Visões de um Crime / Faces in the Crowd

Nota: ★★★☆

Prosopagnosia. Esse distúrbio pouco conhecido e de nome difícil de memorizar é a base da trama fascinante criada pelo autor, roteirista e diretor Julien Magnat para seu filme Visões de um Crime, no original Faces in the Crowd e na França Faces. Com base na trama engenhosa, esse Magnat criou um thriller psicológico envolvente, às vezes abertamente apavorante, bem feitíssimo, com um visual caprichado, estiloso – e uma sacada única, sui generis, marcante.

O filme abre com extremos close-ups de rostos, enquanto rolam rápidos créditos iniciais. É um casal que dorme.

Toca o despertador: 7h10 da manhã. Vemos o início do dia do casal. Ele se chama Bryce (Michael Shanks); é um profissional bem sucedido, não será explicitado de quê, em que área de atividade, mas está para se tornar sócio da empresa. Ela é Anna – e vem na pele de Milla Jovovich, essa ucraniana de beleza estupenda que começou a carreira de modelo aos 9 anos, já nos Estados Unidos, e que o diretor e produtor Luc Besson transformou em estrela.

A TV, o rádio, o jornal falam do assassino serial que tem atacado no East Side. A imprensa o chama de Tearjerk Jack – tearjerk porque ele costuma chorar e deixar lágrimas na roupa das mulheres de quem corta o pescoço com uma navalha.

Anna trabalha como professora numa pré-escola particular de garotos bem de vida. Veremos que ela tem uma capacidade especial de identificar cada um dos seus alunos e saber quem está fazendo o quê a cada momento.

Numa aula de artes, uma linda garotinha deixa cair seu copo de água sobre o desenho de um rosto de mulher. A água atinge exatamente os olhos da mulher que a garotinha havia desenhado com aquarela. A câmara mostra o desenho, uma parte do rosto e os olhos embaçados pela água. É uma antecipação do que está por vir. O autor-diretor Julien Magnat é estiloso.

Apesar de haver um serial killer à solta, Anna volta para casa a pé

As terças-feiras são a girls’ night out, a noite em que as moças saem juntas e vão a um bar de paquera. Anna – veremos no diálogo entre elas – está com Bryce faz um ano, moram juntos há alguns poucos meses, há a possibilidade um casamento à vista, mas ela manteve a rotina de sair toda terça à noite com as amigas solteiras Francine (Sarah Wayne Callies) e Nina (Valentina Vargas) para o bar da paquera.

Conversam sobre homens. Olham as bundas dos homens que passam pelo bar, dão a eles notas de 1 a 10 pelos atributos físicos, em especial as bundas.

Naquela noite, Nina encontra uma paquera. Francine bebe umas a mais, sai bebinha do bar, pega um táxi. Anna, apesar de haver um serial killer à solta, prefere voltar a pé para casa. Quando se encaminha para uma ponte em que há obras, plásticos grossos estendidos em alguns locais, a câmara, colocada bem junto do solo, mostra os sapatos de Anna sobre o piso um tanto molhado. O autor-diretor Julien Magnat é estiloso.

No meio da ponte, atrás de um dos plásticos de obra civil, um casal se amassa. Anna passa por eles.

Está bem perto deles quando ouve um ruído. A câmara mostra uma mulher caída no chão, a garganta recém-cortada. Anna olha para a cena. Tenta sair dali o mais rapidamente possível, sem fazer muito barulho, mas naquele exato momento seu celular toca – certamente é Bryce perguntando por ela. O homem que acaba de matar mais uma vítima ouve o barulho, vai atrás da testemunha de seu crime, navalha na mão. Anna levanta as mãos à frente do rosto para se proteger, a navalha faz um corte na palma de uma de suas mãos. O homem avança sobre ela, ela foge para perto da amurada da ponte, e cai.

Antes de cair no rio lá embaixo, bate a cabeça no cimento da ponte.

As tomadas da queda de Anna nas águas do rio são de uma beleza espetacular.

Ao recobrar os sentidos, Anna não consegue reconhecer os rostos familiares

Estamos aí com uns dez minutos de filme.

Quando Anna recobra os sentidos, em um hospital, diante das duas maiores amigas e do namorado, não reconhece os rostos de nenhum deles.

O diagnóstico não demora.

Prosopagnosia. A reunião de duas palavras gregas. Prosopon – cara, face. Agnosia – inabilidade de reconhecer.

Essa doença é também conhecida como cegueira para feições, ou, em inglês, face-blindness.

As pessoas com prosopagnosia não conseguem reconhecer rostos, mas em geral mantêm a habilidade reconhecer objetos, sons, movimentos. A princípio, a Medicina acreditava que a doença estava relacionada a um choque, um trauma, uma batida forte na cabeça. Pesquisas mais recentes no entanto sugerem que cerca de 2% da população sofra da desordem em algum grau. Ela pode ser hereditária, congênita, ou desenvolvida a partir de um trauma – ou não.

Evidentemente, eu não sabia de nada disso quando vi o filme. Jamais tinha ouvido falar em prosopagnosia. Li um pouquinho sobre o distúrbio depois de ver este Faces in the Crowd. (A revista Superinteressante traz boa reportagem sobre a doença.)

Vários filmes de suspense usam distúrbios na trama, em especial problemas de visão

Distúrbios, insuficiências, doenças, problemas psiquiátricos são fonte antiga para filmes de suspense, thrillers. Problemas relacionados à visão em especial. Em Um Clarão nas Trevas/Wait until Dark (1967), a protagonista, interpretada por Audrey Hepburn, é cega – e seu apartamento é invadido consecutivamente por três bandidos que procuram uma boneca recheada de heroína que tinha ido parar lá por engano. Em Jennifer 8 (1992), a personagem de Uma Thurman também é cega, e um policial recém chegado à região (Andy Garcia) está certo de que ela será a próxima vítima de um assassino que já matou sete.

No espanhol Os Olhos de Júlia (2010), duas irmãs gêmeas sofrem de uma doença degenerativa que as levará à cegueira – e levará o espectador a enfrentar uma série de cenas em que há garganta cortada e sangue esguichando.

Em Blink – Num Piscar de Olhos (1994), a personagem de Madeleine Stowe tinha ficado cega quando criança. Graças a um tipo novo de cirurgia, volta a ter visão, embora parcialmente. Uma noite, acredita ter testemunhado um crime – mas não tem certeza absoluta se viu o que acha que talvez tenha visto.

Com exceção do espanhol – que, na minha opinião, é um slasher movie, apelativo como todo slasher movie –, os exemplos citados são todos bons filmes, bem elaborados, com muito suspense.

Anna vê um rosto diferente cada vez que olha uma pessoa

Faces in the Crowd prossegue nesse rico filão.

A trama criada pelo autor e diretor Julien Magnat é extraordinária.

E a forma como ele realiza seu filme é um brilho. Tem o que chamei lá em cima de sacada única, sui generis, marcante.

A partir do choque, do ataque do assassino serial, da queda no rio, Anna, diagnosticada com prosopagnosia, não consegue identificar os rostos que vê. Às vezes não identifica sequer o seu – e, quando Anna-Milla Jovovich se olha no espelho, não vê o rosto de Milla Jovovich, e sim o de outras mulheres.

E o espectador também vê o rosto de outras mulheres, e não o de Milla Jovovich.


Quando Anna olha para Bryce, o namorado firme com quem estava prestes a casar, não vê o rosto do ator que tínhamos visto que fazia o papel de Bryce, Michael Shanks – vê outros rostos. Cada vez que ela olha para Bryce, vemos na tela um ator. No total, 15 atores aparecem para nós, espectadores, e para Anna, como Bryce.

A mesma coisa acontece quando ela vai se encontrar com as duas maiores amigas, Nina e Francine. Seis atrizes diferentes aparecerão como Nina, e cinco como Francine.

A psiquiatra, doutora Langenkamp, que ela procura para tentar se tratar do distúrbio enlouquecedor, primeiro surge na pele da grande Marianne Faithfull. Depois surgirá como outras cinco atrizes.

Lá pelas tantas, algum tempo depois do choque, Anna parece finalmente preparada para voltar a trepar – nos primeiros dias, ela não suportava sequer o toque de uma das amigas. E então trepa com Bryce – mas cada vez que olha para ele vê um rosto diferente. É uma bela sequência – atordoante, apavorante.

Identificar claramente seus alunos na pré-escola era um dos grandes talentos de Anna. Agora ela não sabe mais quem é quem.

É assustador, enlouquecedor – e o filme sabe como envolver o espectador naquele drama insano em que mergulha a protagonista da história. Ficamos condoídos com o pesadelo infernal de Anna – que, infelizmente, não é pesadelo, é a realidade.

E ainda há o assassino.

Na seqüência na ponte, quando estamos chegando a dez minutos de filme, vemos que o assassino recolhe o celular e a bolsa de Anna.

O assassino sabe o nome da pessoa que viu seu rosto. Sabe onde ela vive, onde ela trabalha, sabe quem são seus amigos, seu namorado.

O detetive da polícia encarregado do caso, Sam Kerrest (Julian McMahon, na foto acima), a princípio, em vez de ajudar, atrapalha. Parece exigir que Anna identifique o assassino – mesmo Bryce e a própria Anna explicando que ela sofre da cegueira para feições.

E uma sequência que surge aí quando o filme está com uns 30, 35 minutos, sugere que o próprio detetive pode talvez ser o assassino serial.

É apavorante. É assustador, enlouquecedor.

Há poucas informações sobre o autor e realizador do filme

Julien Magnat é quase tão misterioso quanto a história de mistério que soube criar neste Faces in the Crowd.

Nem o IMDb nem a Wikipedia (tanto em francês quanto em inglês) trazem a data de nascimento do rapaz. Contam que ele nasceu na França, estudou cinema na Inglaterra. Ele se diz influenciado por Stephen King, o mestre das histórias de mistério e terror.

Faces in the Crowd é seu segundo longa-metragem. O primeiro foi Bloody Mallory, co-produção França-Espanha de 2002, uma história de vampiros.

Para este filme aqui, teve um orçamento de US$ 11 milhões. Baixíssimo para um filme comercial, confortável para uma produção independente.

Os créditos finais dizem que o filme é uma co-produção Canadá-França, mas aparentemente houve também participação de produtores americanos. As filmagens foram no Canadá, mas o filme foi distribuído em língua inglesa, e não em francês.

Há, bem no início, há referência a East Side, e por isso o espectador é levado a pensar que a ação se passa em Nova York – mas não se diz em momento algum em que cidade estamos. A rigor, pode ser qualquer grande cidade, nos Estados Unidos ou no Canadá.

O que não é mistério, o que é absolutamente claro é que o cara tem talento. Para criar história e para encená-la.

A fotografia do filme é esplendorosa. O trabalho de montagem, com diversos atores fazendo o papel das mesmas pessoas em uma única sequência, também é brilhante.

Milla Jovovich não é uma atriz extraordinária. Virou atriz por causa da beleza, essa sim fora de série, e virou estrela pela persistência de Luc Besson, então seu marido. Mas está bem, bastante bem, no papel difícil dessa Anna levada pelas trapaças do destino a uma situação absolutamente desesperadora. Todo o elenco está bem – o que demonstra que Magnat tem também o talento de saber dirigir atores.

Uma ótima, agradável surpresa. Beleza de thriller.

Anotação em setembro de 2012

Visões de um Crime/Faces in the Crowd

De Julien Magnat, Canadá-França-EUA, 2011.

Com Milla Jovovich (Anna Marchant),

Michael Shanks (Bryce), Julian McMahon (Sam Kerrest), David Atrakchi (Lanyon), Marianne Faithfull (Dra. Langenkamp), Sarah Wayne Callies (Francine),  Valentina Vargas (Nina)

Argumento e roteiro Julien Magnat

Com a participação de Agnès Caffin e Kelly Smith

Fotografia Rene Ohashi

Música John McCarthy

Produção Minds Eye Entertainment, Frantic Films, Radar Films, Forecast Pictures.

Cor, 102 min

***

 

4 Comentários para “Visões de um Crime / Faces in the Crowd”

  1. Um suspense eletrizante mesmo, daqueles que nos deixam apreensivos e assustados. Só não gostei do final, achei que forçou demais. Quem em sã consciência, numa situação de perigo, corre para uma ponte? Qual policial experiente vai desarmado tomar a arma de um assassino, como se fosse tirar o doce de uma criança?
    Aliás, a cena na ponte parece ter sido copiada de outro filme.
    Achei ótimo o close-up no começo da história, deu pra ver que pele de atriz rica com rosto de top model também é cheia de problema. Bom, atriz é modo de falar, ela se esforçou nesse filme, mas é fraquinha de dar dó, sempre fazendo bico em todas as cenas. E as duas que fazem as amigas dela… Uma é pior que a outra; difícil escolher.

  2. Acredito que eu tenha prosopagnosia em grau leve. Desde pequena sempre tive dificuldade pra lembrar de rostos e reconhecer pessoas. Quando penso em alguém, lembro de características esparsas da face da pessoa, nunca no todo. Se eu tentar lembrar da minha mãe agora, por exemplo, eu lembro que ela tem olho verde, nariz fino, etc, mas não consigo lembrar do rosto dela. Quando eu era mais nova até estranhava um pouco me ver no espelho, porque a imagem mental que eu tinha de mim mesma era diferente.

    Vou ver esse filme, parece ser muito bom. Quem sabe até me identifique um pouco? Hahaha!

  3. O filme tinha tudo para ser bom, a começar pelo tema abordado e pela proposta de suspense. Ao contrário do que tem sido muito comentado, eu amei a atuação da protagonista.
    O início do dilme foi bem atrativo, mas, do meio p o fim, começa a sessão cliché. A cena final com Anna retornando à ponte e tentando escapar pela borda. Em seguida, ela se encontra totalmente vulnerável a ponto de despencar, eqto o assassino lhe aponta uma arma, mas não atira. Tudo isso foi a cereja podre no bolo. Detonou o roteiro. Fiquei super decepcionada!

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