Potiche – Esposa Troféu / Potiche

Nota: ★★★☆

Potiche é uma deliciosa gozação com um monte de temas sérios: capitalismo, luta de classes, patrões x trabalhadores, política partidária, machismo, dominação das mulheres pelos homens, vida em família, infidelidade conjugal. É um filme que definitivamente não leva nada a sério – muito menos a si próprio.

Apesar disso, no entanto, faz uma gostosa e firme defesa do feminismo, da força das mulheres.

Uma maravilha, uma delícia.

É uma farsa. Passa a anos-luz do realismo, do naturalismo

A melhor qualificação para Potiche, fico pensando, é farsa. François Ozon, um realizador estilista, cheio de estilo, faz questão de deixar claro, desde as primeiras seqüências, que seu filme passa o mais longe possível do realismo, do naturalismo.

O filme abre com Catherine Deneuve correndo, fazendo jogging, num parque, um lugar belíssimo, vegetação densa, abundante. Ela corre ao longo dos créditos iniciais, em que Ozon divide a tela em vários quadros, brinca de split screen. Quando os créditos iniciais terminam, La Deneuve faz uma exagerada expressão de espanto encantado, ou encantamento espantado: acaba de ver um belo veadinho no mato. Depois um esquilo.

A expressão exagerada da maravilhosa atriz já dá o tom: atenção, senhores espectadores, o que virá a seguir não é uma narrativa comprometida com o realismo – é uma farsa.

O tom de farsa estará presente ao longo de toda a narrativa.

Consulto o professor Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, para checar se o termo farsa é o correto. E está lá: “Sutil, se não difícil de precisar, a distinção entre a farsa e a comédia. De modo geral, pode-se afirmar que a diferença é de grau: a farsa consistiria no exagero do cômico, graças ao emprego de processos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a caricatura, o humor primário, as situações ridículas”.

É exatamente isso.

E é muito importante que o espectador perceba logo de cara que Potiche é uma farsa – porque, se não cair a ficha, ele poderá ter dificuldade de entrar em sintonia com o filme.

Isso me aconteceu uma vez, com um filme de Ozon, Angel, de 2007, seu primeiro feito em língua inglesa. Fiquei estranhando o filme. Como anotei na época: “Mas o que houve?, eu me perguntava. O Ozon ficou doido? Mas como ele pode ter perdido a mão tão completamente de um dia para o outro? Será que é por estar filmando em uma outra língua? Mas isso não é possível…

É tudo, absolutamente tudo, exageradamente esquisito, estranho, tudo falso, os diálogos, as atuações; todos os atores estão uma oitava acima.”

Demorou cerca de meia hora para que me caísse a ficha: Ozon estava, deliberadissimamente, adotando um tom róseo, irreal, falso, o tom das historinhas românticas para garotas românticas de revistas tipo Sabrina, ou de autores como M. Delly ou Barbara Cartland. Era um exercício de estilo – brilhante, aliás. O cara é de fato um estilista.

Uma rica herdeira, esposa troféu, um marido patrão ditatorial, reacionário, imbecil

Catherine Deneuve interpreta Suzanne Pujol, mulher rica, que havia herdado do pai uma fábrica de guarda-chuvas. Quando o pai morreu, quem passou a dirigir a fábrica foi o marido dela, Robert Pujol (interpretado, com maneirismos exageradíssimos, por Fabrice Luchini).

A ação se passa em 1977, nos informa um letreiro no início do filme.

Robert é o protótipo do patrão ditatorial, rigoroso, que só percebe os seus próprios interesses, insensível a qualquer tipo de reivindicação de seus trabalhadores. Um industrial reacionário, obtuso, imbecil. Fode os trabalhadores de maneira geral e o mesmo verbo especificamente a secretária bela e competente, Nadèje (Karin Viard).

O casal tem dois filhos. Joëlle (Judith Godrèche) consegue ainda mais reacionária e obtusa que o próprio pai; é daquele tipo pré-Revolução Francesa, que considera os empregados escravos. Laurent (Jérémie Rénier), ao contrário, é bem mais aberto, aggiornato.

Na manhã em que a narrativa começa, Suzanne, a esposa, depois do jogging pelo parque, prepara o café da manhã para o marido – os empregados, portugueses, foram ao país natal para algum compromisso familiar. Em um rápido diálogo dos dois, o espectador percebe que o Robert trata a mulher de fato como uma esposa troféu – espera dela burrice e servilidade.

É o dia de aniversário de Suzanne, mas o marido imbecil, naturalmente, não se lembra disso. Pouco depois que ele vai para a fábrica, Joëlle, a filha, chega para visitar a mãe – e cobra dela exatamente o fato de ela ser servil demais, esposa troféu. A própria Suzanne havia usado a palavra “potiche” na conversa com o marido, para se definir, e a palavra volta a ser usada no diálogo entre ela e a filha.

Potiche, explica o Petit Larousse, é “vase de porcelaine de Chine ou du Japon”.

“O paternalismo acabou. Hoje o patrão tem que ser canalha, servo do capitalismo selvagem”

Suzanne, a burguesa fútil que nunca tinha feito nada produtivo na vida, que era tratada por todos como um vaso de porcelena, um enfeite, um troféu, vai surpreender, e muito, e demais da conta, o marido babaca, a filha babaca, o filho legal mas que se esconde no armário, o ex-caso da juventude, os sindicalistas, os trabalhadores da fábrica, a cidade inteira.

O ex-caso da juventude, Maurice Babin, vem na pele e no corpo gigantesco, obelixiano, de Gérard Depardieu. Babin, comunista de carteirinha (vemos fotos dele com Georges Marchais, na época o secretário-geral do Partido Comunista Francês), é agora ao mesmo tempo deputado e prefeito da cidadezinha provinciana onde vivem os personagens. Ainda arrasta as asinhas para a bela Suzanne. Quando se reencontram pela primeira vez, depois de anos, há um diálogo delicioso.

Babin, o comunista: – “Você era a filha do patrão, e eu, um proletário. Com você eu traí minha classe”.

Suzanne: – “E eu, o meu marido. O que é pior?”

Os diálogos são sempre afiadíssimos. Ainda no início da narrativa, Suzanne diz para o filho Laurent que, na época em que o pai dela era o dono da fábrica, todos os trabalhadores o adoravam. E Laurent contesta:

– “Você não sabe de nada, mamãe. O paternalismo acabou, está fora de moda. Hoje, para ter sucesso, é preciso que o patrão seja um canalha, um servo do capitalismo selvagem.”

Homenagem a La Deneuve, ao cinema francês

Ozon goza a luta de classes, o amor, o romance, a saudade, a infidelidade – o que vier pela frente ele traça e goza.

E, no meio da imensa gozação, da farsa, faz uma bela homenagem à deusa Catherine, que já havia dirigido no igualmente delicioso Oito Mulheres: uma fábrica de guarda-chuvas, uma imensa quantidade de guarda-chuvas das mais diversas cores – claro, uma lembrança de Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg, que Jacques Demy filmou em 1964, quando a hoje primeira-dama do cinema francês estava com 21 aninhos e tinha uma carinha baby de 17.

Reunir novamente La Deneuve e Gérard Depardieu também é uma homenagem aos dois grandes atores, à dupla que fez tantos filmes junta, desde o maravilhoso O Último Metrô, de François Truffaut, de 1980 (ela com 37, aparência de não mais que 25, ele com 32, esbelto, aparência de uns 28), até o belíssimo, amargo Tempos que Mudam/Les Temps qui Changent, de André Téchiné, de 2004 (ela com 61 anos muitíssimo bem vividos, ele com 56 e já com aquele corpanzil enorme).

Reunir La Deneuve e Depardieu acaba sendo uma homenagem ao cinema francês. E um prazer imenso para quem ama os filmes.

Anotação em abril de 2012

Potiche – Esposa Troféu/Potiche

De François Ozon, França, 2010

Com Catherine Deneuve (Suzanne Pujol), Gérard Depardieu (Maurice Babin), Fabrice Luchini (Robert Pujol), Karin Viard (Nadège Dumoulin), Judith Godrèche (Joëlle Pujol de la Morette), Jérémie Rénier (Laurent Pujol), Sergi López (o caminhoneiro espanhol), Évelyne Dandry (Geneviève Michonneau), Bruno Lochet (André Ferron, o sindicalista), Elodie Frégé (Suzanne jovem), Gautier About (Babin jovem)

Roteiro François Ozon

Livremente adaptado da peça de Pierre Barillet e Jean-Pierre Grédy

Música Philippe Rombi

Produção Mandarin Films, FOZ, France 2 Cinéma, Mars Films, Wild Bunch, Scope Pictures, Canal+.

Cor, 103 min

R, ***

5 Comentários para “Potiche – Esposa Troféu / Potiche”

  1. Sergio, você está de bem com a vida. A ideia de farsa é genial – eu não havia percebido. O filme não é ruim. Também não é ótimo. É… médio. Mas é tanta pataquada – no estilo farsa – que desanima. Cenas desnecessárias surgem a todo momento. O ápice é Catherine cantar, do nada! Não precisava.

    Abs.

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