme. “É o Titanic, essa história!”, ele declarou. “Uma espécie de navio considerado como o mais belo do mundo que, de repente, em uma noite, começa a fazer água, dando início a um pânico formidável.”

Versalhes como o Titanic. O 14 de julho de 1789 (o 14 de julho, é bom lembrar, é a data nacional da França, o 7 de setembro deles) como o 11 de setembro de 2001. O produtor do filme, Jean-Pierre Guérin, fez a comparação entre as datas. O dia da queda da Bastilha marca um corte brutal entre o Ancien Régime, o tempo das monarquias absolutistas, e o início do que viria a ser a França moderna, que se crê a pátria da Liberdade Igualdade Fraternidade. Nada mais seria como antes – assim como aconteceria com o 11 de setembro de 2001.

A ação de Adeus, Minha Rainha começa ao alvorecer do dia em que a monarquia absolutista chocou-se com o iceberg e começou a afundar – e o filme mostra a data em um letreiro: “Versalhes, 14 de julho de 1789”. A jovem Sidonie Laborde acorda às 6 da manhã, e tem que se apressar para estar a postos, junto dos aposentos de Maria Antonieta, para o caso de a soberana querer chamá-la para ouvir a leitura de alguma obra.

Sidonie coça os braços picados por mosquitos. Não conseguirá evitar, e coçará de novo os braços na presença da rainha, algumas horas depois. A rainha percebe, vê a vermelhidão nos braços da moça, as picadas transformadas em feridas pelas unhas dela, e pede a Madame Campan (Noémie Lvovsky, num belíssimo desempenho), sua primeira camareira, que providencie uma loção pertencente a ela própria, a soberana. Passará ela mesma a loção nos braços da moça. Há ali, naquela sequência, em que a câmara chega muito perto da pele das duas mulheres, uma evidente tensão sexual.

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Maria Antonieta e a moça do povo lêem juntas, as cabeças bem próximas uma da outra, trechos de uma peça de teatro. Mas a rainha logo se enfada com aquilo, pega uma revista com desenhos de vestidos, e pede que sua leitora leia para ela o que diz a revista. Fixa a vista num determinado modelo de vestido, apaixona-se por ele, dá ordens para que sua figurinista venha à sua presença: quer porque quer um vestido igual àquele que ilustra a revista, com aquele bordado específico.

No dia em que o povo tomou a Bastilha, a rainha da França queria um vestido novo com um determinado bordado.

O filme mostra Maria Antonieta como uma maníaca-depressiva

A Maria Antonieta que Adeus, Minha Rainha retrata é uma mulher multifacetada. É capaz de se ater a bobagens, trivialidades, frescuras – mas tem também momentos de grandeza. Sofre com as notícias que chegam de Paris – o casco do navio se rompeu, entram rios d’água na monarquia –, mas sofre mais ainda porque sua amiga duquesa não veio vê-la. Apieda-se da pobre serve que lê para ela e sofre com picadas de mosquito, mas no momento seguinte é arrogante, quase brutal. Às vezes mostra ternura, afeto pela serva Sidonie, mas é também capaz de preparar para ela uma perigosa armadilha.

A sensação que se tem é que os roteiristas Benoît Jacquot e Gilles Taurand quiseram mostrar Maria Antonieta quase como o que até algumas décadas atrás era chamada de psicótica maníaca-depressiva, e que agora, nestes tempos do politicamente correto, se define como bipolaridade. Pessoa que alterna euforia com depressão, que muda de estado de espírito, de humor, brutalmente, rapidamente.

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O roteiro do filme se baseia no romance homônimo – Les Adieux à la Reine, no original – publicado em 2002 pelas edições Seuil. O romance histórico, que recebeu no mesmo ano de lançamento o prêmio Femina, é de autoria de Chantal Thomas, uma escritora e pesquisadora nascida em 1945 em Lyon. Tem currículo fino; é especialista em século XVIII, já deu aula em diversas universidades da França e dos Estados Unidos, recebeu o título de oficial da ordem de Artes e Letras, foi uma das presidentes de honra do prêmio Marguerite Duras e presidente da CNRS, o centro nacional da pesquisa científica.

Dá para perceber que a descrição que a autora faz da vida da corte se baseia em muita pesquisa, estudo sério. Retrata o que tudo indica ser a verdade rigorosa dos fatos. Os personagens que aparecem no filme, como Jacob-Nicolas Moreau (Michel Robin), o historiador e arquivista de Versalhes, a duquesa Gabrielle de Polignac, a primeira camareira Henriette Campan, são todos reais.

A única exceção, a licença poética, o personagem fictício no romance e depois no filme, é o da protagonista, a jovem leitora Sidonie Laborde.

É exatamente como no filme Titanic. No meio de um monte de personagens reais, o filme de James Cameron botou suas figuras fictícias, o Jack de Leonardo Di Caprio e a Rose de Kate Winslet.

Uma moça que vive “por procuração”: ela existe para servir à rainha

A fictícia Sidonie Laborde é uma personagem um tanto misteriosa. O filme não mostra nada sobre seu passado (com exceção de uma única informação, uma palavra, dita exatamente no encerramento da narrativa). Não se dá ao trabalho de tentar explicar como e por que uma moça tão nova, e do povo, humilde, sem posses, tinha tanta cultura – algo bastante improvável, se quiséssemos exigir lógica, plausibilidade.

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Quando a narrativa já se aproxima do fim, uma das outras serventes de Versalhes, creio que Alice (Marthe Caufman), diz para Sidonie que ninguém sabe nada sobre ela, sobre sua vida, seu passado.

A jovem atriz Léa Seydoux, que está com tudo (sabe-se lá se está prosa ou não), disse, numa entrevista transcrita no site Allo Ciné: “O que gostei desse papel foi que não se sabe nada sobre ela, e então eu podia inventar qualquer coisa. Há um momento que faz o espectador entender sobre ela, quando uma personagem diz: ‘Nós não sabemos nada sobre você… Você por acaso tem pais?’ Isso para mim foi a chave para construir tudo. Eis por que ela é tão fascinada pela rainha. É através da rainha que ela tem sua própria existência.”

O co-roteirista do filme, Jean-Pierre Guérin, compara Sidonie a uma groupie, como essas fanáticas por bandas musicais. Uma groupie muito antes do tempo das groupies, que vive “por procuração”, com o único objetivo de agradar a rainha, o ídolo pelo qual ela é capaz de renunciar a tudo.

A Sidonie interpretada por Léa Seydoux é de fato uma admiradora de Maria Antonieta. Ela venera, adora a soberana. Mas transparece, com clareza, que além de toda a veneração, há também um desejo sexual, uma paixão de pele.

Bem ao contrário da sua personagem, moça pobre, a atriz Léa Hélène Seydoux-Fornier de Clausonne tem, como o próprio nome indica, pedigree. Nascida em Paris em 1985, vem de família rica. Seu avô, Jérôme Seydoux, é presidente da Pathé, uma das mais antigas corporações do show business europeu e mundial. Seu pai descende do homem de negócios e inventor Marcel Schlumberger.

Léa Seydoux começou a carreira no cinema em 2006, aos 21 anos de idade. Nestes últimos oito anos, formou uma filmografia com 32 títulos. Em 2009, ganhou o César de atriz iniciante por A Bela Junie, de Christophe Honoré. Já trabalhou com Woody Allen (Meia-Noite em Paris), Ridley Scott (Robin Hood), Quentin Tarantino (Bastardos Inglórios), ao lado de Tom Cruise (Missão Impossível – Protocolo Fantasma). Em 2013, estrelou Azul é a Cor Mais Quente, e ganhou a Palma de Ouro em Cannes ao lado da co-estrela Adèle Exarchopoulos e do diretor Abdellatif Kechiche.

As filmagens foram no próprio Palácio de Versalhes

A primeira opção do diretor Benoît Jacquot para o papel de Maria Antonieta foi Eva Green. Felizmente para ele e para o filme, a atriz não estava disponível – na época, filmava com Tim Burton Sombras da Noite. E o papel ficou para a alemã Diane Kruger, essa moça de beleza e talento espantosos. Um imenso acerto de casting.

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Virginie Ledoyen (na foto), que faz a duquesa Gabrielle de Polignac, é veterana em filmes de Jacquot. Trabalhou sob a direção dele em Uma Garota Solitária (1995) e Marianne (1997). Está ótima como o objeto de desejo da rainha – uma mulher fria, distante, egoísta.

A produção de Adeus, Minha Rainha teve a sorte imensa de poder usar o próprio Palácio de Versalhes como locação para a filmagem de diversas das sequências. Os responsáveis pelo Palácio, um dos pontos turísticos mais frequentados da região de Paris, confiaram à equipe de Jacquot os imensos salões nas segundas-feiras, quando está fechado ao público, e durante as noites.

Jacquot usou muito pouco dos imensos, milionários salões. Preferiu as alas pobres, dos serventes.

Uma personalidade multifacetada, complexa, nada simples, linear

Assim que o filme terminou, Mary, que sempre costuma dizer que a gente não sabe nada de nada, fez uma pesquisa sobre Marie Antoinette, e leu para nós páginas e mais páginas sobre essa figura de quem em geral só se conhece a frase “Mas se o povo não tem pão, por que não come brioches?”. Diversas fontes, aliás, afirmam que Maria Antonieta jamais disse essa frase. É uma mentira que acabou pegando, como tantas mentiras acabam pegando na história, FHC e a frase “esqueçam tudo o que escrevi” que o digam.

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O que dá para aprender sobre Maria Antonieta em uma pesquisa de algumas horas é absolutamente fascinante. Dá muita vontade de ler uma boa, séria, biografia sobre essa mulher de vida tão absolutamente intensa, problemática, trágica. Aparentemente, muito do que Adeus, Minha Rainha mostra é verdadeiro – inclusive, e sobretudo, o fato de que era uma personalidade complexa, multifacetada, de forma alguma simples, linear, como muitas vezes foi retratada de maneira reducionista.

Agora, que me perdoem os fãs da Coppolinha, mas não dá vontade alguma é de rever a Maria Antonieta interpretada por Kirsten Dunst no filme de 2006.

Anotação em março de 2014

Adeus, Minha Rainha/Les Adieux à la Reine

De Benoît Jacquot, França-Espanha, 2012

Com Léa Seydoux (Agathe-Sidonie Laborde), Diane Kruger (Marie Antoinette), Virginie Ledoyen (duquesa Gabrielle de Polignac), Noémie Lvovsky (Madame Campan), Xavier Beauvois (Louis XVI ), Michel Robin (Jacob-Nicolas Moreau, o arquivista), Julie-Marie Parmentier (Honorine Aubert), Lolita Chammah (Louison), Marthe Caufman (Alice), Vladimir Consigny (René/Paolo), Dominique Reymond (Madame de Rochereuil), Anne Benoît (Rose Bertin)

Roteiro Benoît Jacquot e Gilles Taurand

Baseado no livro de Chantal Thomas

Fotografia Romain Winding

Música Bruno Coulais

Montagem Luc Barnier e Nelly Ollivault

Produção GMT Productions, Les Films du Lendemain, France 3 Cinéma,

Morena Films, Canal+.

Cor, 100 min

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4 Comentários para “Adeus, Minha Rainha / Les Adieux à la Reine”

  1. Sérgio, fiquei curiosa de saber o que tu achou de Azul é a cor mais quente! Eu achei assombrosa a interpretação da menina Adèle…

  2. Ana, ainda não “Azul é a cor mais quente”… Estou sempre atrasado! Mas parece que é unânime que as duas jovens atrizes estão maravilhosas, não é?
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Eu achei, ao menos! Mas virou meio que um fenômeno entre os jovens, então fiquei curiosa para saber sua opinião… Assista quando puder!
    Um abraço!

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