A Gaiola Dourada / La Cage Dorée

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Nota: ★★★★

Eis aí uma pequena pérola, uma jóia perfeita, um filme de deixar o espectador feliz, levitando, cinco centímetros acima do chão.

La Cage Dorée, aqui felizmente lançado como a tradução literal, A Gaiola Dourada, é uma obra-prima, uma maravilha. É uma comédia deliciosa, extremamente bem realizada em cada pequeno detalhe, com uma trama rica, bem engendradíssima, fantástica, perfeita.

E, além disso, a par disso, é também um panfleto – ao mesmo tempo delicado e violento, elegante e cortante – a favor das coisas corretas, das coisas boas da vida: é um terno hino à convivência entre os díspares, ao respeito às pessoas todas e em especial aos imigrantes. É um tapa na cara de todo tipo de xenofobismo, de racialismo, de supremacismo.

É o tipo de filme certo que vem no momento certo – estes terríveis anos 2010 em que os países da Europa unificada flertam com o racismo, a xenofobia.

Ver pérolas inesperadas como este filme aqui dá imenso prazer

O compositor Juan Manuel Serrat escreveu que prefere os bairros ao centro da cidade, a pinta da cara da moça à Pinacoteca Nacional. Concordo com ele em gênero, número, grau e degrau. O eventual leitor não precisa concordar, mas eu digo, eu confesso: ver pequenas pérolas inesperadas como este A Gaiola Dourada me dá muitíssimo mais prazer, mas muitíssimo mais prazer do que rever Cidadão Kane.

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Os protagonistas do filme são José e Maria Ribeiro, um casal de portugueses ali pela meia idade radicados há mais de 30 anos em Paris. Maria é interpretada por Rita Blanco (na foto acima) – uma belíssima atuação. E José, por Joaquim de Almeida (na foto abaixo), esse grande ator que parece estar para Portugal como Ricardo Darín está para a Argentina.

O casal se deu bem – à custa de trabalho duro, interminável. Maria, zeladora de um pequeno prédio de ricos num belo bairro, acorda cedíssimo, vai fazer compras e está de volta em casa a tempo de acordar José e os dois filhos, a primogênita Paula (Barbara Cabrita) e o caçula Pedro (Alex Alves). Faz sozinha toda a limpeza das áreas comuns do prédio, esfrega o chão, pole os corrimões, mantém os muitos vidros impecáveis, ajuda uma das proprietárias, Madame Reichert (Nicole Croisille) a cuidar das flores do jardim interno, põe os gêmeos de um dos apartamentos na condução para a escola – além, é claro, de fazer todo o serviço doméstico em sua própria casa.

A casa é o que os Ribeiro têm de melhor: um apartamento no próprio prédio granfino. Com isso, os filhos Paula e Pedro moram muitíssimo bem, e têm uma vida absolutamente digna. Os pais são imigrantes, mas os filhos são franceses; frequentaram escolas francesas, todos os amigos são franceses, o namorado de uma e a namorada do outro são franceses.

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José é trabalhador qualificado na construção civil. Deve, é claro, ter começado como peão, mas, trabalhador incansável, dedicado, empenhado, tornou-se o braço direito do patrão, o dono da construtora, Francis Caillaux (Roland Giraud).

Nas horas vagas, José quebra todos os galhos dos moradores do prédio. É um competente faz-tudo – mas se recusa a receber qualquer gorjeta pelo seu trabalho.

De repente, José herda diversas propriedades – mas terá que voltar para Portugal

Nos prédios vizinhos ao do casal, as zeladoras são todas portuguesas. A comunidade portuguesa em Paris é imensa, sabe-se disso, e o filme mostra, assim como outra obra recente, As Mulheres do 6º Andar. A irmã de Maria, Lourdes (Jacqueline Corado), trabalha como faxineira. A grande amiga das duas, Rosa (Maria Vieira) trabalha como empregada doméstica justamente na casa do patrão de José, Caillaux.

Lourdes tem planos de montar um pequeno restaurante de comida portuguesa; conta, para isso, com a mão boa na cozinha de Maria.

Em resumo: todos – os moradores do prédio, o patrão de José, a irmã – precisam de José e Maria. Dependem de seus bons serviços.

O roteiro mostra isso rapidamente, e de forma contundente.

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Quando estamos com sete minutos de filme, José recebe uma notificação de um cartório: o irmão – com quem ele não falava fazia 30 anos, e que havia ficado com os muitos bens da família – havia morrido, e deixado toda sua fortuna para ele. A herança incluía, entre outras coisas, um próspero vinhedo junto ao Rio Douro, a região produtora dos vinhos do Porto. E estipulava que, para herdar tudo, José teria que se apresentar em Portugal dentro de três semanas, e administrar os negócios.

É o primeiro longa metragem de Ruben Alves, francês descendente de portugueses

A partir daí, surgirá um emaranhado de situações que tornam a permanência dos dois em Paris mais e mais necessária para todo o mundo em volta.

É uma trama deliciosa, gostosíssima. O autor da idéia original é Ruben Alves, o diretor do filme. O roteiro foi escrito a várias mãos, por

Ruben Alves e mais Luc-Olivier Veuve, Jean-André Yerles e Hugo Gélin

Fizeram uma beleza de trabalho. E a realização é toda um primor. Parece obra de cineasta veteraníssimo. Não é. É o primeiro longa metragem do rapaz.

O site AlloCiné informa que Ruben Alves nega que a história bolada por ele seja autobiográfica – mas seu pai trabalhou de fato na construção civil e sua mãe foi zeladora de prédio. Os dois, naturalmente, saíram de Portugal e foram para a França em busca de uma vida melhor, como todos os imigrantes.

O AlloCiné também diz que Ruben Alves fez questão de que todos os atores que interpretam portugueses fossem de fato portugueses, ou, no caso dos jovens, filhos de portugueses. Conseguiu reunir, segundo o site especializado em cinema francês, o crème de la crème dos atores portugueses. Eu só conhecia Joaquim de Almeida, mas o problema obviamente é meu: Rita Blanco e Maria Vieira, por exemplo, são conhecidíssimos em Portugal.

Que Ruben Alves tenha preferido atores de fato portugueses ou descendentes é bastante natural. Como é natural, também, que ele tenha feito questão de incluir na história um fado. Quando a narrativa se aproxima do fim, a garota Paula e seu namorado vão a um restaurante português em que se apresenta uma cantora de fado. Há diversas sequências importantes na história enquanto ouvimos o belo fado, cuja letra fala da vontade de um imigrante de morrer em Portugal. A colagem dessas diferentes sequências enquanto ouvimos a canção é primorosa – é um dos pontos altos de A Gaiola Dourada.

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O filme teve uma indicação ao César, o Oscar francês, na categoria de obra de estreante. E teve bela recepção do público: na França, foi visto por mais de 1,1 milhão de espectadores. E, em Portugal, com 655 ingressos vendidos, tornou-se o filme francês de maior bilheteria na história.

Um detalhinho que acho fascinante: a proprietária de um dos apartamentos, a mulher mais ativa do prédio, Madame Reichert, já citada acima, é interpretada por Nicole Croisille, que, além de atriz, é cantora. É dela a voz feminina na trilha sonora de Um Homem, uma Mulher, o filme que tornou Claude Lelouch famoso no mundo inteiro. Ela faz duetos com Pierre Barouh no tema principal e em “Plus fort que nous” e canta sozinha “Aujourd’hui c’est toi”, todas canções de autoria de Francis Lai com letras de Barouh. Ela canta também em outros filmes de Lelouch, Viver por Viver (1967) e Retratos da Vida (1981).

O filme evita o tom de discurso político. E seu alvo são os xenófobos

A Gaiola Dourada não tem tom de discurso político, de forma alguma. Fala das diferenças entre as classes sociais de modo tranquilo, simples, sem estridências ideológicas. Ao contrário do que é normal no cinema francês, assim como no italiano, o filme não demoniza os ricos, não diz que todo é rico é safado, filho da mãe. Nem o patrão de José, Francis Caillaux, nem o filho do patrão, Charles (Lannick Gautry), são mostrados como gente de mau caráter.

A seqüência em que Francis e a mulher, Solange (Chantal Lauby, na foto abaixo) vão à casa de José e Maria para jantar é maravilhosa: Maria põe um vestido de noite e enfia José em um terno – e o patrão e a mulher chegam usando as roupas mais esportivas que encontraram em casa.

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O alvo contra o qual A Gaiola Dourada atira não são os ricos – são os xenófobos.

Sem os imigrantes, o país não funcionaria. A França – assim como os demais países ricos – precisa desesperadamente da mão de obra dos imigrantes. Depende deles.

Nos Estados Unidos, foi feito um belo filme para mostrar essa verdade, Um Dia sem Mexicanos, de Sergio Arau (2004). É um bom filme – uma porrada.

Este A Gaiola Dourada não quer ser porrada. É suave – mas firme.

Uma beleza de filme.

Anotação em julho de 2014

A Gaiola Dourada/La Cage Dorée

De Ruben Alves, França, 2013

Com Rita Blanco (Maria Ribeiro), Joaquim de Almeida (José Ribeiro), Roland Giraud (Francis Caillaux), Chantal Lauby (Solange Caillaux), Barbara Cabrita (Paula Ribeiro), Lannick Gautry (Charles Caillaux), Maria Vieira (Rosa), Jacqueline Corado (Lourdes), Jean-Pierre Martins (Carlos), Alex Alves Pereira (Pedro Ribeiro), Sergio da Silva (Manuel), Nicole Croisille (Madame Reichert)

Roteiro Ruben Alves, Luc-Olivier Veuve, Jean-André Yerles e Hugo Gélin

Argumento Ruben Alves

Fotografia André Szankowski

Montagem Nassim Gordji Tehrani

Produção Zazi Films, Pathé, TF1 Films Production. DVD Paramount.

Cor, 91 min.

****

3 Comentários para “A Gaiola Dourada / La Cage Dorée”

  1. Sérgio, fico muito feliz que tenhas gostado deste filme. Nada contra o povo brasileiro, mas sendo “A Gaiola Dourada” um filme tão português, sobre os portugueses emigrantes mas com hábitos próprios do meu povo, pensei que o filme não fosse considerado nada de especial para alguém que não fosse de Portugal ou português em frança. Não sei se o Sérgio representa a maioria ou não, mas é bom saber o carinho com que falou do filme. Fico contente que tenha gostado. Cá em Portugal foi um grande sucesso. Fui vê-lo ao cinema. Gostei, diverti-me mas não achei nada de especial, talvez porque tenha causado algumas expectativas. Neste momento, já gosto mais do filme e é realmente um retrato carinhoso das pessoas que tiveram que sair de Portugal em busca de uma vida melhor. Rita Blanco é uma óptima atriz e compreendo que não a conheça. Ela deve estar ao nível da Glória Pires no Brasil. Atores fantásticos. A minha cena favorita é a do jantar em casa da família portuguesa.

  2. Gostei muito desse filme! É o tipo que me pega, e nem sei explicar muito bem o porquê, mas acho que é porque fala de família, cotidiano, problemas, imigração — um tema quase sempre instigante — com um pouco de romance como pano de fundo e momentos engraçados.

    Bem legal os atores falarem algumas frases em português durante o filme, mas fiquei me perguntando se os filhos não falavam a língua dos pais, e senti um pouco a falta de diálogos em português entre a família, ou pelo menos entre o casal. Acho um desperdício e uma lástima quando filhos de pais de nacionalidades diferentes, ou nesse caso, mesma nacionalidade morando em outro país, não aprendem o idioma dos genitores.

    Interessante como alguns fatos são universais e mexem com a cabeça de qualquer pessoa, como o adolescente que sente vergonha dos pais e do trabalho nada glamoroso deles, e a moça tão cheia de si, mas que no fundo tem baixa auto-estima e sofre por ser filha de imigrantes.

    Um dos pontos altos para mim, é quando a mulher do patrão do José, chique e querendo parecer descolada, dá um passa-fora na madame esnobe, exploradora e metida a besta do prédio. Ri muito nessa hora (eu não esperava isso dela, a achava meio alienada); pena que o diretor não permita que o riso dure, pois logo em seguida vem uma cena dramática.
    Outra parte bem engraçada é a em que ela aparece treinando algumas palavras em português, com a empregada portuguesa, mas chegando ao apartamento para o jantar solta um “Buenas noches”. Ri alto, mas detesto quando acontece na vida real, pois realmente tem quem ache que português e espanhol são a mesma coisa. Isso que você falou do casal anfitrião ter escolhido as roupas mais finas, e o casal rico ter ido com as mais despojadas também é ótimo, e fez rolar um certo constrangimento. Nada como ser do jeito que se é.

    Acredito que faz todo o sentido o diretor ter exigido atores portugueses e filhos de portugueses, não simpatizo quando atores de uma nacionalidade x são escalados para papéis de nacionalidade y. Tenho implicância eterna.

    Excelente ele não ter demonizado os ricos, nem ter feito deles más pessoas; ainda assim a minha vontade era de ser amiga do casal menos abastado, bem-humorado e de hábitos simples, muito graças aos atores que encarnaram seus respectivos papéis.

  3. Sem necessidade de catalogar, sem xenofobia ou qualquer outro termo para classificar os comportamentos humanos, o filme é uma delicia e indispensável pelo prazer que proporciona! Achei ótimo o seu comentário inicial e este é o verdadeiro retrato deste filme na minha opinião também “Eis aí uma pequena pérola, uma joia perfeita, um filme de deixar o espectador feliz, levitando, cinco centímetros acima do chão”

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