Este Mundo é um Hospício / Arsenic and Old Lace

Nota: ★★★☆

Este Mundo é um Hospício, no original Arsenic and Old Lace, literalmente arsênico e rendas antigas, é a comédia mais abertamente maluca do grande Frank Capra. Uma absoluta screwball comedy, para usar o termo que definia o tipo de filme que dava mais importância ao riso, à gargalhada, que à racionalidade, à lógica, à verossimilhança.

Antes mesmo de dar uma olhada nos alfarrábios, arrisco um palpite. Para entender e apreciar melhor Arsenic and Old Lace, basta observar em que período este aqui foi feito. O filme foi lançado em 1944, aquele que seria o penúltimo ano da Segunda Guerra Mundial. Entre 1941 e 1945, Capra se dedicou a filmes do esforço de guerra, filmes a serviço do país que havia adotado – nascido em Bisaquino, na Sicília, em 1897, emigrou criança com a família para os Estados Unidos em 1903.

Durante a guerra, Capra foi um dos produtores e diretores da série de documentários Why We Fight – e o título do filme, Por que lutamos, já explica tudo –, e dos longas Tunisian Victory, The Negro Soldier e Know Your Enemy: Japan.

Para um humanista cheio de fé nas pessoas, um believer, um sonhador utópico, deve ter sido seguramente um período enlouquecedor, aqueles anos em que o país de seus pais, junto com a Alemanha e o Japão, enfrentaram o resto do mundo na mais trágica das guerras.

No meio de tanta insanidade, só mesmo abandonando qualquer racionalidade, lógica, verossimilhança. Só mesmo partindo para a mais screwball de todas as comédias.

Capra levou apenas quatro semanas para fazer o filme – e em seguida foi para a Guerra

Hummm… A pensata acima parece correta, mas a ordem dos fatores – que não altera o produto – é diferente. Uma primeira olhada nos alfarrábios esclarece que, embora Arsenic and Old Lace tenha sido lançado apenas em 1944, na verdade o filme foi rodado em 1941, logo antes de Capra passar a se dedicar em tempo integral ao esforço de guerra, alistando-se no 834º batalhão do exército americano, chamado de Photo Signal Detachment, inicialmente sob as ordens do general George C. Marshall. Ao final da guerra, em 1945, Capra desmobilizou-se do Exército com a patente de coronel; da Grã-Bretanha de Winston Churchill, recebeu a ordem do Império pelo conjunto de seus documentários de guerra; do país que adotou, foi honrado com a Distinguished Service Medal.

Arsenic and Old Lace foi filmado rapidissimamente, em apenas quatro semanas, em um único cenário – uma casa ampla no Brooklyn, onde moram as duas irmãs Brewster, Martha e Abby (Jean Adair e Josephine Hull, na foto acima), duas senhorinhas solteironas respeitabilíssimas, adoradas por todo mundo no bairro, e seu irmão visivelmente doido de pedra, que se acha o presidente Teddy Roosevelt (John Alexander, na foto abaixo).

Do lado de fora da casa, pode-se ver um centenário cemitério e, ao fundo, pintado em papelão, o horizonte de Manhattan, atrás da Ponte do Brooklyn.

Um fundo desenhado em papelão que deixaria Alfred Hitchcock encantado – o velhinho doido adorava um cenário de papelão. Não abriu mão dele nem mesmo nos anos 60, como pode atestar qualquer um que viu Marnie, Confissões de uma Ladra, aquela maravilha.

Entre o papelão e a casa dos Brewster, passam trens e carros, miniaturas arranjadas no estúdio.

“Nada de grande documento social para salvar o mundo, nada de discussão sobre o destino trágico de John Doe”, diria Frank Capra em sua autobiografia. “Nada a não ser o velho e bom teatro – uma comédia louca, desopilante, em torno de uma série de assassinatos. Deixei as rédeas com meus atores, e eles se entregaram de coração à alegria – era uma disputa para ver quem eclipsava o outro em verve e fantasia.”

Esse trecho da autobiografia de Capra, The Name Above the Title: An Autobiography, publicada em 1971 nos Estados Unidos, reproduzo a partir do livro Frank Capra, de Michel Cieutat, assim como outras informações desse livro interessantíssimo sobre o mestre.

O velho e bom teatro: Arsenic and Old Lace, peça de autoria de Joseph Kesselring, estava ainda sendo apresentad na Broadway, com grande sucesso, quando Capra fez seu filme, em cima de um roteiro baseado na peça escrito pelos irmãos Julius J. e Philip G. Epstein, uma dupla genial que assinou belos textos entre 1935 e 1977, incluindo Casablanca.

Foi por isso, porque a peça continuava em cartaz, que a Warner só pôde lançar o filme em 1944; no contrato para a cessão dos direitos, estipulava-se uma janela entre as apresentações no teatro e o lançamento do filme.

Cary Grant está absolutamente solto, escrachado; parece personagem de desenho animado

É fascinante ver a frase de Capra: “Deixei a rédea com meus atores”. Isso transparece claramente no filme. Cary Grant está absolutamente solto, tão ou mais solto quanto nas screwball comedies que fez com Howard Hawks, o mestre do gênero. Bem, Hawks era mestre em vários gêneros, mas foi o autor de algumas das mais malucas das comédias amalucadas dos anos 30 e 40, como Levada da Breca/Bringing up Baby, Jejum de Amor/His Girl Friday e O Inventor da Mocidade/Monkey Business, as três com Cary Grant.

E, em Arsenic and Old Lace, Cary Grant está, repito, tão ou mais solto quanto nas screwball comedies de Hawks. Esbugalha os olhos. Curva-se – fica encurvado para poder baixar sua cabeça até a altura dos rostos de Martha e Abby, as tias de seu personagem, Mortimer Brewster. Corre de um lado para outro na grande sala da casa das tias. Parece um personagem de desenho animado.

Cary Grant, como Mortimer Brewster, parece tanto um personagem de desenho animado que, por duas ou três vezes, ele repete aquela gag tão comum nos cartoons: aquela demora em cair a ficha.

A primeira vez é quando, à procura de um manuscrito que havia esquecido na casa das tias, abre um baú de madeira colocado como espécie de sofá junto de uma das janelas da sala. Ele está falando sem parar, abre o baú, fecha o baú, continua andando para o meio da sala e aí! Boing! Cai a ficha! Ele viu algo no baú! E só então volta lá e abre de novo o baú. E aí esbugalha os olhos, corre de um lado para o outro. Um personagem de desenho animado.

E grita. Cary Grant passa quase todo o tempo que está em cena falando altíssimo, gritando, em seu desespero após descobrir o que andavam fazendo suas duas imaculadas, deliciosas, maravilhosas tias solteironas.

As velhinhas loucas agem de forma contida; o sobrinho teoricamente são age como louco

Já as duas atrizes que fazem as graciosas senhorinhas Martha e Abby, Jean Adair e Josephine Hull, ao contrário, atuam de maneira low profile, suave, contida, num contraponto delicioso com o show off, a expansividade caricata de Cary Grant-Mortimer Brewster. Volta e meia elas comentam entre si que estão achando Mortimer estranho, muito agitado, falando muito.

Funciona tão bem esse contraponto das velhinhas loucas serenas com o sobrinho teoricamente são de olhos esbugalhados e gestos amplérrimos que dá para duvidar da frase de Capra. Será que ele de fato deixou seus atores soltos, com as rédeas nas mãos?

Michel Cieutat, o biógrafo e estudioso da obra de Capra, bem que adverte o leitor de que não se deve levar muito ao pé da letra o que o grande realizador diz em sua autobiografia. Segundo Cieutat, Capra, como no Velho Oeste de John Ford, às vezes publicava a lenda, se a lenda fosse mais interessante que a verdade.

Seis décadas antes de Tiros na Broadway, o Brooklyn já estava cheio de gente que se achava autor de teatro

Não sei também o quanto do texto original da peça de Joseph Kesselring foi conservado pelos irmãos Julius J. e Philip G. Epstein, ou o quanto de cereja eles acrescentaram ao bolo, mas o fato é que o filme é repleto de situações e diálogos maravilhosos. A começar da própria figura de Mortimer Brewster, respeitado crítico de teatro e autor de livros contra a instituição do casamento que, quando aparece pela primeira vez em cena, está na fila para a obtenção da licença de casamento, ao lado da graciosa lourinha Elaine (Priscilla Lane), filha do pastor vizinho das tias Brewster.

Ao rever agora Este Mundo é um Hospício, me ocorreu que Woody Allen deve possivelmente ter visto e revisto o filme, antes de escrever e filmar Tiros na Broadway, seu filme de 1994. Em Tiros na Broadway, o guarda-costas do gângster, deliciosamente interpretado por Chazz Palminteri ele mesmo bom roteirista e diretor), acha que tem tino para escrever peças – e o pior é que tem mesmo. Na verdade, ele, o guarda-costa do gângster, é muito melhor que o dramaturgo, interpretado por John Cusak.

Seis décadas antes, no filme de Frank Capra, o Brooklyn já estava cheio de gente que se achava o maior dramaturgo incompreendido e não reconhecido da América.

É uma absoluta delícia o personagem do policial novo no pedaço, O’Hara, interpretado por Jack Carson. A primeira vez que ele aparece em cena, no comecinho da narrativa, vem com o policial veterano, que o introduz aos moradores da região e seus hábitos. O’Hara assusta-se bastante com o Brewster que se acha Teddy Roosevelt, mas respeita suas irmãs, as doces senhorinhas solteironas.
Quando o jovem policial O’Hara retorna à cena, e descobre que ali, diante dele, está o grande crítico de teatro Mortimer Brewster, é uma maravilha: ele, o policial O’Hara, tem uma peça de teatro na cabeça, e gostaria que o grande crítico ouvisse e desse suas opiniões.

Como se o pobre coitado do sujeito que acabou de descobrir o que suas gentis tias andavam fazendo tivesse cabeça para ouvir as idéias de um amador para uma nova peça.

E aí teremos que também o sr. Whiterspoon (Edward Everett Horton, excelente), o diretor do hospício onde Mortimer quer enfiar o tio Teddy supostamente Roosevelt, também é um dramaturgo amador.

E, tudo junto e ao vivo, teremos também a dupla Jonathan Brewster (Raymond Massey) e o dr. Einstein (Peter Lorre), um assassino serial e seu cirurgião plástico sempre de plantão, que irrompem na sala das serenas, doces, suaves irmãs Brewster, tias do doidão. O dr. Einstein muda o rosto de Jonathan a cada mês, para que ele possa escapar da polícia – só que o dr. Einstein bebe um pouco demais da conta, e os remendos que faz no rosto do pobre Jonathan o deixam igualzinho ao Frankenstein dos filmes então recentes, os filmes de terror da Universal dos anos 30. E então todo mundo que vê Jonathan o acha parecido com Boris Karloff – o que é uma piada absolutamente deliciosa, mesmo que seja repetida algumas vezes.

E é maravilhosa a piada recorrente do tio louco que se acha Theodore Roosevelt, o presidente republicano conservador e linha dura entre 1901 e 1909, justamente quando o presidente Franklin D. Roosevelt, democrata e liberal, está no poder.

E tem ainda o chofer de táxi, interpretado por Garry Owen (na foto), que, também como nos desenhos animados, demora um minuto inteiro para que caia a ficha do que já havia acontecido lá atrás.

É tudo absolutamente hilariante. Às vezes é bobo, é verdade, mas é engraçado demais.

Cada país dá para os filmes de Capra seu próprio título, às vezes longe do original

Atrás da graça, das piadas hilariantes, há, para quem quiser ver, uma espantosa, fascinante, muitíssimo à frente de seu tempo, defesa do direito à eutanásia, à morte com dignidade.

Título de filme tem bastante a ver com marketing, mas também com talento de quem o escolhe, é claro. Os filmes de Capra têm os títulos mais díspares possíveis nos vários países. Este Arsenic and Old Lace teve na França um título praticamente literal, Arsenic et vieilles denteles. Os dois principais países de língua portuguesa escolheram títulos semelhantes entre si, embora diferentes dos de todo o resto do mundo: Este Mundo é um Hospício aqui, O Mundo é um Manicômio em Portugal. O título na Espanha me parece o que mais extraordinariamente percebeu uma das intenções do filme: Arsénico por compasión.

(Para ver como cada país dá um título diferente aos filmes de Capra, há uma tabela com diversos exemplos aqui.)

Capra finge que a casa de loucos é apenas uma brincadeira de Dia das Bruxas

A absoluta zorra que se dá na casa das doces, suaves irmãs Brewster me fez lembrar a casa superpovoada, louca, zoneada, de Do Mundo Nada se Leva/You Can’t Take it With You, de 1938.

Frank Capra, humanista de primeira linha, adorava a convivência de pessoas díspares, diferentes, uma influenciando a outra, uma ensinando a outra, todas juntas no mesmo espaço.

A casa zoneada de Do Mundo Nada se Leva parece uma antevisão do sonho do hippismo.

Apenas três anos separam Do Mundo Nada se Leva da produção deste Arsenic and Old Lace – embora tivesse que haver seis anos de distância entre o lançamento de um e de outro.

E, no entanto, que imensa diferença há entre a casa repleta de gente do senhor Martin Vanderhof do filme de 1938 para a casa repleta de gente das irmãs Brewster do filme de 1941 lançado em 1944.

Na primeira, as pessoas são felizes. Na segunda, são insanas; e, nela, afinal de contas, há um monte de mortos. Corpses. Dead bodies.

O filme seguinte do mestre do humanismo, da esperança, do sonho, da utopia, It’s a Wonderful Life, no Brasil A Felicidade Não se Compra, viria bem mais amargo ainda. Não se atravessa uma guerra mundial, não se convive com o nazismo, ainda que do outro lado, impunemente.

Foi necessária a passagem de muitos, muitos anos, para que A Felicidade Não se Compra adquirisse a aura, a auréola de um filme otimista, virasse um esperançoso, believer filme de Natal. Na verdade, na verdade, A Felicidade Não se Compra é um filme noir, como tantos outros feitos logo após a Segunda Guerra.

O jovem Steven Spielberg gostava de dizer que a idade da inocência acabou na Segunda Guerra. Talvez no momento exato em que a bomba atômica explodiu em Hiroshima – como ele mostra em Império do Sol. E seguramente é por isso que ele prefere fazer filmes que se passam antes de 6 de agosto de 1945.

O mundo piorou tanto nos últimos tempos que o filme dark que Capra fez no ano seguinte ao fim da guerra hoje nos parece um conto de fadas bom de se ver no Natal.

Na sua obra anterior ao filme dark pós-guerra, Capra ainda conseguia rir, e nos fazer rir, gargalhar. Mas, em vez de uma casa feliz como a mostrada em seu filme proto-hippie de 1938, focalizou uma casa de loucos.

Como, no entanto, além de um realizador estupendo, dos melhores que já houve na História, era também um esperto conhecedor do gosto popular, um marqueteiro antes do tempo dos marqueteiros, fingiu que toda aquela loucura que mostra em Arsenic and Old Lace fosse uma brincadeira do Dia das Bruxas.

Anotação em maio de 2012

Este Mundo é um Hospício/Arsenic and Old Lace

De Frank Capra, EUA, 1941-1944

Com Cary Grant (Mortimer Brewster), Raymond Massey (Jonathan Brewster), Priscilla Lane (Elaine Harper), Josephine Hull (Abby Brewster), Jean Adair (Martha Brewster), Jack Carson (O’Hara), Edward Everett Horton (Mr. Witherspoon), Peter Lorre (Dr. Einstein), James Gleason (tenente Rooney), John Alexander (“Teddy Roosevelt” Brewster), Grant Mitchell (Reverendo Harper), Edward McNamara (Brophy), Garry Owen (o motorist do taxi)

Roteiro Julius J. Epstein e Philip G. Epstein

Baseado na peça de Joseph Kesselring

Fotografia Sol Polito

Música Max Steiner

Montagem Daniel Mandell

Produção Frank Capra, Warner Bros. DVD Versátil.

P&B, 118 min

R, ***

Título na França: Arsenic et Vieilles Denteles; na Espanha: Arsénico por Compasión; em Portugal: O Mundo É Um Manicómio

5 Comentários para “Este Mundo é um Hospício / Arsenic and Old Lace”

  1. Revi há pouco esse filme e, realmente é delicioso, indicado pelos psicoterapeutas para quem está deprimido. Aliás, dois outros que também seriam e são um pouco rsrs mais recentes são Harry e Sally Feitos um para o Outro e Procura-se Amy, todos dois com cenas de rolar de rir.
    Mas voltando a Arsênico e Alfazema, creio que essa é a tradução literal,o filme é realmente hiláriante e delicioso. Começa com aquele constrangimento do Mortimer q, autor de um livro contra o casamento, tem q se casar com a Elaine escondido e, vira e mexe, é flagrado pelos fotógrafos. Quando chega à casa das tias descobre que elas nada mais são do que umas serial killers, que já mataram cerca de 12 idosos por pena de eles serem solitários, justamente com arsênico contido no vinho. E o tio Teddy enterra os senhores no sótão, pensando tratar-se de mortos em combate no Panamá! Realmente a cena em que o Mortimer abre o baú e vê o último cadáver é um espanto.
    E esse negócio de a gente se identificar profissionalmente e os outros quererem tirar “uma casquinha” como foi o caso do policial que queria mostrar sua peça a Mortimer é antigo. Qual é o médico ou psicólogo como eu q, em uma reunião social, não é assediado por alguém buscando uma consulta grátis?
    O final é encantador, mas não vou falar pois seria dar spoiler demais, já dei até alguns mas é que eu não resisto.
    Recomendadíssimo, já vi duas vezes e qq hora vejo a terceira.
    Guenia Bunchaft
    http:www.sospesquisaerorschach.com.br

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