O Expresso de Xangai / Shanghai Express

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Nota: ★★☆☆

“Irresistivelmente delicioso”, diz de O Expresso de Xangai, que Josef von Sternberg dirigiu com Marlene Dietrich em 1932, a primeira-dama da crítica americana, Pauline Kael, cuja língua ferina ironiza até mesmo os filmes de que ela gosta.

“O tema do filme é o rosto de Dietrich, que serve de palco para uma série de variações”, diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.

“O maior sucesso comercial da dupla Dietrich-Sternberg. Uma China fantasiosa, mas o apogeu do mito de Marlene, cujos figurinos tiram o fôlego”, diz o Guide des Films de Jean Tulard, que dá 3 estrelas, cotação que poucas obras ganham.

“Datado mas fundamental veículo para Dietrich, fotografado grandiosamente por Lee Garmes (que ganhou um Oscar)”, diz Leonard Maltin no Movie Guide, o guia de filmes mais vendido no mundo; ele dá 3 estrelas em 4.

“O olhar perspicaz de Josef von Sternberg elaborou este filme, a mais refinada experiência de  exotismo dos estúdios de Hollywood”, diz o guia de Steven H. Scheuer, que dá 4 estrelas, a cotação máxima.

Marlene, atriz, lenda, mito, é criação do diretor Sternberg

O Expresso de Xangai foi o terceiro dos seis filmes americanos da dupla Josef von Sternberg-Marlene Dietrich. E aqui é preciso registrar algumas informações básicas sobre essa dupla. A parceria von Sternberg-Marlene é um pouco diferente da de outras grandes parcerias entre diretor e atriz, tipo Woody Allen-Diane Keaton, Woody Allen-Mia Farrow, Godard-Anna Karina, Bergman-Liv Ullmann, Fellini-Giulietta Masina, Saura-Geraldine Chaplin.

zzxangai0Primeiro porque, ao contrário dessas todas citadas aí, a parceria dos dois alemães não incluiu casamento ou coabitação. Pode (e certamente deve) ter havido trepada, mas não houve romance público.

E segundo porque, em todos esses casos citados, as mulheres eram grandes atrizes por sua conta própria, e fizeram belos filmes também com outros diretores.

Marlene, não. Marlene é uma criação de von Sternberg. Foi ele que a descobriu, e foi ele que a transformou em estrela, com o fenomenal sucesso de O Anjo Azul/Der Blaue Engel, de 1930.

Foram juntos para Hollywood, naquele mesmo ano de 1930 – e, ao contrário de tantos diretores e atores/atrizes europeus, não foram fugindo do nazismo, que ainda não assustava tanto. Foram porque Sternberg queria estar na Meca do cinema – se tivesse sido arquiteto algumas centenas de anos antes de Cristo, teria ido para o Egito, onde se construíam as pirâmides.

zzxangai00Em sua belíssima autobiografia, Marlene tece quilômetros de loas a von Sternberg.

“Sternberg precisa se preocupar comigo”, escreve ela, falando sobre os primeiros tempos de Hollywood. “Fotografar-me, fazer-me sorrir, vestir-me, consolar-me, aconselhar-me, dirigir-me, conduzir-me, mimar-me, explicar-me coisas e muito mais. Era enorme a responsabilidade que ele assumira com a atriz que ele queria e com a mulher que tinha trazido com ele aos Estados Unidos. E conseguiu, como sempre, mesmo sob pressão dos estúdios Paramount. Ele travou com eles uma batalha tenaz.

“Várias vezes a Paramount tentou separar-nos, mas, como pelo meu contrato eu podia ‘escolher meu diretor’, ela teve que ceder. (…) O nome de Sternberg era famoso e o meu também. Eu lutava, ele lutava e nós ganhávamos. Em 1933, ele me deixou filmar O Cântico dos Cânticos (Song of Songs) com outro diretor. Naturalmente, o filme foi um fracasso.”

(Song of Songs, o primeiro filme de Marlene nos EUA não dirigido por Sternberg, é de Rouben Mamoulian, um diretor então de grande prestígio. Na filmografia dela, fica entre O Expresso de Xangai e A Imperatriz Galante/The Scarlet Empress.)

Uma China criada por Sternberg, que passa a anos-luz de qualquer realismo

O Expresso de Xangai foi, como registrou Jean Tulard, o maior sucesso comercial da dupla Sternberg-Marlene nos Estados Unidos. Deu um lucro de US$ 3 milhões – e US$ 3 milhões, no início dos anos 1930, era uma imensa fortuna. Foi o filme que rendeu a maior bilheteria nos Estados Unidos e no Canadá no ano de seu lançamento.

Nada menos que mil extras foram contratados para participar das filmagens. Foram chamados entre os chineses então residentes na região de Los Angeles – e a imensa maior parte deles, naquela época, falava cantonês, língua principal de regiões do Sul da China. Se o filme fosse mais próximo de algum tipo de realismo, os extras deveriam falar mandarim, a língua mais comum no país-planeta, a que é falada em Pequim.

zzxangai2Mas realismo é algo que passa a anos-luz de O Expresso de Xangai.

O realizador jamais tinha ido à China. Não tinha a menor idéia de como era a China. Tirou uma China de sua cabeça, de sua imaginação.

Na China imaginada por Sternberg, os letreiros nas estações, nos trens, vinham em inglês.

Foi Sternberg, pessoalmente, que criou os sets, junto do diretor de arte Hans Dreier. E foi Sternberg que cuidou da fotografia, mais do que Lee Garmes – que venceria o Oscar daquele ano.

Uma lenda, um clássico respeitadíssimo. Na minha opinião, uma porcaria

Bem é isso aí: O Expresso de Xangai é uma lenda, um clássico respeitadíssimo.

Na minha opinião, é uma gigantesca porcaria, um abacaxi azedo.

Claro: tem Marlene – e Marlene é uma maravilha, uma das melhores coisas que já houve na História do cinema. E tem o toque do visual mágico de Josef von Sternberg. Mas, se tirar Marlene, mesmo com o visual caprichadérrimo do mestre alemão, simplesmente não tem filme.

Um eventual leitor de boa vontade que tiver caído de pára-quedas neste texto, via Google, poderá pensar: ah, esse cara não gosta de filmes dos anos 30, não consegue colocar os filmes no seu contexto. Ou então viu o filme com má vontade.

Pois é: adoro os filmes americanos dos anos 30. Sempre tento colocar os filmes no seu contexto. E vi O Expresso de Xangai num bom momento e com a melhor boa vontade.

Talvez o problema entre O Expresso de Xangai e eu seja a lógica. Meu gosto pela lógica.

A história, a trama, o roteiro de O Expresso de Xangai é um atentado à lógica. É uma trama absurda, ridícula, que não se sustenta. Da metade para diante, é tudo tão grotesco que parece uma paródia, uma gozação, à la Apertem os Cintos que o Piloto Sumiu.

“Foi preciso mais de um homem para que meu nome mudasse para Xangai Lily”

É assim:

O trem de Pequim para Xangai está saindo. Estamos em 1931, e, segundo os personagens dirão, a China está em guerra civil.

(De fato, naquele ano havia a guerra civil entre as forças do Kuomitang de Chiang Kai-shek, que governava o país, e as forças comunistas lideradas por Mao Tsé-Tung. Mas o filme não fala em comunistas – o bando antigovernista que vai aparecer na trama é mais parecido com um dos exércitos dos senhores de guerra que lutaram contra a recém proclamada república nos anos 1910 e início dos 1920.)

O trem é imenso. Parece ter meio quilômetro. Há centenas de soldados armados em alguns dos vagões – são dezenas e dezenas de vagões. Em um número gigantesco de vagões, há multidões saindo pelo ladrão, pela janela.

Mas, é claro, vamos nos concentrar nos passageiros da primeira classe.

zzxangai3Entre os passageiros da primeira classe, há uma mulher ocidental, vestida como se estivesse indo para a ópera em Paris, Milão, Londres. A princípio, não vemos seu rosto.

E há o capitão Donald Harvey, um médico, oficial do Exército de Sua Majestade, a Rainha da Inglaterra. Ele se veste elegantissimanete, como se vestiam, nos filmes dos anos 30, os oficiais britânicos.

No colossal trem que irá de Pequim para Xangai, dá-se o seguinte diálogo entre essas teatrais figuras, a mulher ocidental vestida a rigor como se fosse comparecer à ópera, e o militar britânico em farda impecável, acabada de sair de uma boa tinturaria:

Ele: – “Você mudou, Magdalen. E muito.”

Ela: – “Perdi minha beleza?”

Magdalen. Interessante o nome. Marlene nasceu Maria Magdalena von Losch.

O ator que faz o militar britânico, Clive Brook, e a atriz que faz a mulher naqueles trajes tão adequados a uma longa viagem de trem na China quanto, digamos, um biquíni no Pólo Norte, ela, Marlene Dietrich, a própria, atuam mais ou menos como se estivessem atuando no pior teatro ginasiano de São José do Pinto Aceso, no interior do… hum… não quero parecer preconceituoso. Amapá, talvez? Iowa?

Marlene Dietrich, a deusa, e esse Clive Brook atuam com a elegância, a sutiliza, de macacos no circo.

E o diálogo prossegue:

Ele: – “Não. Está mais bela que nunca.”

Ela: – “Como mudei, então?”

Ele: – “Quem me dera pudesse descrever.”

Ela: – “Bem, troquei de nome.”

Ele: – “Casada?”

Ela: – “Não. Foi preciso mais de um homem para que meu nome mudasse para Xangai Lily.”

Ele: – “Ah! Então Xangai Lily é você!”

Ela: – “A famosa flor branca da China.”

“Marlene Dietrich emite o que talvez seja sua fala mais memorável”

Ah! Em um filme de 1932, uma grande estrela fala uma frase sensacional: “Foi preciso mais de um homem para que meu nome mudasse para Xangai Lily.”

Uma frase extraordinária, querendo significar que, depois de dar para dezenas de homens, sim, ela poderia ser considerada uma puta.

zzxangai5A frase é forte, de fato. Tanto que a anotei – anotei o diálogo inteiro -, enquanto via o filme, bem antes de ler o que havia sido escrito sobre ele.

Dame Pauline Kael adorou a frase.

“Marlene Dietrich emite o que talvez seja sua fala mais memorável: ‘Foi preciso mais de um homem para que meu nome mudasse para Xangai Lily’”.

Não concordo com Dame Kael. A frase é forte, é boa, mas Marlene Dietrich falou muitas frases melhores que esta, em sua maravilhosa carreira – e, mais ainda que em seus filmes, na vida real.

Mas vamos adiante.

Parte-se de uma historinha de amor boba. E as coisas vão piorando cada vez mais

Veremos então, ao longo dos intermináveis 80 minutos de filme, que a moça tinha tido um caso com o moço, cinco anos antes de eles se reencontrarem no trem que ia de Pequim para Xangai. Na verdade, tinham sido perdidamente apaixonados um pelo outro. Mas ela, que na época se chamava Magdalen, tinha tido vontade de fazer uma cena de ciúme para o nosso grande herói capitão de Sua Majestade. E então o britânico servidor tinha cascado fora da relação, e a partir daí, Magdalen, tadinha, tinha virado puta – mas uma puta rica, sacumé? Uma cortesã chiquetérrima assim como aquelas das histórias francesas.

Haverá uma referência ao fato de que um homem perdeu toda a sua fortuna dando presentes para Xangai Lily.

Shanghai é mais sonoro que nosso prosaico Xangai. Shang-rrai.

E então o nosso casal de pombinhos se reencontra no Expresso de Xangai, ou Shang-rrai.

No mesmo vagão em que viaja a ex-Magdalen, agora Xangai Lily, viaja também uma prostituta nacional, Hui Fei (Anna May Wong).

Se a babaquice da historinha de amor da ex-Magdalen, agora Xangai/Shanghai Lily, fosse o pior da trama, o filme poderia ter algum sentido.

zzxangai6Como diria o jovem Chico Buarque, qual o quê. As coisas se complicam – e pioram ainda mais – à medida em que o trem avança.

O trem é parado em algum lugar porque as autoridades suspeitam de que nele viaja um rebelde. Descem todos os trocentos e trinta e três mil passageiros; um deles é preso como rebelde.

Aí então, naquela parada no meio do nada, um dos passageiros da primeira classe, Chang (Warner Oland), usando o telégrafo oficial, manda um telegrama: “Expresso Xangai precisa ser parado à meia-noite. Assinado, número 1.”

Pouco depois da meia-noite, os rebeldes liderados por Chang matam todos os 1.500 soldados que vinham no trem, e assumem o controle.

O que vem a partir daí faria morrer de rir os roteiristas dos filmes que sacaneiam os filmes. Lógica zero.

Os filmes mais tresloucados que têm sido feitos pós Mel Brooks, pós Apertem os Cintos que o Piloto Sumiu, são mais lógicos do que a trama deste O Expresso de Xangai.

Marlene é estonteante, a câmara de Sternberg é genial – só falta a lógica

Sim, claro, tem a genialidade de Sternberg, e tem Marlene.

Verdade.

Bem no iniciozinho do filme, há travellings devastadores, maravilhosos.

Era 1932, e botaram a câmara num trilho e fizeram a câmara andar quilômetros mostrando um número absurdo de extras fazendo papel de povo na estação de Pequim.

São sequências de uma beleza visual impressionante.

zzxangai9Ah, claro, há a coisa do preto com o branco, especialidade do cinema alemão nos anos 1920. São absolutamente admiráveis as tomadas que mostram o vapor do trem (branquinhas) contra as tomadas seguintes noturnas (pretinhas).

E aí é que está.

Saber usar a gramática não significa saber fazer um bom texto.

Claro: é bom, é ótimo, é fundamental saber a gramática.

Mas não basta.

Uma gramática brilhante sem conteúdo não vale coisa alguma.

Como sou um velhinho que não deve absolutamente nada a ninguém, posso dizer com segurança: na minha opinião, O Expresso de Xangai é uma porcaria, um abacaxi azedo.

É, de fato, um grande clássico. Firmou a dupla Dietrich-Sternberg como genial em Hollywood.

E a dupla é genial.

Quando Marlene Dietrich aparece na tela, tudo desvanece diante dela. A câmara tem tesão por ela. O que vemos na tela é belíssimo. Marlene Dietrich, dirigida por Sternberg, faz desvanecer quase tudo diante de nós. Até mesmo a lógica.

Agora, se alguém que consegue fazer 1 + 1 = 2, e vir este filme sabendo disso, não terá dúvida. Apesar de Marlene, apesar da beleza das imagens, é uma porcaria. Um abacaxi azedo.

Anotação em março de 2013

O Expresso de Xangai/Shanghai Express

De Josef von Sternberg, EUA, 1932

Marlene Dietrich (Shanghai Lily)

e Clive Brook (capitão Donald “Doc” Harvey), Anna May Wong (Hui Fei), Warner Oland (Henry Chang), Eugene Pallette (Sam Salt), Lawrence Grant (reverendo Carmichael), Louise Closser Hale (Mrs. Haggerty), Gustav von Seyffertitz (Eric Baum), Emile Chautard (major Lenard), Claude King (Albright)

Roteiro Jules Furthman

Baseado em história de Harry Hervey

Fotografia Lee Garmes

Música W. Franke Harling

Figurinos Travis Banton

Produção Paramount. DVD Signature Filmes.

P&B, 80 min

**

9 Comentários para “O Expresso de Xangai / Shanghai Express”

  1. Este filme com certeza não encontrarei nas locadoras por aqui. A causa: a data. Já disse o mesmo sôbre outros. E, também não estou encontrando, online. Mas vou continuar procurando,pode ser que eu goste, quem sabe ?
    E até porque gosto dos filmes da década de 30 para cá.
    Quanto a fala memorável da Marlene, Sergio, me lembrou a da Joan Crawford – Vienna – em “Johnny Guitar”.
    ” Um homem pode mentir, roubar e até matar, mas,enquanto tiver seu orgulho, ainda é um homem. A mulher só precisa errar uma vez e vira uma vagabunda” .
    Um abraço !!

  2. De vez em quando caio aqui no seu site, procurando informações sobre filmes que baixei.
    E, sempre, sempre, não me arrependo.
    Desta vez, então, além das informações úteis e de um enfoque com o qual me afino, me deparei com um texto divertidíssimo – que me encheu de vontade de conhecer esse abacaxi aí.
    Parabéns, e superobrigado!

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