Dívida de Sangue / Cat Ballou

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Nota: ★★½☆

Tinha uma lembrança boa de Cat Ballou, que não revia há muitos, muitos anos. Não lembrava dele como um grande filme, mas como um filme legal, gostoso, uma boa diversão.

Afinal, o filme, lançado em 1965, e que no Brasil ganhou o título de Dívida de Sangue, tem Jane Fonda no auge da beleza jovem (ela estava com 28 aninhos), e tenho por Jane Fonda profunda admiração desde sempre. Tem Lee Marvin no famoso papel duplo – um de assassino frio, outro de um pistoleiro decadente, bêbado, trêbado – que deu ao ator seu único Oscar. Tem a presença augusta do grande Nat King Cole cantando ao longo do filme a balada que conta a história e a lenda de Cat Ballou, a personagem central, o papel de Jane Fonda.

Não gostei muito de Cat Ballou ao revê-lo agora. Achei bobo. Tem importância, sim, mas é bobo.

Há filmes que a gente não deveria rever. Mas, se não revê, como saber que não deveria?

Os fanáticos por westerns não gostam que façam brincadeiras com o gênero

zzcat2Gosto bastante de westerns, embora não seja um fanático, nem especialista, ao contrário de muita gente que idolatra o gênero. Os fãs do western, me parece, nunca gostaram de Cat Ballou, porque consideram que esse é um gênero sério, com o qual não se deveria brincar. E Cat Ballou é uma brincadeira, uma gozação, uma mistura de western com comédia com uma pitada de musical.

Não sou purista, não tenho nada contra mistura de gêneros. Mas Cat Ballou não me pareceu engraçado, divertido – só bobo. Pode ser coisa do momento em que revi o filme; sempre pode.

O roteiro é assinado por Walter Newman e Frank R. Pierson. Este último é um dos autores de roteiros de ótimos filmes, entre eles Um Dia de Cão, de Sidney Lumet (1975) e Acima de Qualquer Suspeita (1990), e portanto merece respeito.

Os autores tiveram muitas pretensões – mas acho que deram com os burros n’água

Dá para perceber perfeitamente que os roteiristas e o diretor Elliot Silverstein tiveram muitas pretensões. Pretenderam inovar num gênero tradicional, o mais tradicional de todos os do cinema americano, ao fazer essa até então raríssima junção de western com comédia e musical. Pretenderam criar uma estrutura narrativa que remetesse às tragédias gregas clássicas, substituindo o coro grego pelos dois músicos, interpretados por Nat King Cole e Stubby Kaye. Pretenderam fazer uma crítica social, uma denúncia (este, sim, um tema clássico do western) do poderio dos fazendeiros riquíssimos, das grandes empresas, que passavam por cima dos pequenos proprietários, os pioneiros na conquista das novas terras, os espezinhavam, os reduziam à miséria. Pretenderam transformar pequenos foras-da-lei – perseguidos por uma lei & ordem posta a serviço do Grande Capital – em Robin Hoods. E pretenderam ainda fazer uma obra que refletisse sobre o fim de um era, o outono do Velho Oeste, com a chegada das modernidades – um pouco, talvez, como Sam Peckinpah havia conseguido fazer, com o maior brilho, no hoje pouco conhecido e lembrado Pistoleiros do Entardecer/Ride the High Country, de 1962, apenas três anos antes deste filme aqui, portanto.

Na minha opinião, era pretensão demais. Deram com os burros n’água.

zzcat5Sequências pretensamente cômicas, como, por exemplo, a do trem, logo no início da narrativa – em que a jovem Catherine Ballou está voltando para casa, no Wyoming, depois de estudar para ser professora, e fica conhecendo a dupla de pequenos foras-da-lei Clay (Michael Callan, na foto) e Jed (Dwayne Hickman), este último fantasiado de padre –, não conseguem ser engraçadas. São, na verdade, ridículas.

Todo o relacionamento entre a jovem Cat Ballou e o bandidinho Clay – interpretado por um ator carisma zero absoluto – está mais para o pior que já fizeram Os Trapalhões e a Escolinha do Professor Raimundo do que para algo de fato engraçado.

O filme tem a interpretação de Lee Marvin e a cena antológica do cavalo bêbado

Tá bom: tem Lee Marvin.

Lee Marvin, com aquela sua cara de mau bofes, de brutamontes, tendo antes de 1965 interpretado uma série de vilões ferozes, inclusive o facínora do já nascido clássico O Homem que Matou o Facínora de John Ford, faz um Kid Shelleen – ex-pistoleiro cantado em prosa e verso, hoje um traste, um bêbado lumpen, fedorento, asqueroso, velho – que tem sua graça.

A coisa de ele beber algumas talagadas depois de um período de sono e abstinência forçada, e aí ter uns poucos minutos de arroubo, euforia, deliciamento consigo mesmo e oratória à la grande advogado criminalista no auge de um julgamento, antes de ficar bêbado de novo – sim, isso tem sua graça. Bem amarga, é verdade – porque nos faz rir de uma doença séria demais, o alcoolismo –, mas de qualquer forma interessante, e de fato engraçada.

Tem a famosérrima cena de Kid Shelleen recaído na bebedeira depois de seu fugaz momento de retorno à glória, escornado, dormindo trêbado encostado a uma parede, em cima do cavalo, que, com as pernas dianteiras curvadas, parece igualmente bêbado.

zzcat0A cena fez imenso sucesso na época. Ainda é boa hoje. É das poucas coisas boas que restaram no filme (sempre na minha opinião, é claro), juntamente com as sequências em que os dois cantores à la coro da tragédia grega clássica contam a história, ponderam, anunciam o que está por vir.

Um pedaço das canções compostas por Frank De Val que conduzem a narrativa, aquele em que se diz que eles (os malvados, os grandes capitalistas que têm no bolso o xerife, o pistoleiro assassino e metade da população da cidadezinha) não conseguirão fazer Cat Ballou chorar, permanece belo até hoje. “There are teardrops in her heart, but they can’t make her cry. (…) Makes no difference how they try, they’ll never make her cry (…) All the teardrops in her heart, ‘cause they can’t make her cry”.

É uma bela melodia, a desse pedaço específico da série de canções, que têm ao longo da narrativa diferentes ritmos, diferentes tons. E o branco baixinho e gordinho Stubby Kaye nesse momento cala a boca, para que o espectador possa ouvir a voz de veludo do alto e negro feito ébano Nat King Cole, à frente de um conjunto de violinos.

Fiquei impressionadíssimo ao rever a cena, porque me peguei lembrando praticamente palavra por palavra da canção. Letras que caem no hard disk ainda fresco de um garoto de 16 anos não saem nunca mais de lá, por mais que o buffer fique cheio com a quantidade absurda de informação que vai sendo agregada nas décadas seguintes.

O guia de filmes mais vendido do mundo dá 3.5 estrelas em 4       

Mas então: tem Lee Marvin, inclusive as observações atentas sobre o comportamento dos bêbados, tem a bela sacada de colocar os dois cantores pontuando a narrativa, tem a voz maravilhosa, absolutamente unforgettable do grande Nat King Cole – e tem a beleza estúpida, chocante, deslumbrante de Jane Fonda no auge da juventude.

zzcat7A ver outras opiniões.

O livro Great Hollywood Westerns, de Ted Sennett, obra séria, feita por quem entende profundamente do gênero, diz que o filme é “engraçado mas irregular”.

Vixe Maria: Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, dá 3.5 estrelas!

“Engraçada gozação de western, com Fonda como Cat Ballou, famosa professora-tornada-fora-da-lei. Marvin levou um Oscar por seu papel duplo como um pistoleiro bêbado e seu (&#%$&@&&). Nat King Cole e Stubby Kaye aparecem como menestréis ambulantes.”

Aaahn… Duas coisinhas. Censurei o texto de Maltin com um (&#%$&@&&) porque ali ele revela uma informação que só aparece no fim do filme. Tenho tanto nojo de spoilers quanto o Michaleen Flynn de Depois do Vendaval/The Quiet Man tem daquela tal Lei Seca americana.

Em segundo lugar, Cat Ballou não chega a dar uma única aula. Mas tudo bem: formada para dar aulas ela foi.

Dame Pauline Kael escreveu sobre Cat Ballou em seu livro 5001 Nights at the Movies, e fez um texto maior em Kiss Kiss Bang Bang (um livro dela que não conheço). Sérgio Augusto deixou o comentário de fora na edição brasileira do livro, 1001 Noites no Cinema, organizada e traduzida por ele, e então sobra para mim a quantidade de palavras estranhas que a prima-donna da crítica americana usa.

Opa: estou lendo o que Pauline Kael diz só agora, depois de ter anotado minha próprias opiniões. Não copiei nem fui influenciado por Pauline Kael, mas ela diz que, entre as boas coisas do filme, há alguns diálogos e Nat King Cole cantando “They’ll Never Make Her Cry”.

Ela elogia também a preparação ritualística de Lee Marvin para o grande duelo (eu achei a seqüência exagerada, pomposa – claro, é uma farsa – mas sem qualquer graça) e o fato de Lee Marvin achar que as velas do velório são para comemorar o aniversário de alguém.

Ela então conclui: “Mas basicamente é cheia de idéias tipo-engraçado ou tipo-tentando-ser-engraçado”.

De qualquer forma, o fato de Maltin ter dado quase a cotação máxima de 4 estrelas e de Pauline Kael ter feito elogios e ter falado sobre o filme também em uma outra obra indicam que Cat Ballou teve, sim, sua importância na época do lançamento.

O Guide des Films traz verbete longo com muitos elogios

Não é, de forma alguma, um filminho menor, uma porcariazinha.

zzcat4Sei disso, sei disso muito bem. Razão pela qual vou ao Guide des Films de Jean Tulard. É sempre enriquecedor ver a perspectiva francesa sobre um filme de Hollywood.

Opa! Verbete longo. Vou sem aspas, para não me sentir obrigado a ser ipsis litteris.

Este western cômico nos é contado às vezes pelas ações de Cat Ballou, mas também em canções, acompanhadas por banjos, por Nat King Cole e Stubby Kaye. O tema: educada na cidade, uma bela jovem, inocente, vigorosa e leitora de histórias de cowboys, se insurge com determinação contra a injustiça de um mundo dominado por patifes. Se Jane Fonda expõe toda sua beleza e seu vigor, Lee Marvin fica com a parte do leão no papel do pistoleiro de elite alcoólatra.

E seguem-se linhas e linhas de elogio à atuação de Lee Marvin, descrevendo diversas das cenas.

Ao agradecer pelo Oscar, Lee Marvin elogiou a “interpretação” do cavalo

Aí vão historinhas e/ou curiosidades sobre o filme, muitas tiradas do IMDb, com comentários meus aqui e ali:

* A novela em que o filme se baseia é um western sério. Os elementos cômicos foram adicionados para o filme.

* Lee Marvin abriu seu discurso ao aceitar o Oscar dizendo que metade daquilo provavelmente se devia ao cavalo que ele havia montado – o cavalo que na cena emblemática parecia tão bêbado quanto o personagem.

* Parece ter havido uma disputa entre o diretor Silverstein e os produtores a respeito da música que acompanharia a sequência em que Kid Shelleen toma banho, se barbeia e se prepara para o grande duelo. O diretor queria violões acústicos, à la América Latina, na cena, mas o produtor se opôs a qualquer tipo de coisa “Spanish” num western, e na montagem final o que aparecem são solos de guitarra elétrica.

zzcat99* Interessantíssimo, esse tópico aí acima, que está no IMDb. O uso de sons mexicanos – ou do que os americanos supõem que sejam os sons mexicanos – sempre fez parte da tradição do western. O que seria do western se os bandidos (ou injustiçados) não pudessem fugir para o México? Me lembro, por exemplo, de sons mexicanos em O Último Pôr-do-Sol, de 1961). Em sua extraordinária trilha sonora para Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, de 1963, Bob Dylan usou diversas referências ao México, incluindo aí várias palavras em mexicano, perdão, espanhol. (“Mexicano” é a língua que muitos americanos, nos filmes, acreditam que se fala abaixo do Rio Grande…)

* Ann-Margret teria sido a primeira escolha dos produtores para o papel central. Faz sentido. Ann-Margret é lindíssima, e gostosérrima, bastantosa. É também quatro anos mais jovem que Jane Fonda – que, aos 27, 28 anos, embora belíssima, esplendorosamente bela, e gostosa, não era tão bastantosa quanto a sueca, até porque, naquela época, ainda lutava insanamente contra a balança, e tinha bulimia.

Roger Vadim incentivou Jane Fonda a aceitar o papel. Lee Marvin deu dicas para ela

Ainda segundo o IMDb, Ann-Margret teria recusado o papel, sabe-se la por quê. Quando ofereceram o papel para Jane Fonda, ela teria dito que não havia compreendido o roteiro, nem o personagem. No entanto, estava sob contrato com a Columbia para um determinado número de filmes, e então aceitou.

zzcat9Fui checar na maravilhosa autobiografia da grande dama, Minha Vida Até Agora, copyright 2005, lançada no Brasil em 2006 pela Editora Record. Ela dedica ao filme parte de duas páginas; estava casada com Roger Vadim, o filho da mãe que foi casado com Brigitte Bardot, Annette Stroyberg, Catherine Deneuve e ela. Morava então na França. Vadim a estimulou a aceitar o papel, já que com isso ela cumpriria uma obrigação contratual, para se ver livre daquilo o mais rápido possível.

Jane Fonda conta que estabeleceu bom contato com Lee Marvin, ele também aprisionado à Columbia por um contrato. Conversaram bastante; ela aprendeu lições com o veterano.

Lee Marvin disse para a garotinha filha do gigante Henry Fonda, segundo ela escreveu na sua autobiografia: “Você precisa se impor mais, garota. Aprenda a dizer não quando eles pedirem que você continue trabalhando.”

As duas fotos P&B deste post – stills feitos pelo estúdio para divulgação do filme, como material promocional – indicam bem que a Columbia queria dar à atriz uma aura de símbolo sexual. Com Barbarella, dirigido por Vadim e lançado em 1968, essa imagem de sex symbol atingiu seu ápice.

Depois de Cat Ballou, Jane Fonda faria pelo menos mais um filme para a Columbia: Caçada Humana/The Chase, de Arthur Penn. Esse seria o primeiro dos filmes em que ela contracenaria com Robert Redford, antes de Descalços no Parque (1967) e O Cavaleiro Elétrico (1979). Seu papel em Caçada Humana é importante, embora pequeno.

Mesmo em papéis pequenos, mesmo em papéis que aceitou porque era parte de obrigação contratual, Jane Fonda brilha. Jane Fonda é grande como (para lembrar só de duas outras suecas bem mais importantes que a gostosona peitudérrima Ann-Margret) Greta e Ingrid.zzcat999

Anotação em setembro de 2013

Dívida de Sangue/Cat Ballou

De Elliot Silverstein, EUA, 1965.

Com Jane Fonda (Cat Ballou), Lee Marvin (Kid Shelleen e Strawn),

e Michael Callan (Clay), Dwayne Hickman (Jed), Nat King Cole (cantor), Stubby Kaye (cantor), Tom Nardini (Jackson Dois Ursos), John Marley (Frankie Ballou), Reginald Denny (Sir Harry Percival), Jay C. Flippen (xerife Cardigan)

Roteiro Walter Newman e Frank R. Pierson

Baseado na novela The Ballad of Cat Ballou, de Roy Chanslor

Fotografia Jack A. Marta

Música Frank De Vol

Montagem Charles Nelson

Produção Columbia Pictures, Harold Hecht Productions. DVD Columbia Pictures.

Cor, 97 min

R, **1/2

Título em Portugal: Cat Ballou – Mulher Felina. Na Espanha: La Ingenua Explosiva. No México: La Tigresa del Oeste.

6 Comentários para “Dívida de Sangue / Cat Ballou”

  1. Foi realmente um dos melhores filme que assisti e sempre estou assistindo.
    LEO OBAMA

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