Contrastes Humanos / Sullivan’s Travels

Nota: ★★★★

Sullivan’s Travels, no Brasil Contrastes Humanos, escrito e dirigido por Preston Sturges e lançado em 1941, é um filme extraordinário, uma obra-prima. No entanto, minha impressão é de que ele é bem menos conhecido do que deveria, pelo menos no Brasil.

E isso apesar de ter sido a inspiração para E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, dos irmãos Coen, de 2000, este, sim, um filme que fez bastante sucesso.

Na minha opinião, Sullivan’s Travels, ao lado de A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, é o que de melhor o cinema já fez como pensata a respeito dos filmes escapistas que divertem multidões durante os períodos mais miseráveis da História.

Tento fazer uma sinopse curta, sintética, antes de ir em frente:

No início dos anos 1940, com os Estados Unidos ainda não saídos de todo da Grande Depressão, com milhões de desempregados e famintos, e o mundo em guerra, John L. Sullivan (Joel McCrea), diretor de cinema famosíssimo, milionário, autor de comédias e musicais escapistas que fazem a fortuna do estúdio para o qual trabalha, resolve fazer um drama social sério, profundo, que mostre as mazelas, as injustiças, a miséria de grandes massas. Como sempre foi um privilegiado, e nunca conheceu nenhum tipo de necessidade, resolve se vestir como um miserável e sair pelo país para conhecer de perto as condições de vida da população destituída de tudo. O filme começa como uma comédia escrachada, depois se encaminha para um tom dramático, lúgubre, apavorante.

Onze linhas, 700 toques. Para quem nunca consegue ser sintético, até que não está horroroso.


Grande demais, é claro, para os padrões do Cinéguide, o rei da síntese. A sinopse do guia francês, no entanto, entrega muito mais do que se deve: “Um realizador de renome, estando disfarçado de vagabundo, é tido como seu próprio xxxxxxxxx”. Censuro a palavra que em português tem 9 letras, para não revelar o que não deve ser revelado da parte final da trama. Mas é incrível: os caras conseguem fazer uma sinopse de 90 toques – e ainda incluir um spoiler!

O filme foi lançado exatamente no mês em que os EUA entraram na Segunda Guerra

Vou aos alfarrábios para confirmar, ou não, essa minha sensação de que o filme foi menos reconhecido – ou menos conhecido – do que deveria.

Nenhuma indicação ao Oscar. Apenas um prêmio – ficou entre os dez melhores segundo a National Board of Review.

Lançado nos cinemas americanos em dezembro de 1941.

Ah, isso pode explicar muita coisa. Foi no dia 7 daquele mês o ataque japonês à base militar de Pearl Harbor, ao qual os Estados Unidos responderam imediatamente entrando na Segunda Guerra Mundial contra o Japão e seus aliados Alemanha e Itália.

Não era uma época boa para um filme que começa como uma comédia escrachada sobre a Grande Depressão, zombando dos filmes escapistas que ao longo de toda a década de 30 fizeram rir um país mergulhado no desemprego e na miséria de milhões e milhões de pessoas.

Mesmo sendo uma comédia com um ator conhecido, o galã Joel McCrea, e uma bela atriz em rápida ascensão e que viria a ser um dos marcos de Hollywood nos anos 40, Veronica Lake.

O livro The Paramount Story não faz nenhuma ligação entre a época de lançamento e o fato de o filme não ter tido sucesso nas bilheterias. Diz que foi o quarto e melhor filme do autor-diretor Preston Sturges, e que Sullivan’s Travels vai além do campo da comédia para explorar um realismo dramático em cenas duras em albergues para miseráveis e fazendas-prisões. Informa que as relações entre Sturges e Veronica Lake não foram nada boas, e que o diretor acabou culpando a atriz por um atraso de nove dias nas filmagens. A crítica se dividiu e o resultado das bilheterias foi desapontador, “mas agora o filme é geralmente tido como a obra-prima de Sturges”.

O filme teve reconhecimento geral – mas só com o passar do tempo      

Hum… Reconhecimento, de fato o filme teve – não imediatamente, mas com o passar do tempo. Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, dá 4 estrelas, cotação máxima: “Cansado de fazer bobagens, o diretor de cinema McCrea decide fazer um filme ‘sério’; para pesquisar sobre o assunto, ele sai com 10 cents no bolso para experimentar a vida ‘no mundo real’. Pastelão e tristeza se misturam neste marco da sátira de Hollywood, que fica mais pertinente a cada ano que passa. Uma conquista única para o autor-diretor Sturges.”

O CineBooks’ Motion Picture Guide também dá a cotação maxima, 5 estrelas. “Este olhar brilhante, muitas vezes devastador sobre Hollywood e o mundo real atrás do glamour, é o maior filme de Preston Sturges, embora o diretor inspirado, cheio de talento para a comédia e bom observador da sociedade, seja responsável por muitas grandes obras do cinema.”

A atriz escondeu enquanto pôde que estava grávida – e o pai era o diretor

Preston Sturges tinha começado no cinema como roteirista, em 1930. Entre 1940 e 1941, escreveu e dirigiu três comédias: O Homem que se Vendeu/The Great McGinty, Natal em Julho/Christmas in July e Mulher de Verdade/The Palm Beach Story.

O diretor escreveu o roteiro de Sullivan’s Travels, seu quarto filme como realizador, já pensando em Joel McCrea para o papel central. McCrea (que eu conheceria quando ele já era bem maduro, em westerns, em especial o fascinante Pistoleiros do Entardecer/Ride the High Country, de Sam Peckinpah, de 1962), estava então com 36 anos de idade e 17 de carreira.

Sturges também queria Veronica Lake para o segundo papel mais importante, o da aspirante a atriz que não dá sorte e está de saída de Hollywood quando se encontra numa lanchonete vagabunda com o sujeito vestido como mendigo. Coração grande, se oferece para pagar uma refeição para ele, com parte de seus últimos centavos – e a partir daí passa a acompanhar o milionário que se finge de miserável em suas andanças misérias do país afora.

Veronica, então com 22 anos, tinha começado a carreira aos 20, e, em 1941, já tinha seis filmes no currículo. Os executivos da Paramount queriam uma atriz mais famosa para o papel, e sugeriram diversos nomes – Lucille Ball, Claire Trevor, Ida Lupino, Frances Farmer, Betty Field. Como Sturges mantinha sua preferência pela garota Veronica, o estúdio deu o sinal verde, mas exigiu em troca que as filmagens não ultrapassassem 45 dias e o orçamento de US$ 600 mil.

Quando as filmagens começaram, Veronica ainda não havia revelado a ninguém que estava grávida de seis meses – nem sequer para o pai da criança, o próprio Sturges, que, como nas novelas, já era casado, é claro que com outra.

Na sua autobiografia, Veronica, citada no CineBooks’, a atriz escreveria: “Esconder minha gravidez de Preston foi um peso que tive que carregar. Não queria atrapalhar sua vida e a febre com que ele se dedicava ao filme. Ao mesmo tempo, morria de medo de que a gravidez causasse algum problema mais tarde e tornasse impossível o término das filmagens. Tinha que fazer alguma coisa, e depressa, e então contei para sua mulher, Louise.”

Não se sabe o quanto a sra. Preston – que também estava grávida – xingou a jovem rival, mas consta que ela a aconselhou a contar o segredo para o diretor.

Depois de uma explosão de ódio inicial, Sturges tocou o barco; pediu a Edith Head, a eterna figurinista da Paramount, que criasse roupas largas, amplas, para a atriz, e refez algumas cenas.

Várias partes do roteiro foram sendo escritas e reescritas durante as filmagens. “Quando comecei a escrever, não tinha nenhuma idéia do que Sullivan iria descobrir”, diria mais tarde o realizador. “Fui tirando tudo dele – saúde, fortuna, nome, orgulho, liberdade. Quando já tinha tirado tudo, percebi que ele ainda tinha uma coisa: a habilidade para rir.”

O filme foi feito com um estouro de US$ 76.687 no orçamento inicial de US$ 600 mil, e de nove dias a mais nas filmagens. Ao contrário do que diz o livro sobre a Paramount, o Cinebooks’ afirma que o filme foi um sucesso comercial. Apostaria minhas fichas no que diz o livro da Paramount.

Uma atriz pequenina, mignon, de voz grave, que marcou época

Mais alguns detalhinhos, pequenas informações.

O título do filme que John L. Sullivan quer filmar é pomposo, metido a besta: O Brother, Where Art Thou? Tão pomposo, metido a besta, que usa o pronome e o tempo verbal arcaicos, que caíram em desuso faz séculos – thou seria o antigo equivalente ao nosso vós. “Ó Irmão, Onde Estais Vós?”

Sempre gozadores, amantes de uma sátira, uma sacanagem, os irmãos Coen usaram exatamente o título do filme fictício dentro do filme de Preston Sturges para fazer sua obra de 2000, uma comédia maluca, ambientada exatamente numa prisão-fazenda do interiorzão do Sul Profundo, bem parecida com a mostrada na segunda metade de Conflitos Humanos. A trama dos Coen é uma espécie de mistura da Odisséia de Homero com situações sugeridas por Sullivan’s Travels. Os exibidores brasileiros tiveram a esperteza de traduzir o título de uma maneira brincalhona, moderninha – E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? Foi um dos maiores sucessos de público dos irmãos Coen; teve duas indicações ao Oscar – roteiro adaptado e fotografia – e levou o Globo de Ouro de melhor ator em comédia para George Clooney. A trilha sonora, de T. Bone Burnett, resultado de uma garimpagem da música folk dos anos 30, foi um sucesso à parte, vendeu bem mais de um milhão de cópias e trouxe de volta à cena muitos grupos de bluegrass, a música de raiz  do interior dos Estados Unidos.

Veronica Lake talvez não seja muito conhecida hoje, mas sua figura marcou época. Era pequenina, mignon (1 metro e 51, segundo o IMDb), com o cabelo louríssimo sempre comprido, uma indefectível franjinha caindo sobre o olho direito, e tinha uma voz grave, levemente rouca, difícil de esquecer. No filme Los Angeles – Cidade Proibida/L.A. Confidential, de Curtis Hanson, cuja ação se passa nos anos 40, o visual de Kim Basinger é a recriação escarrada de Veronica. E não à toa: o personagem é uma prostituta cuja grande qualidade é exatamente atrair os clientes por parecer com Veronica Lake. A atriz morreria em 1973, quando estava apenas com 50 anos.

O filme mostra Hollywood como uma Ilha da Fantasia, muito distante deste insensato mundo

Contrastes Humanos começa com uma dedicatória:

“À memória daqueles que nos fizeram rir: os saltimbancos, os palhaços, os bufões, em todas as épocas e em todas as nações, cujos esforços diminuíram um pouco nosso fardo, este filme é carinhosamente dedicado.”

Em seu roteiro, Preston Sturges botou uma série de inside jokes, piadas internas sobre seu próprio meio – Hollywood. A Hollywood em que o protagonista John L. Sullivan transita de fato parece não ter nada a ver com o mundo real. Mais que a maior usina de sonhos do mundo, a Hollywood que ele mostra é a Ilha da Fantasia, absolutamente distante deste insensato mundo.

Nesse ponto, o filme está bem próximo do que Peter Bogdanovich mostraria em O Miado do Gato, feito em 2001, numa época em que o diretor estava em desgraça com os estúdios, o establishment hollywoodiano. O Miado do Gato retrata fatos ocorridos em 1924, envolvendo Charles Chaplin, Thomas Ince e outros nomes importantes de Hollywood na época. “Bem-vindos a Hollywood, uma terra um tanto distante do planeta Terra”, diz Bogdanovich bem no início de sua narrativa.

O Miado do Gato é um drama pesado, e este Contrastes Humanos, às vezes pesado na descrição da pobreza absoluta de multidões de americanos, é uma comédia. E assim o roteiro inclui, por exemplo, uma referência ao sucesso de Frank Capra – o diretor que abordou os abismos sociais da sociedade americana em comédias que fizeram tremendo sucesso na América afundada na Grande Depressão, a tal ponto que garantiram o crescimento do estúdio em que o realizador trabalhava, a Columbia.

E A Garota (o personagem de Veronica Lake não tem nome) fala várias vezes em Lubitsch, diz que daria tudo para ter tido a oportunidade de ser vista por Lubitsh – o grande diretor alemão de nascimento que foi um dos grandes gênios da comédia hollywoodiana dos anos 20 aos 40.

Piadas aos borbotões, numa torrente de palavras ditas muito depressa

Há uma deliciosa piada sobre o que os americanos chamam de female interest nos filmes – o interesse feminino, ou seja, uma figura feminina, sem o qual a bilheteria não promete grandes lucros. Lá pelas tantas Sullivan e A Garota são presos. Chegam os homens do milionário diretor para esclarecer tudo e soltar o preso. Estabelecido que o preso pode ser solto, Sullivan pede que também seja liberada A Garota.

Policial: – “Onde a garota entra nessa história?”

Sullivan: – “Sempre há uma garota na história. Qual é o problema, você não vai ao cinema?”

As piadas são muitas, e, como em outras grandes comédias daquela era – como Jejum de Amor/His Girl Friday, do mestre Howard Hawkds, por exemplo –, elas vêm aos borbotões, numa torrente de palavras. Fala-se depressa demais, para que caibam tantas palavras numa tomada curta. Como nesta conversa, bem no início da narrativa, entre o diretor Sullivan, seu patrão, o dono do estúdio, LeBrand (Robert Warwick), e Hadrian (Porter Hall), auxiliar e puxa-saco do patrão:

Sullivan: – “Quero que esse filme seja um comentário sério sobre a vida moderna. Realismo cru. Os problemas com que se depara o homem mediano!”

LeBrand: – “Mas com um pouco de sexo.”

Sullivan: – “Um pouco, mas não quero ênfase nisso. Quero que esse filme seja um documento. Um espelho da vida. Quero que esse seja um filme de dignidade! Um painel real sobre o sofrimento da humanidade!”

LeBrand: – “Mas com um pouco de sexo.”

Sullivan (relutando): “Com um pouco de sexo.

Hadrian: – “Que tal um bom musical?”

Sullivan: – “Como você pode falar de musicais numa época como esta, com o mundo cometendo suicídio? Com cadáveres se acumulando nas ruas, com a morte rondando em cada esquina, e pessoas massacradas como ovelhas?”

Hadrian: – “Talvez as pessoas preferiam esquecer tudo isso.”

Com um pouco de sexo. Vejo agora que os cartazes do filme dão mais importância à novata Veronica Lake do que ao estabelecido Joel McCrea. É o tal do interesse feminino.

Piadas visuais do mais puro pastelão – e, depois, uma miséria de assombrar

Se as piadas vêm como cataratas do Iguaçu de palavras, as gags visuais vão fundo no pastelão. A seqüência em que toda uma entourage segue num ônibus o diretor milionário fantasiado de andarilho maltrapilho pelas estradas é o mais puro, absurdo, fantástico, delicioso pastelão, daqueles de deixar o espectador engasgado e com lágrimas nos olhos de tanto gargalhar.

Já na segunda parte do filme, o passeio de Sullivan e A Garota pelo mundo miserável dos sem-teto, deserdados, destituídos, a fila da sopa do Exército da Salvação, as noites em abrigos abarrotados, essas sequências belas, impressionantes, poderosas, apavorantes são um panfleto mais poderoso contra a injustiça social do que compêndios de falatórios marxistas ou pseudo-marxistas sobre a luta de classes.

Ali, na minha opinião, Preston Sturges faz um registro inesquecível daquela verdade básica: a existência de milionários é tão profundamente indigna, absurda, quanto a existência de miseráveis.

“O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”

Para mim, Sullivan’s Travels tem tudo a ver com a famosérrima frase de Joãosinho Trinta que abalou o país no final dos anos 70: “O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. Diz-se na internet que a frase, na verdade, foi cunhada por Elio Gaspari, nos seus tempos de Veja, e oferecida para o carnavalesco, que então a propagou.

Não apostaria um tostão furado em que Joãosinho Trinta viu Contrastes Humanos. Já Gaspari pode, sim, ter visto, e até se inspirado no filme para cunhar o dito. Mas isso não importa tanto. Para todos os efeitos, a frase entrou para a história como sendo de Joãosinho Trinta.

Eis um outro diálogo de Sullivan’s Travel. Sullivan tinha ido ao departamento de figurinos do estúdio e vestido uma roupa de mendigo, para iniciar suas viagens através das misérias americanas. Chega Burrows (Robert Greig), seu mordomo, trazendo uma bandeja com o café da manhã para o patrão.

Sullivan (exibindo a roupa que está usando): – “Que tal?”

O mordomo (impecável, com aquele ar inglês, sotaque inglês): – “Não gosto de jeito nenhum, senhor. Uma fantasia, imagino?”

Sullivan: – “Qual é o problema?”

O mordomo: – “Nunca fui simpático às caricaturas dos pobres e necessitados, senhor.”

Sullivan: – “Quem está fazendo caricatura? Vou sair pelas estradas para descobrir como é ser pobre e necessitado, e depois vou fazer um filme sobre isso.”

O mordomo: – “Se me permite opinar, senhor, o tema não é interessante. Os pobres sabem tudo sobre a pobreza, e apenas os ricos mórbidos iriam achar o assunto glamouroso.”

Sullivan: – “Mas eu vou fazer isso pelos pobres. Você não compreende?”

O mordomo: – “Duvido que eles vão apreciar isso, senhor. Creio que eles vão se ressentir da invasão de sua privacidade, e com toda razão, senhor.”

E o mordomo ainda prossegue: – “Sabe, senhor, os ricos e os teóricos – que em geral são ricos – pensam sobre a pobreza negativamente, como a falta de riquezas – como se a doença pudesse ser chamada de falta de saúde. Mas não é, senhor. A pobreza não é a falta de nada, mas uma praga positiva, virulenta nela mesma, contagiosa como o cólera, tendo a sujeira, a criminalidade, o vício e o desespero como apenas alguns de seus sintomas. Deve ser mantida à distância, mesmo que por razões de estudo. Deve ser evitada.”

Entre um filme chato com boa mensagem e um filme divertido com boa mensagem, fico com o segundo

Bem ao contrário de Joãosinho Trinta, não entendo lhufas de carnaval; imagino que sair pelas ruas num cordão com os amigos deva ter alguma graça, mas acho desfile de escola de samba uma das coisas mais chatas que há sobre a terra. E, de qualquer forma, quem vê desfile de escola de samba hoje não é pobre, já que a entrada para as arquibancadas da Marquês de Sapucaí ou do Sambódromo não é coisa barata. E mesmo na avenida, no asfalto, desfilando, parece cada vez mais difícil achar pobre – quem desfila tem que pagar um dinheirão pela fantasia.

Mas isso não importa coisa alguma.

O que importa é que, de fato, no cinema, o povão gosta é de ver gente rica.

Os grandes sucessos de bilheteria nos anos mais duros da Grande Depressão foram os musicais e as comédias em que milionários entravam e saíam de restaurantes caros com black-tie e vestidos de noite.

É sobre isso que trata A Rosa Púrpura do Cairo. É sobre isso que fala Contrastes Humanos.

Preston Sturges disse em uma entrevista, citada no Cinebooks’, que  Sullivan’s Travels foi o resultado de uma necessidade urgente de dizer aos seus colegas realizadores que eles estavam ficando profundos demais, e que deveriam deixar as pregações para os pregadores.

Uma outra maneira de dizer a mesma coisa que Billy Wilder; segundo Wilder, quem acha que tem uma mensagem a passar para os outros deveria usar o Correio.

São belas frases, as duas, a de deixar as pregações para os pregadores e as mensagens para o Correio – mas, evidentemente, não devem ser entendidas ao pé da letra. São boutades – provocações, ironias, brincadeiras.

Até porque Sullivan’s Travels, segundo a própria frase do autor, é uma pregação que ele queria fazer aos seus colegas de ofício.

E mais que isso. A rigor, a rigor, é uma beleza de pregação, de panfleto, de mensagem, que diz aquilo lá: a existência de milionários é algo tão indigno, abjeto, absurdo, condenável quanto a existência de miseráveis.

Agora, entre um filme chato que traga uma bela mensagem, e um filme agradável de se ver, gostoso, divertido, engraçado, que traga a mesma mensagem, Preston Sturges fica com o segundo tipo.

A turma de narizinho empinado que adora qualquer novo diretor genial da Dinamarca, do Cazaquistão, do Chade, e tem nojo do que chama de “cinema americano”, essa aí, uai, essa é a turma dos intelectuais.

Eu, aqui no meu cantinho, fico feliz por não ser intelectual. Por ser povo.

Anotação em agosto de 2012  

Contrastes Humanos/Sullivan’s Travels

De Preston Sturges, EUA, 1941.

Com Joel McCrea (John L. Sullivan), Veronica Lake (A Garota),

Robert Warwick (Mr. Lebrand), William Demarest (Mr. Jones), Franklin Pangborn (Mr. Casalais), Porter Hall (Mr. Hadrian), Byron Foulger (Mr. Valdelle), Maggie Hayes (a secretária),  Robert Greig (Burrows, o mordomo de Sullivan)

Argumento e roteiro Preston Sturges

Fotografia John Seitz

Música Leo Shuken, Charles Bradshaw

Montagem Stuart Gilmore

Figurinos Edith Head

Produção Paramount Pictures. DVD Classic Line.

P&B, 91 min

R, ****

Título na França: Les Voyages de Sullivan. Em Portugal: A Quimera do Riso. Na Itália: I Dimenticati. 

12 Comentários para “Contrastes Humanos / Sullivan’s Travels”

  1. Vi este filme na madrugada de hoje.
    Um filmaço, realmente um filmaço !!!!
    Nossa !! Não há mais nada para dizer.
    Voce foi perfeito Sergio.
    Há aqueles momentos onde o turbilhão de palavras que voce diz, quase não me deixou ler as legendas, rápido demais, não sabia se lia ou se via. Preferi ler.
    Os dois diálogos que voce cita , do Sullivan com o dono do estudio e depois com o seu mordomo são fabulosos principalmente o com o mordomo. Vi online como disse , então, podia e copiei esses dois diálogos para colocá-los aqui mas voce também captou isso.
    Tôda aquela sequência do pessoal do Sullivan no onibus perseguindo-o no “protótipo” com o menino dirigindo, pastelão divertidíssimo.
    “Já notaram seu torso” ? Pergunta uma mulher para as outras quando o Sullivan já está na “rua” começando seu trabalho de pesquisa.
    Caramba!!! Torso. Quanto tempo eu não ouvia essa palavra.
    A verdade nua e crua para ele,começa mesmo é quando ele sai distribuindo o dinheiro para os pobres , mendigos e é golpeado na cabeça por aquele outro mendigo gatuno e na sequência perde a memória, briga e acaba indo para naquela tal fazenda-prisão.
    E, para aquele mendigo,o castigo não veio a cavalo, veio de trem.
    Eu também vi alguns cowboys com o Joe McCrea.
    Um grande filme.
    Um abraço !!

  2. Vi este filme hoje. O filme parece-me adorado pelas pessoas, têm boa cotação no imdv mas tb acho que não é mt falado, conhecido. Eu nunca tinha visto um filme com a Veronica Lake. Gostei da sua prestação, assim como do protagonista. Não a imaginava numa vertente cómica mas mais no estilo femme fatal e a verdade é que se saiu muito bem. Eu não adorei o filme mas gostei. E mais para o final, o filme tem uma força notável. De comédia maluca passamos para drama. A cena do cinema na igreja é arrepiante e, no final, quando ele decide não fazer o filme e surgem as imagens dos homens presos a rir! Oh! Comoveu-me confesso! Bonito filme, bonita mensagem

  3. Acabei de assistir a esse filme e adorei. O Joel McCrea é um dos meus atores favoritos (não se fazem mais galãs como antigamente).
    A trama muda de tom, passando da comédia pastelão para o drama social , o que pode gerar certa estranheza, mas, para mim, Preston Sturges fez um excelente trabalho
    Me permita discordar de seu argumento, Sérgio, quando você diz que a turma do nariz empinado despreza cinema americano, pois diretores como John Ford, Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Douglas Sirk são idolatrados pela crítica mundial. Até hoje, nunca vi uma crítica negativa para “Rastros de Ódio”, por exemplo, mesmo sendo um filme que, ao meu ver, não guarda nenhuma grande vantagem em relação ao que era rotineiramente feito pelos demais diretores da época.

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