Americano

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Nota: ★★½☆

Americano é um filme sobre relação filho-pais. Mas é um tanto ambicioso, e acaba sendo também uma pequena odisséia de um homem à procura da história de sua mãe, e também da sua própria história, que passa por três países diferentes e inclui um mergulho no submundo da prostituição de Tijuana, México, aquele lugar tão perto dos Estados Unidos, o paraíso das oportunidades, e tão longe de Deus.

Só nos créditos finais o espectador ficará sabendo que, enquanto via o filme escrito, dirigido e protagonizado por Mathieu Demy, viu também trechos de Documenteur, de 1981, de autoria de Agnès Varda.

Mathieu Demy (na foto abaixo) é filho de Jacques Demy e Agnès Varda. Seria de se supor, ao ver o sobrenome honroso, honrado – mas não sabíamos disso quando Mary se interessou pelo DVD na locadora, nem quando começamos a ver o filme.

Eu ignorante confesso que não sabia da existência de Mathieu Demy. O rapaz – nasceu em 1972, três anos antes da minha filha – já tem mais de 50 títulos como ator. Americano é seu primeiro longa-metragem como diretor; antes, havia realizado dois curtas.

Um homem jovem com conforto material e muita angústia

O filme começa com uma trepada. Martin e Claire trepam com alguma sofreguidão e desencontro. Perceberemos depois que moram juntos há algum tempo, embora não tenham assinado papéis. A relação não vai lá muito bem; Claire fala em ter filhos, Martin não quer saber. Claire se entrega mais à relação do que Martin.

MCDAMER EC054Na verdade, na verdade – veremos de sobra –, Martin, rapaz aí na faixa dos 30 e muitos, é tão bem realizado materialmente, com bom emprego, quanto inquieto, angustiado, pouco resolvido na cabeça. Tem aquela angústia profunda e de motivos um tanto indefiníveis de tantos personagens da literatura e do cinema franceses.

E aqui faço uma pequena pausa na sinopse, na apresentação da história, para lembrar que Martin é interpretado pelo autor e realizador Mathieu Demy, e Clara, por Chiara Mastroianni, a filha de Marcello e Catherine Deneuve. Marcello e Catherine trabalharam juntos diversas vezes, uma delas em Um Homem em Estado Interessante, no original L’événement le plus important depuis que l’homme a marché sur la lune, feito por Jacques Demy em 1973, quando Mathieu tinha um ano de idade.

Com a mãe de Chiara, o pai de Mathieu havia trabalhado também em Pele de Asno, de 1970, e, principalmente, em Os Guarda-Chuvas do Amor, de 1964, e Duas Garotas Românticas, de 1967.

As coincidências, as pequenas peças que o destino prega na vida das pessoas. Por absoluta coincidência – ou não –, esse é o tema da maior parte dos filmes do Demy pai. E é também um tema importante deste Americano do Demy filho.

Entre parênteses: deve ser dureza ser filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve – e ter a mesma profissão dos pais. Deve ser dureza ser filho de Jacques Demy e Agnès Varda – e ter a mesma profissão dos pais.

Não vai ser possível falar de Americano sem lembrar dos pais do realizador.

Em minutos, o protagonista joga no lixo tudo o que sua mãe juntara na vida

Na manhã seguinte à trepada da primeira sequência de Americano, toca o telefone. Martin se levanta da cama em que Claire dorme, e atende. O telefonema é para informar que sua mãe morreu.

zzamericano3Claire pergunta a Martin se ele quer falar, desabafar. É a coisa mais natural do mundo que uma mulher dê espaço para o homem falar, no momento em que ele acaba de receber a notícia da morte da mãe. Mas Martin se recusa a falar; diz que a mãe, agora, é passado.

Ele se encontra com o pai (Jean-Pierre Mocky), e o pai diz que ele terá que viajar até Los Angeles, onde a mãe morreu, para cuidar das coisas práticas: repatriar o corpo dela (ela deixou claro que gostaria de ser enterrada na França), vender o apartamento dela. É tudo o que Martin não gostaria de fazer na vida, mas o pai insiste: é tarefa dele, Martin. O pai, afinal, estava separado da mãe fazia décadas.

Contra sua vontade, numa violentação de tudo o que ele quer na vida, “como quem dá-se ao carrasco”, Martin viaja de Paris para Los Angeles, a cidade onde a mãe havia se radicado.

É recebido por Linda (o papel de Geraldine Chaplin, e no filme não há coincidência alguma com o fato de a atriz ser filha de Charlie e ex-senhora Carlos Saura), a maior amiga da mãe. Linda tratou da mãe nos seus últimos meses, no tempo final da doença – mas Martin, de forma até grosseira, diz que não quer ouvir os detalhes. Linda conduz Martin até o apartamento da mãe em Venice Beach (por coincidência, o único lugar de Los Angeles que eu conheci), mas para Martin tudo o que está ali dentro, as roupas da mãe, seus próprios desenhos quando criança, os discos, os papéis da mãe, tudo parece sórdido, velho, nojento. Ele junta tudo aquilo, sofregamente, sem prestar atenção a nada, e bota no lixo.

E aqui faço de novo uma pausa para uma digressão.

zzamericano8Em Missing – o maravilhoso filme de Costa-Gavras sobre o homem de negócios americano razoavelmente bem sucedido que vai ao Chile logo após o sangrento golpe liderado por Augusto Pinochet Ugarte em busca de seu filho desaparecido como tantos milhares de outros desaparecidos – o protagonista, Ed Horman (interpretado maravilhosamente por Jack Lemmon), exigirá dos sujeitos da Embaixada americana que sejam juntados todos os papéis da casa do rapaz – cada folha de papel –, para ele levar de volta para os Estados Unidos.

Em cada pequena folha de papel com uma anotação de seu filho que aderiu ao sonho do socialismo com face humana de Salvador Allende está a história dele – e o pai quer guardar tudo. Faz questão de preservar tudo.

Martin faz exatamente o contrário. Em questão de minutos, joga tudo que conta a história de sua mãe (e também boa parte da sua própria) no lixo. Quer se livrar daquilo como o diabo da cruz.

Fico pensando em como Fernanda e Inês se apegam a tudo que possa lembrar da história das mães delas. Assim como Ed Horman em relação ao filho, elas jamais jogariam fora uma folha de papel com uma anotação de suas mães.

O protagonista passou a vida achando que a mãe o rejeitara

Já que estou fazendo comparações, examinando semelhanças e dessemelhanças – que, a rigor, é o que sei fazer, nestas anotações –, lembro agora de um filme que revi recentemente que também trata da relação entre pais e filhos, Um Amor Verdadeiro/One True Thing. Nesse filme de Carl Franklin de 1998, a personagem interpretada por Renée Zellweger – assim como o protagonista deste Americano – é levada a se confrontar com seu passado e com a imagem que fazia de seu pai e sua mãe. A trama de Um Amor Verdadeiro mostrará que a filha passou a vida superestimando o pai e subestimando a mãe.

A conta-gotas, bem devagarinho, a narrativa de Americano mostrará que Martin passou a vida inteira achando que a mãe não queria saber dele, abriu mão dele quando era bem garoto porque não fazia questão de continuar com ele. E que o pai não teve então outra opção a não ser levá-lo de volta para a França, onde cresceu e viveu, cada vez mais distante da mãe.

As lembranças do protagonista são trechos de um filme de Agnès Varda

Naquele diálogo lá bem no início com Claire, Martin diz que se lembra de muito pouca coisa de sua infância, quando os pais haviam se mudado da França para os Estados Unidos.

zzdocumenteurA partir da viagem para Los Angeles, no entanto, ele começa a se lembrar de algumas cenas esparsas de quando era criança.

As sequências das recordações de Martin aparecem na tela num tamanho, num enquadramento diferente das demais seqüências do filme. Americano foi filmado em widescreen. As sequências das recordações vêm numa resolução de tela diferente, mais quadrada.

Como já foi dito lá acima, os créditos finais mostram que essas seqüências são tiradas do filme Documenteur (foto acima), que Agnès Varda, a mãe do realizador, fez em 1981. Sou fã de carteirinha da mãe e do pai de Mathieu Demy desde sempre, desde que era bem garoto, mas não tive a oportunidade ver Documenteur.

Embora correndo o risco de repetir obviedades, acho bom lembrar que Documenteur é a junção das palavras documentaire, documentário, com menteur, mentiroso. Quando, em 2006, o Centro Cultural Banco do Brasil promoveu uma Retrospectiva Agnès Varda, em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, editou uma beleza de catálogo, em que Documenteur apareceu como Documentira. A sinopse do filme no catálogo diz o seguinte: “Em Los Angeles, Emilie, uma francesa separada do homem que ama, procura um lugar para morar com seu filho de 8 anos, Martin. Após encontrar moradia, ela recupera móveis de segunda mão largados pela rua, mas seu transtorno é expresso mais pelas pessoas que a observam do que por ela mesma, que vive silenciosamente, num múltiplo exílio”.

A atriz que faz Emilie, a mãe, é Sabine Mamou – que também foi a montadora de Documenteur. O garotinho que aparece como seu filho Martin é Mathieu Demy!

Enquanto vemos Americano, com Mathieu Demy interpretando Martin aos 30 e muitos anos, vemos também cenas do filme feito pela mãe dele em 1981 em que ele próprio faz o papel de Martin aos sete anos de idade!

Os Demy-Varda exageram na coisa da metalinguagem, meu!

Mary, aqui ao lado, quando conto para ela isso que acabo de saber no catálogo da Retrospectiva Agnès Varda, diz: “Então é uma terapia!”

Do filme da mãe, Mathieu Demy não tomou emprestadas apenas algumas sequências que em Americano aparecem como as memórias do personagem. Ele usou também melodias compostas para Documenteur pelo grande, imenso Georges Delerue. O compositor Grégoire Hetzel fez variações sobre os temas de Delerue para o filme da Varda. A trilha de Americano é belíssima – e as músicas incidentais são muito bem escolhidas.

Duas das seqüências em que aparece Salma Hayek são extraordinariamente belas

As coincidências, as pequenas peças que o destino prega na vida das pessoas.

zzamericano9Não vou, é claro, revelar muito da trama de Americano além do que se passa aí pelos primeiros 15, 20 minutos de filme. Mas, sem dar um spoiler, um estraga-prazer, entrega-trama, posso dizer que lá pelas tantas surge uma personagem chamada Lola Sanchez. Depois que o filme já passou de sua metade, aparecerá identificada como Lola aquele absurdo de beleza que é Salma Hayek.

Sem revelar segredos da trama, dá para dizer que o filho de Demy e Varda faz com Salma Hayek duas seqüências, em especial, que são impressionamente belas.

Salma Hayek aparece num cabaré, um puteiro de Tijuana, cantando e tirando a pouca roupa que tinha no início da sequência. A canção, que eu não conhecia, se chama “Going to a town”, é do canadense Rufus Wainright, e é maravilhosa.

É estarrecedoramente bela toda a sequência.

(E aqui faço mais um parênteses. Me sinto envergonhado por não ter conhecido antes essa canção de Rufus Wainright. O clipe dele cantando é uma maravilha. A seqüência em que Salma canta a música é… Melhor ver e escolher o adjetivo.)

zzamericano6Depois a câmara pegará Salma Hayek desde os pés e subirá pelas pernas, pelas coxas, pela barriga, pelo peito, até o rosto. Credo em cruz. A câmara do diretor de fotografia Georges Lechaptois parece em êxtase absoluto – como a dos diretores de fotografia de Joseph Von Sternberg diante de Marlene Dietrich, e as dos de Billy Wilder diante de Marilyn Monroe.

Bem, mas onde há coincidências, as pequenas peças do destino, nesse personagem interpretado por Salma Hayek?

No nome. Lola.

O primeiro longa-metragem do pai de Mathieu Demy, de 1961, se chama Lola, e a Lola de Demy pai vinha na pele de Anouk Aimée. O sujeito que cai de quatro diante de Lola, Roland Cassard, iria reaparecer em Os Guarda-Chuvas do Amor, em 1964. E em 1969 o Demy pai faria, com a mesma Anouk Aimée, uma espécie de continuação do Lola de 1961, no filme Model Shop, feito nos Estados Unidos. No Brasil, Model Shop se chamou O Segredo Íntimo de Lola.

O Martin do primeiro longa-metragem do Demy filho vai ao México tentar encontrar Lola.

Os Demy-Varda exageram na coisa da metalinguagem.

Não é um grande filme. Mas tem coisas boas – é um filme para se respeitar

Um pequeno detalhe. Num filme que reúne Chiara Mastroianni, Geraldine Chaplin e Salma Hayek, o Demy filho inventou um pequeno papel para André Wilms. Eu não conhecia esse ator. Ele faz o papel principal no belo filme do finlandês Aki Kaurismäki, O Porto/Le Havre, do mesmo ano de 2011.

E, agora, uma tentativa de conclusão.

Não me pareceu um grande filme, esta estréia de Mathieu Demy na direção de longa. Tem mostras disso mesmo, de que é estréia, de que é começo. Como quase toda primeira obra de jovem, é ambiciosa, pretensiosa, e tem um ou outro defeitinho.

Mas é um filme para se respeitar.

O garoto tem muito chão pela frente. E tem talento. Embora a frase “tem talento”, em referência a um filho da Varda e de Demy, seja apenas um pleonasmo bobo.

Anotação em novembro de 2012

Americano

De Mathieu Demy, França, 2011

Com Mathieu Demy (Martin), Salma Hayek (‘Lola’), Geraldine Chaplin (Linda), Chiara Mastroianni (Claire), Carlos Bardem (Luis), Jean-Pierre Mocky (o pai), Pablo Garcia (Pedro), André Wilms (o alemão), Sabine Mamou (a mãe, em cenas do filme Documenteur)

Argumento e roteiro Mathieu Demy

Fotografia Georges Lechaptois

Música original Grégopire Hetzel

Com música de Georges Delerue para o filme Documenteur, de Agnès Varda

Entre as canções, “Going to a town”, de Rufus Wainright

Montagem Jean-Baptiste Morin

Cor, 90 min

Produção Les Films de l’Autre, Ciné Tamaris, arte France Cinémam, Canal+. DVD Califórnia.

**1/2

Um comentário para “Americano”

  1. Eu particularmente gostei muito de “Americano”, a mais do que promissora estreia de Mathieu Demy na direção de longas-metragens. Infelizmente, Mathieu não dirigiu outros filmes até o momento. Porque será? Qual terá sido a reação da crítica mundial a respeito desse filme?

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