Você Não Conhece Jack / You Don’t Know Jack

Nota: ★★★★

Anotação em 2011: Você Não Conhece Jack é um filme excelente, cinema da maior qualidade. É também um importante, relevante documento histórico – a reconstituição da trajetória de uma das personalidades mais polêmicas dos últimos anos, o médico Jack Kevorkian, que ajudou mais de 130 pessoas, doentes crônicos, desenganados, sofrendo dores violentíssimas, a acabar com seu sofrimento.

Não é, obviamente, um tema fácil, leve, agradável – muito ao contrário.

Seria absolutamente impossível fazer um filme leve sobre doentes terminais, sobre eutanásia, e, mais que eutanásia, o suicídio assistido.

O veterano diretor Barry Levinson, com base no roteiro de um escritor sem grande experiência, Adam Mazer, conseguiu, no entanto, fazer um filme sério, pesado, que passa longe da morbidez, do profundo baixo astral. É uma proeza, um feito considerável.

Teve, é verdade, a ajuda do próprio personagem retratado. Além de extremamente corajoso, ousado, batalhador, Jack Kevorkian (1928-2011) foi um homem fascinantemente inteligente, culto, brilhante, que conseguia manter até mesmo um certo humor.

Al Pacino em momento glorioso, uma atuação belíssima

E Levinson pôde contar com um Al Pacino – sempre um grande ator, mesmo nos filmes em que não esforça muito – em momento especialmente glorioso. Pacino parece ter se empenhado com especial afinco em recriar a figura do Doutor Morte, como Kevorkian foi chamado pela imprensa americana. Sua interpretação é daquelas extraordinárias, excepcionais, marcantes, fulgurantes. Algo assim do nível de um Colin Firth como o rei George VI, o rei gago, em O Discurso do Rei, de uma Helen Mirren como a rainha Elizabeth II em A Rainha, de uma Marion Cotillard como Edith Piaf em Piaf – Um Hino ao Amor, para lembrar de interpretações memoráveis de grandes atores recriando personagens reais.

Pacino parece se sentir à vontade ao interpretar personagens de gestos largos, de fala solta, verborrágicos, chegados a um espalhafato. E, aparentemente, Jack Kevorkian era exatamente assim. Juntou a fome com a vontade de comer: Pacino brilha.

O filme tem ainda um elenco de apoio com grandes atores em belíssimas interpretações. Susan Sarandon faz o papel de Janet Gold, a maior amiga de Kevorkian em sua luta pela morte com dignidade. A veterana Brenda Vaccaro interpreta Margo, a irmã e fiel escudeira do médico. O ótimo gordo John Goodman, marcante em papéis cômicos, está ótimo neste drama pesado como Neal, o braço direito de Kevorkian. E Danny Huston, o irmão de Anjelica, filho do grande John, neto do imenso Walter, está quase irreconhecível com uma perua alourada como o advogado Geoffrey Fieger, que enfrentou a barra pesada de defender nos tribunais aquele quixotesco herói de uma causa praticamente perdida, que ainda por cima fazia todo o possível para ajudar os promotores.

O diretor não foge da raia: mostra o sofrimento. Mas o filme não mergulha na morbidez

O filme focaliza os anos em que Kevorkian pôs em prática seu ideal de ajudar doentes terminais a acabar com seu sofrimento, durante a década de 1990. Não foge da raia – mostra a dor dos pacientes, algo de fato nada agradável de se ver numa tela de cinema ou da TV da nossa sala. Mas consegue, de maneira inteligente, talentosa, não mergulhar na morbidez. O ritmo é ágil, as cenas mais pesadas de sofrimento dos pacientes são intercaladas com seqüências de tribunal e do dia-a-dia do personagem central.

Não é, obviamente – repito –, um filme leve. A morte não é um tema leve. Mas, de maneira competentíssima, Barry Levinson conseguiu fazer um filme sobre a morte que não é repulsivo, ou profundamente deprê.

E nisso ele me fez lembrar um outro filme extraordinário, feito numa cultura completamente diferente, díspar, o maravilhoso A Partida, do japonês Yôjirô Takita.

Tanto A Partida quanto este Você Não Conhece Jack tratam a morte tal como ela é: como uma parte da vida.

Barry Levinson é, além de diretor, também roteirista, produtor, ocasionalmente ator e até compositor. Diz o Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard: “tornou-se conhecido através de um filme simpático, Um Homem Fora de Série (com Redford)), antes de se impor com o deslumbrante O Enigma da Pirâmide, pastiche bastante bem feito de Conan Doyle que nos restituía a juventude de Sherlock Holmes. (…) A continuidade de sua obra o incluiu no primeiro time dos realizadores americanos, sobretudo com o prodigioso sucesso de Rain Man, em que Hoffman fazia uma composição de um autista, e Bugsy, retrato verídico do gângster que criou Las Vegas.”

São dele também Bom Dia, Vietnã, com Robin Williams em um de seus melhores papéis, Assédio Sexual, com Michael Douglas e Demi Moore, e Mera Coincidência, com Dustin Hoffman e Robert De Niro, demolidora sátira sobre a política americana.

Um filme pró-morte com dignidade, mas com espaço para os argumentos contrários

Não é, propriamente, um berro, um gritante panfleto pró-eutanásia, pró-suicídio assistido.

Mostra argumentos dos dois lados, ao longo de todos os seus bem realizadíssimos 134 minutos, uma boa meia hora a mais do que se convencionou que os filmes têm que ter para não cansar o distinto público. Têm bastante espaço para argumentar os que são virulentamente contra a morte com dignidade.

Não é, ou ao menos não me pareceu, um panfleto tão aberto, tão gritante, quanto outras produções da HBO, esse abençoado canal de TV que tem tido a coragem de abordar temas fortes, pesados, polêmicos, em ótimos filmes.

Só para lembrar alguns deles: O Preço de uma Escolha/If These Walls Could Talk, de 1996, é um violento panfleto pró-direito à opção pelo aborto. Recontagem/Recount é um violento panfleto anti-Bush, uma denúncia de que houve fraude, roubo, sacanagem na eleição presidencial de 2000 na Flórida, que acabou dando a vitória a George W. Bush sobre Al Gore, embora este tivesse tido mais votos que seu oponente, irmão do então governador do Estado.

Claro: o filme é pró-eutanásia, pró-suicídio assistido, pró-dignidade. O próprio Kevorkian foi consultado para a elaboração do filme, e aparece, sorridente, brincalhão, irônico, no making of. (Ele morreria neste ano de 2011, um ano depois de o filme ficar pronto.)

Mas não é, ou não me pareceu, repito, um panfletaço tão gritante quanto os dois outros filmes que citei, eles também maravilhosas produções da HBO. Você Não Conhece Jack me pareceu mais na linha de outro filme da HBO, Grande Demais Para Quebrar/Too Big to Fail, sobre a quebra do Lehman’s Brothers, a crise financeira de 2008 que permanece produzindo intranqüilidade na economia mundial até agora, e, aparentemente, continuará ainda por muito tempo. Grande Demais Para Quebrar, me parece, responsabiliza o governo Bush por boa parte da culpa da crise – embora a divida com os governos anteriores, que também se recusaram a estabelecer regras, regulamentações para as instituições financeiras. Mostra que foi errada a decisão de salvar os grandes bancos injetando neles milhões de dólares dos pagadores de impostos – até porque os grandes bancos continuaram a fazer as mesmas asneiras de antes –, mas mostra também que não havia muitas outras soluções à mão das autoridades.

Há temas sobre os quais é difícil – ou inútil – argumentar com lógica

Não sei se estou me fazendo entender, nem mesmo sei se estou dizendo algo que tem sentido, mas o fato é que Você Não Conhece Jack faz a defesa da morte com dignidade, mas não a faz de uma maneira gritante, esporrenta, dona da verdade.

O filme argumenta. Ouve os contra-argumentos. E contra-contra-argumenta.

A questão é que há temas sobre os quais é difícil – ou inútil – argumentar com alguma lógica, diante da reação irracional, religiosa, fundamentalista, xiita, raivosa do outro lado.

Há alguns temas que dividem as sociedades ao meio – as sociedades dos países em que há algum tipo de democracia, com imprensa livre, eleições, liberdade de manifestação de opiniões. Pena de morte. Direito ao aborto. Direito à eutanásia.

Há questões polêmicas que já deveriam estar esquecidas, superadas, há séculos, ou no mínimo décadas, como a igualdade de direitos entre os sexos, entre as pessoas de cor de pele diferentes, entre as pessoas de opções sexuais diferentes. E no entanto nem mesmo essas questões já são coisa do passado, da Idade das Trevas, da pré-história. Muito ao contrário.

Nas questões ainda mais polêmicas, pena de morte, aborto e eutanásia, as sociedades mais avançadas – e aqui estão sendo deixados de fora todos os países muçulmanos, as ditaduras e o Planeta China – ainda se dividem praticamente ao meio.

E há muitos indícios de que discutir a eutanásia será ainda mais difícil que a pena de morte e o aborto.

(Na foto acima, Danny Huston como o advogado Geoffrey Fieger e Al Pacino como Kevorkian. Na foto abaixo, Kevorkian e Fieger na estréia do filme em Detroit, a cidade em que se passam os acontecimentos mostrados no filme.)

No país mais rico do mundo, avançam a anticiência, o fanatismo religioso

Um dia depois de ver este grande filme, li, por uma grande coincidência, um artigo apavorante do economista Paul Krugman, publicado no New York Times e republicado aqui pelo Globo. Krugman mostra que há hoje – agosto de 2011 – uma imensa chance de os Estados Unidos, o Império, o país mais rico do mundo, passar a ser governado por um partido e um presidente que é anticiência.

Os dois republicanos que têm hoje mais chance de disputar a eleição presidencial em 2012 com Barak Obama fazem pouco caso dos alertas a respeito do aquecimento global. “Segundo o Public Policy Polling, somente 21% dos eleitores republicanos do Iowa acreditam no aquecimento global (e somente 35% crêem na evolução).”

Apenas 21% acreditam no aquecimento global. Apenas 35% não acham que o homem veio de Adão e Eva, tal qual diz a Bíblia.

Meu Deus do céu e também da terra, estamos muito mal parados. Para dizer a verdade plena dos fatos, estamos é fodidos.

Como se já não fosse o horror dos horrores saber que metade dos habitantes deste miserável planeta vive sob ditaduras, regimes teocráticos ou de partido único sem liberdade de expressão, no país mais rico do mundo a ignorância grassa feito chuchu na cerca.

A direita americana, cada vez mais raivosa, estúpida, ignorante, anticiência, cresce – e, sinistramente, aproxima-se da teocracia muçulmana. Para o xiitismo não há argumento.

Condenado por tentar levar argumentos à Justiça

No filme, assim como na vida real, Jack Kevorkian quis levar aos tribunais, em última instância à Suprema Corte, a argumentação. Verdade que não chegou a ser apedrejado com o apoio da Justiça, ou condenado à morte na fogueira como nas Dark Ages – mas foi condenado à prisão.

Usou muito exatamente o argumento de que não vivemos mais nas Dark Ages. Numa cena brilhante, uma direitista religiosa pergunta se ele não acredita em Deus – e Kevorkian-Al Pacino responde alto e bom som que acredita, sim, no Deus Johann Sebastian Bach.

É bem provável que a humanidade afinal se destrua antes de reconhecer esse direito tão óbvio à morte com dignidade.

Como é um filme feito para a TV, Você Não Conhece Jack não teve indicações ao Oscar. Mas teve seis prêmios e 23 indicações. Al Pacino levou o Globo de Ouro de melhor ator em minissérie ou filme feito para a TV, e o mesmo prêmio do Screen Actors Guild, o Sindicato dos Atores, e o Emmy, o principal prêmio da TV americana.

Reconhecimento, portanto, o filme teve.

E a História, afinal, avança em movimentos pendulares, dois passos para a frente, três para trás, um para a frente, um para trás.

Quem sabe não conseguiremos, afinal, provar que não somos tão estúpidos quanto às vezes parecemos?

Você Não Conhece Jack/You Don’t Know Jack

De Barry Levinson, EUA, 2010

Com Al Pacino (Jack Kevorkian), Brenda Vaccaro (Margo Janus), John Goodman (Neal Nicol), Danny Huston (Geoffrey Fieger), Susan Sarandon (Janet Gold)

]Roteiro Adam Mazer

Fotografia Eigil Bryld

Música Marcelo Zarvos

Produção Bee Holder Productions, HBO Films, Royal Oak Films. Blu-ray e DVD Warner.

Cor, 134 min

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15 Comentários para “Você Não Conhece Jack / You Don’t Know Jack”

  1. Olá, ao ler o seu texto me deu curiosidade de saber, você tem noção de quantos filmes estreiam semanalmente no Brasil? Em portugal não mais de dez seguramente. Saudações de Portugal!

  2. Carlos,
    Peguei os três últimos exemplares da revista semanal “Veja em São Paulo”, que traz um bom roteiro de cinema. Numa semana a revista registrou sete estréias em São Paulo; noutra, também sete; e noutra, quatro. Imagino que haja uma variação aí entre quatro e dez estréias semanais.
    Na última semana, segundo essa mesma revista, havia 30 filmes em cartaz em São Paulo – no circuito normal, comercial, fora as salas especiais, de museus e/ou centro culturais.
    Saudações aqui desta pobre terrinha.
    Sérgio

  3. Sérgio, mais uma boa crítica.

    Adorei o filme. Não daria nota máxima, mas é uma boa realização. É um tema intrigante a acho que o filme deixa, sim, espaço para contestação, embora defenda claramente um dos lados. Argumenta bem. Mostra o sofrimento, a dor, a morte — como parte da vida — e reafirma a capacidade humana de autodeterminação no que é possível. Se não podemos escolher não ter uma doença incurável, cabe a nós decidir o que fazer com isso, certo?

    Pacino está realmente excepcional.

    Novamente, agradeço pela indicação.

    Abraço!

  4. Caro Giovanni,
    Mais uma vez, obrigado por enviar seu comentário.
    E talvez você tenha razão quanto à coisa da nota máxima.
    Essa coisa da nota, como tudo, é muito pessoal, né?
    Para mim, tem funcionado basicamente assim: é acima do mediano, tem mais qualidades que defeito, é 2.5 estrelas.
    Se é bom, bastante bom, é 3 estrelas.
    Se é bom demais, ótimo, de babar, é 3.5.
    Agora, se, além de muito bom, além de bela realização, for importante, se disser algo fundamental, em termos de conteúdo, aí é 4. Foi nesse sentido que dei 4 para o filme, porque considero o que ele diz fundamental.
    Então, por exemplo: “A Marvada Carne” e “8 Mulheres” são umas delícias, belas realizações. Dei 3.5. “Em um Mundo Melhor é uma barra pesada, uma bela realização – mas, além disso, também diz coisas fundamentais, é importante, faz diferença no mundo, então dei 4.
    Talvez seja uma forma errada de fazer a avaliação. Mas é o tal negócio, avaliação, nota, é tudo subjetivo demais, não é?
    Grande abraço, e obrigado.
    Sérgio

  5. Simplesmente magnífico e corajoso. Triste saber q a religiosidade ainda atrapalha tanto o mundo e que há pessoas incapazes de deixar de ler a bíblia de forma literal. Recomendo muito o filme!

  6. nota 10 (= a 4) para tudo neste filme… até pela oportunidade de se pensar no tema. Al Pacino sensacional: encarna de tal forma o personagem que dá até pra esquecer que é ele!!!

  7. Outro filme magnifico do bienio 2010/11. Concordo plenamente com a nota. Dialogos incriveis e argumentacoes contrarias. Ridiculo as pessoas nao terem o direito nem de morrer em paz. Vejo um imenso retrocesso nas ideias da humanidade em paises considerados democraticos como o Brasil e os EUA. Nao entendo porque a maioria dos religiosos querem inserir suas opinioes na vida dos outros de maneir definitiva, aversa a discursao sobre o tema. E uma gigante falta de humildade. Nosso congresso ta cheio de gente que representa instituicoes religiosas com ideais simplesmente desumanos, leia-se Feliciano e corja. E o pior, sao mantidos por uma populacao cada vz maior que enxerga nesse tipo de gente um lider para justificar suas proprias ideias racisfas, homofobicas e etc, e justifica-las. Deeculpe se generalizei, mas nao suporto tamanha ignorancia, ainda mais institucionalizada e promovida por pessoas que elegemos. Imagino Jesus no mundo de hoje, provavelmente seria ateu, pra nao atribuir a seu provavel criador motivacao pra tanta idiotice.

  8. Afinal este filme chegou às areias da Lusitânia, sob a forma de DVD!
    Vi-o ontem e apreciei muito, é um tema muito actual e que merece discussão.
    Em Portugal são proibidos o suicídio assistido e a eutanásia e não me parece que sejam tema de deliberação dos nossos actuais governantes atendendo à situação tenebrosa que atravessamos.
    O filme é fácil de seguir e estão lá os argumentos pró e contra.
    Poucos países no mundo legalizaram estes processos e tenho pena que assim seja.
    Sou favorável sobretudo ao suicídio assistido e não vejo onde poderá haver crime neste assunto.
    Há um filme muito bom sobre isto que se chama “Mar Adentro” de Alejandro Amenábar e que conta a parte final da vida de Ramón Sampedro, um espanhol que foi ajudado no seu suicídio por uma grande amiga.
    Recomendo vivamente.

  9. Amigo José Luís, muito obrigado pelo comentário – como sempre, inteligente, interessante. Fico feliz que o filme tenha chegado aí e que você tenha podido vê-lo.
    Um grande abraço!
    Sérgio

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